O evangelho deste trigésimo domingo do tempo comum – Mt 22,34-40 – continua a série de confrontos ou disputas entre Jesus e as classes dirigentes e grupos influentes de Israel, na fase final do seu ministério em Jerusalém. Tudo começou com a corajosa denúncia à transformação do templo em casa de comércio e covil de ladrões (Mt 21,12-17), logo após sua entrada na cidade. Daquele momento em diante, cada passo de Jesus passou a ser milimetricamente vigiado. Havia uma espécie de consórcio entre os diversos grupos hegemônicos – nos âmbitos político, econômico, religioso e intelectual – com o objetivo de colocar Jesus em situações constrangedoras, até encontrar motivos para condená-lo, seja por subversão política ou por transgressão religiosa. Esses grupos se alternavam no confronto: quando um deles ficava sem argumentos, outro entrava em cena com uma questão ainda mais embaraçante.
Os
primeiros grupos a confrontá-lo diretamente foram os sacerdotes e anciãos,
questionando com que autoridade ele ensinava no templo (Mt 21,23-27). A esses,
Jesus respondeu com uma série de três parábolas (Mt 21,28–22,14), deixando-os
sem argumentos, pelo menos momentaneamente. Em seguida, entraram em cena os
fariseus e os herodianos, questionando sobre a legitimidade do pagamento do
imposto ao império romano (Mt 22,15-22), aos quais Jesus também deixou sem
palavras. Depois, entraram em cena os saduceus perguntando sobre a
ressurreição, com a estranha parábola da mulher que ficou viúva sete vezes,
cujos maridos eram todos irmãos (Mt 22,23-33); também a esses Jesus deixou
calados. À exceção da disputa com os saduceus, todas as demais foram lidas na
liturgia dos últimos domingos.
O
texto lido hoje mostra uma nova investida dos fariseus, o grupo mais preparado
em relação ao conhecimento da doutrina e da Lei. Inclusive, a maioria dos doutores
da Lei pertenciam ao grupo dos fariseus. Como a questão tratada no evangelho de
hoje refere-se à Lei, e os interlocutores de Jesus são os fariseus, tudo aponta
para um caloroso embate. Eis o início do texto: “Os fariseus ouviram dizer
que Jesus tinha feito calar os saduceus” (v. 34a). As primeiras palavras do
texto já denunciam o complô: os grupos agiam em comum acordo, de modo que se um
deles falhasse, outro já estava pronto para agir, mostrando que havia um
verdadeiro cerco contra Jesus. Os fariseus percebem que fica cada vez mais
difícil vencê-lo com argumentos, por isso se preparam melhor dessa vez: “Então
eles se reuniram em grupo” (v. 34b). Certamente, se reuniram para elaborar
uma pergunta mais difícil e escolher um dos mais capacitados para perguntar.
O
objetivo da pergunta é muito claro: “e um deles perguntou a Jesus, para
experimentá-lo” (v. 35). Embora a tradução litúrgica empregue o verbo
experimentar, o que melhor corresponde à língua original do texto é tentar; é o
mesmo verbo empregado no episódio das tentações para descrever a ação de
satanás (em grego: πειράζω – peirázo) no início da vida pública de Jesus (Mt
4,1). Com isso, o evangelista recorda que, do início ao fim, a vida de Jesus
foi marcada pela tentação, pelo confronto com os inimigos, opositores do Reino,
sendo que na maioria das vezes são as próprias pessoas religiosas que assumem o
papel de satanás; inclusive, os próprios discípulos, como Pedro, a quem Jesus
chegou a chamá-lo explicitamente de satanás (Mt 16,23).
Escolhido
a dedo pelo grupo, um dos fariseus faz uma pergunta interessante,
teologicamente, mas ao mesmo tempo maliciosa, tendo em vista as intenções de
tentar Jesus: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei?” (v. 36). A falsidade
deles já é perceptível pela introdução da pergunta: chamam a Jesus de mestre
(em grego: διδάσκαλος – didáskalos) sem reconhecê-lo como tal. A especialidade
dos fariseus era exatamente o estudo minucioso da lei e dos mandamentos. Com
essa pergunta eles não pretendiam aprender, mas fazer Jesus cair em contradição
até ser acusado de blasfemo e transgressor da Lei. Nas escolas rabínicas, essa
pergunta era muito frequente e gerava bons debates. Isso porque elaboraram um
catálogo com 613 mandamentos, encontrados na Torá, divididos entre 365
proibições e 248 obrigações. Diante de um número tão alto, sendo difícil até a
memorização, surgiam muitas perguntas a respeito; ora, não sendo possível
observar todos, quais são os essenciais? Havia uma diversidade de posições:
entre os fariseus, predominava a ideia do sábado como o maior mandamento, com a
alegação de que até Deus observava esse mandamento (Gn 2,2-3; Ex 20,8-11; Dt
5,12-15). Inclusive, já tinham entrado em conflito com Jesus, ainda na
Galileia, acusando-o de relativizar o sábado (Mt 12,1-13). Outros grupos
consideravam que o essencial era a observação do decálogo (Ex 19,3-17; Dt 5,6-21). E outros,
ainda, defendiam a igualdade entre todos os mandamentos, uma vez que todos
tinham a mesma origem divina.
Desde
o início da sua vida pública, Jesus tinha demonstrado muita liberdade ao
interpretar os mandamentos e toda a Lei, colocando sempre o bem da pessoa e da
criação acima de qualquer preceito. Por isso, os fariseus imaginavam que com
essa pergunta teriam argumentos para deixá-lo em situação difícil, uma vez que
Jesus já tinha fama de relativizar a Lei. Como sempre, ao invés de incompleta,
a resposta de Jesus vai muito além do que fora pedido: “Amarás o Senhor teu
Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento!”
(v. 37). Jesus encontra uma resposta que transcende o decálogo. Essa resposta
encontra seu fundamento justamente no credo de Israel, o Shemá, que os fariseus
tão bem conheciam: “Ouve ó Israel: O senhor é nosso Deus e único Senhor! Por
isso, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e
com toda a tua força” (Dt 6,4-5).
Com
pequenas modificações, Jesus confirma que o ser humano deve amar a Deus com o
máximo de si. Como ele mesmo diz, “esse é o maior e o primeiro mandamento”
(v. 38), qualificando-o com dois adjetivos absolutos: maior (em grego: μεγάλη –
megále) e primeiro (em grego: πρώτος – protos), significando aquilo que é
essencial e irrenunciável. Porém, a resposta de Jesus não visa uma
hierarquização dos mandamentos, mas uma denúncia: enquanto os fariseus buscavam
classificar os mandamentos, Jesus diz que basta viver a genuína fé israelita,
da qual eles se achavam os primeiros guardiões. O Shemá era proclamado duas
vezes ao dia, ao amanhecer e ao anoitecer pelos fariseus, mas na verdade eles
não viviam aquilo que proclamavam. Se vivessem em comunhão com Deus, não
ficariam presos a preceitos.
Novamente,
a resposta de Jesus transcende à pergunta: “o segundo é semelhante a esse:
“Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (v. 39). Aqui, Jesus cita o livro
do Levítico (Lv 19,18b). É importante perceber a introdução: “é semelhante”,
quer dizer, é equivalente, está no mesmo nível. Para Jesus, o amor a Deus não
pode ser separado do amor às pessoas; aqui está a singularidade e novidade do
seu ensinamento. É evidente que ele não inventa esse segundo mandamento, pois
já estava na Lei. Mas ninguém antes dele tinha ousado considerar o amor ao
próximo no mesmo nível do amor a Deus. Inclusive, o conceito de próximo na Lei
era restrito ao compatriota, o membro do mesmo povo, embora as leis de Israel
protegessem o estrangeiro melhor do que as leis de qualquer outra nação antiga.
E Jesus já tinha ensinado que até aos inimigos deve-se amar (Mt 5,44).
Portanto, é inegável a novidade do seu ensinamento.
Enquanto
os fariseus procuravam classificar os mandamentos, focando em minuciosidades,
Jesus toma o todo da Lei e dos profetas e faz a sua própria síntese, conforme
relata o evangelista: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois
mandamentos” (v. 40). Os fariseus queriam distinguir preceitos, e Jesus
mostrou a unidade e coerência da Lei e dos profetas. Sem essa visão de
conjunto, a religião excluía e até matava. Ao mostrar que o amor a Deus é
inseparável do amor ao próximo, Jesus prega a unidade, coesão e coerência na
comunidade. É provável que a conclusão da resposta também tenha sido ainda chocante para os fariseus, ao colocar os profetas no mesmo nível da Lei, no conjunto das Escrituras. Por mais que os profetas fossem estimados
pelos fariseus, para eles o valor da Lei era absoluto, incomparável a qualquer
outro conjunto de livros sagrados.
Jesus dá
um passo muito importante com a sua resposta, o que já era referendada pelo seu
jeito de viver. A sua vida foi toda marcada pelo amor intenso ao Pai e pelo
amor concreto ao próximo, cuja demonstração fora mais visível na sua relação
com as pessoas marginalizadas e excluídas da época, sobretudo pela religião. Por
isso, respondeu de modo tão enfático, sobretudo, no que diz respeito ao
próximo: o ser humano é colocado em uma tríade, cujo centro é o próximo,
conforme a ordem da resposta: Deus – Próximo – Eu. Essa
relação tríade deve ser guiada por um amor semelhante, para ser verdadeiro. Com
isso, Jesus deixa claro que só há uma maneira de demonstrar que amamos a Deus e
a nós mesmos: quando o próximo ocupa o centro da nossa vida. O próximo é,
portanto, o critério do amor a Deus e a si mesmo.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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