sábado, setembro 28, 2019

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,19-31 (ANO C)




Neste vigésimo sexto domingo do tempo comum, a liturgia propõe a continuidade e a conclusão da leitura do capítulo dezesseis de Lucas. Esse capítulo é todo dedicado a um dos temas mais caros a Lucas, a saber, o uso das riquezas e dos bens materiais em geral, e contém duas ricas parábolas, exclusivas deste evangelista: a do “administrador acusado de desonestidade”, lida e refletida no domingo passado (vv. 16,1-8), e a do “rico indiferente e o pobre Lázaro” (vv. 19-31), texto proposto para hoje. Intercalando as duas parábolas, temos um conjunto de sentenças de estilo sapiencial (vv. 9-13), também lidas no domingo passado, e uma pequena controvérsia com os fariseus (vv. 14-16). Esta parábola do “rico indiferente e o pobre Lázaro” é uma das mais conhecidas de todo o Novo Testamento, ocupando a terceira posição entre as mais lidas, das parábolas exclusivas de Lucas, ficando atrás apenas daquela do “pai misericordioso e os dois filhos” ou do “filho pródigo” – 15,11-32 (a primeira), e daquela do “bom samaritano” – 10,25-37 (a segunda).

O contexto geral do texto de hoje continua sendo o do caminho de Jesus para Jerusalém, junto com seus discípulos e discípulas. Como temos enfatizado no decorrer dos últimos domingos, mais que um percurso físico-geográfico, esse caminho é um itinerário catequético-espiritual de formação para o discipulado de Jesus. Lucas, como refinado escritor e bom catequista, reuniu os principais ensinamentos de Jesus e os distribuiu nesse itinerário. Como sabemos, Lucas é também o evangelista que mais valoriza os pobres, dando-lhes vez e voz; desde o início do Evangelho (cf. 1,51-52; 6,20-26), ele aponta para uma nova história, construída a partir dos pequenos e desvalidos. Para isso, é necessário combater a concentração de riquezas em poucas mãos, o que gera grandes desigualdades e abismos entre as pessoas.

Os destinatários principais dos ensinamentos ao longo do caminho são sempre os discípulos, mesmo quando os interlocutores diretos de Jesus são outros personagens; inclusive, neste capítulo dezesseis há dois grupos de interlocutores: os discípulos, conforme iniciava o texto do domingo passado: “Jesus dizia aos discípulos...” (cf. 16,1a), e os fariseus, a quem é dirigida de maneira mais direta a parábola de hoje. Ora, a parábola do “administrador acusado de desonestidade” (vv. 1-8) fora seguida de algumas sentenças proverbiais (vv. 9-13), sendo a última “não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (v. 13). Diz o evangelista que “os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam de Jesus” (16,14). As reações negativas dos fariseus aos ensinamentos de Jesus são muito comuns, sobretudo no evangelho de Lucas: eles reagiam com murmúrio (cf. Lc 5,9; 15,2), com perguntas (cf. Lc 6,2) e até com perseguição (cf. Lc 11,53). Porém, como a catequese de Jesus sobre o uso do dinheiro e das riquezas fora muito radical, dessa vez os fariseus reagiram zombando, ou seja, ridicularizando. Foi, portanto, da reação sarcástica dos fariseus a Jesus que nasceu a parábola de hoje. Logo, essa parábola se torna uma advertência a todos os “amigos do dinheiro” como eram os fariseus.

Iniciemos a leitura do texto: “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias” (v. 19). É típico de Lucas introduzir as parábolas com descrições dos personagens, como ele faz nesta parábola. A descrição do rico é impressionante: um homem que se vestia elegantemente e festejava todos os dias. Numa sociedade em que a maioria da população era pobre e explorada, como era a Palestina no tempo de Jesus, essa descrição foi impactante, e o objetivo do autor era mesmo causar impacto nos ouvintes/leitores. Também é típico de Lucas apresentar personagens com características opostas em paralelo, através da técnica retórica do paradoxo, aplicada aqui; por isso, a descrição do segundo personagem da parábola também é impressionante, embora suas características sejam completamente opostas às do rico: “Um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas” (vv. 21-22). Como se vê, o autor não se contenta em dizer que havia um homem rico e outro pobre, mas faz questão de enfatizar as diferenças extremas entre os dois personagens: um é rico demais, e o outro é pobre demais. É interessante perceber que o autor faz uma descrição minuciosa dos personagens, mas não faz referência à conduta ética de nenhum deles: não diz se o rico era bom ou mau, justo ou injusto, mas apenas diz que era rico; o mesmo acontece com Lázaro.

Embora seja típico de Lucas, como já afirmamos, apresentar personagens com características opostas em paralelo, em nenhuma outra ocasião ele fez isso com tanto exagero quanto nesta parábola. Recordemos as diferenças de atitude entre Zacarias e Maria, ao receberem os respectivos anúncios (cf. Lc 1,5-38), entre Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso (cf. Lc 15,11-32) e entre o fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14); em nenhuma dessas ocasiões as diferenças são tão abissais quanto entre o rico e Lázaro desta parábola. Embora próximos fisicamente, pois o pobre jazia à porta do rico, havia um verdadeiro abismo entre os dois. A primeira e talvez a mais significativa das diferenças é o nome: somente o pobre tem nome e, por sinal, é um nome carregado de esperança: Lázaro significa “Deus ajuda”. Por sinal, esse é o único personagem de uma parábola a receber um nome próprio; o nome, na Bíblia, indica a identidade e a dignidade da pessoa. Contrastando com as roupas finas do rico, o corpo de Lázaro era coberto de feridas; isso significa que, além da exclusão social, ele era também excluído da vida religiosa, já que uma pessoa com feridas expostas era considerada impura; além disso, como os cachorros eram animais impuros para os judeus, isso aumentava ainda mais a marginalização de Lázaro.

Das descrições iniciais que evidenciam o abismo entre os dois personagens, o autor passa a um dado comum e igual para todos os seres humanos, a morte: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado” (v. 22). A morte é inevitável; ricos e pobres passam por ela, indistintamente. Como a parábola tem uma função didática muito forte, Jesus acaba usando uma linguagem até apocalíptica, ao aplicar as imagens do destino final dos dois personagens, embora não seja sua intenção descrever as realidades futuras, ou seja, céu, inferno e purgatório, como a parábola tem sido equivocadamente interpretada. Há uma inversão de destinos, como se vê: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado. Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado” (vv. 22-23). Não temos aqui uma descrição das realidades futuras, mas um alerta para que o ser humano procure dar sentido à sua existência enquanto há tempo. O fechamento em si, o egoísmo desenfreado, não é causa de condenação, mas já é a condenação em si mesma. Os abismos entre as pessoas só podem ser superados durante a vida terrena. A situação pós-morte descrita na parábola mostra apenas a perpetuação dos abismos, quando não há empenho para superá-los enquanto é possível, ou seja, enquanto se vive neste mundo (cf. v. 26).

Percebendo as consequências desastrosas de suas escolhas em vida, o rico inicia um diálogo com Abraão, a quem chama de “pai”. Com isso, o autor revela que se trata de uma pessoa religiosa, um judeu devoto: “Então gritou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas’. Mas Abraão respondeu: ‘Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado” (vv. 24-25). De fato, reconhecer Abraão como pai era um traço característico de todo bom judeu. Porém, esse homem devoto viveu uma fé equivocada, pois não soube traduzi-la em frutos de justiça em favor do pobre que jazia à sua porta. As respostas de Abraão reforçam as consequências do abismo construído pela indiferença do rico ainda em vida. Ao dar a sua causa por perdida, o rico pensa, embora tarde, nos seus familiares: “O rico insistiu: ‘Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28). Com esse pedido, o rico só reforça a sua mentalidade egoísta e mesquinha, pois pensa somente nos seus; não pensa na coletividade, mas apenas no seu pequeno mundo, naqueles que com ele se banqueteavam, provavelmente.

A resposta de Abraão às novas súplicas do rico é muito clara: “Mas Abraão respondeu: ‘Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (v. 29). A expressão “Moisés e os Profetas” significava as Sagradas Escrituras, a Bíblia. E desde Moisés – a Lei (cf. Ex 5,6; 23,10; Lv 19,10) até os profetas (cf. Am 4,1; 8,4), a Palavra de Deus adverte para a necessidade do cuidado com os pobres, mostrando a predileção de Deus por eles; negligenciar os pobres, portanto, é negligenciar o próprio Deus. Com essa mesma expressão, o evangelista também chama a atenção da sua comunidade para a eficácia da Palavra e que, diante dessa, não há necessidade de fenômenos sobrenaturais como milagres e visões. Assim, o evangelista ensina que uma fé autêntica e comprometida se fundamenta na Palavra de Deus, e não em visões ou aparições.

Para viver autenticamente a fé, a necessidade básica é a atenção à Palavra de Deus e a adesão às exigências que essa contém, sobretudo a atenção especial aos mais necessitados. Quem tem “Moisés e os Profetas”, ou seja, o conjunto das Sagradas Escrituras (v. 31), incluindo o Novo Testamento, o texto cristão por excelência, tem tudo o que é necessário para viver e dar sentido à vida. Ler Moisés e os Profetas, ou seja, a Sagrada Escritura, e não lutar para que os abismos criados entre as pessoas e as desigualdades sociais sejam abolidas é simplesmente ignorar os apelos de Deus.  

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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