O evangelho proposto para este décimo oitavo
domingo do tempo comum é Lc 12,13-21, um texto que faz parte do contexto do
longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, onde viverá a consumação
da sua missão, com os eventos da paixão, morte e ressurreição. Como temos
enfatizado há alguns domingos, esse caminho constitui a seção narrativa mais
longa de todo o Evangelho segundo Lucas, totalizando dez capítulos (cc. 9 –
19); inclusive, do décimo terceiro ao trigésimo primeiro domingo do tempo
comum, neste ano C, o evangelho é tirado dessa seção. É importante recordar
também que, mais do que um percurso físico/geográfico, esse caminho é, acima de
tudo, um itinerário formativo, teológico e catequético, através do qual Jesus
apresenta os principais elementos do seu ensinamento aos discípulos/a. Podemos
dizer que Lucas juntou os principais ensinamentos de toda a vida de Jesus e
distribui-os na seção do caminho, mesclando textos exclusivos seus com outros
comuns aos demais evangelhos sinóticos (Mateus e Marcos). Mesmo que entrem em
cena outros personagens durante o caminho, como no episódio de hoje, os
destinatários principais da mensagem são sempre os discípulos. Assim, neste
itinerário são abordados os temas fundamentais para a formação do discipulado: a
partilha, a importância da oração, o universalismo da salvação e da missão, a
misericórdia para com os pecadores, a necessidade de fazer renúncias e o perigo
do apego aos bens materiais, tema do evangelho de hoje.
Uma vez contextualizados, olhemos para o evangelho
de hoje, um texto exclusivo de Lucas, que compreende um pedido de intervenção
de Jesus por um homem desconhecido (v. 13), cuja resposta (vv. 14-15) é seguida
de uma parábola que denuncia o perigo do apego aos bens e a confiança nas
riquezas (vv. 16-21). Eis o texto: “Alguém, do meio da multidão, disse a
Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo” (v. 13). Esse
pedido reflete um costume da época. Provavelmente, Jesus estava passando por um
povoado, onde as opiniões dos rabinos – como Jesus era considerado – eram
bastante requisitadas, sobretudo para ajudar a resolver questões que
envolvessem a interpretação da Lei, como casos de herança, por exemplo. Inclusive,
os rabinos eram muito interessados por questões desse tipo e se sentiam
honrados quando solicitados, pois, além de ser uma oportunidade para exibir
conhecimento, ainda recebiam uma recompensa financeira quando conseguiam
promover o acordo. Provavelmente, o homem que pede a intervenção de Jesus era
um filho mais novo, já que era o mais velho quem tinha controle sobre toda a
herança da família, de acordo com a Lei. Enquanto o primogênito tinha direito a
dois terços da herança, o outro terço era distribuído com os demais filhos (cf.
Dt 21,16-17). Em compensação, o primogênito tinha também o dever de cuidar da
viúva e das irmãs solteiras.
Geralmente, quando um filho mais novo pedia a
divisão dos bens havia conflitos, sendo necessária a intervenção de rabinos, os
quais exerciam papel de advogado e juiz, sobretudo, nos pequenos povoados, onde
quase ninguém conhecia a Lei em profundidade. Por isso, na passagem de um
rabino por um povoado, era comum aparecer questões desse tipo. Ao pedido de
intervenção, “Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de
dividir vossos bens?” (v. 14). Antes de tudo, Jesus se nega a agir como os
rabinos do seu tempo. A princípio, parece estranha a recusa, uma vez que,
segundo a Lei, alguém estava sendo injustiçado naquele caso. Como promotor da
fraternidade, é claro que Ele tinha interesse na resolução de conflitos entre
irmãos; portanto, Ele não está lavando as mãos, como aparenta. Seria
lógico que Jesus intervisse e ajudasse na resolução do problema, deixando cada
um com o percentual justo da herança, conforme a Lei.
Com sua aparente
omissão, Jesus estaria ajudando a prolongar a discórdia entre os irmãos. Porém,
Jesus conhecia as intenções daquele homem e a mentalidade vigente; sabia que
sua reclamação não era motivada apenas por sentir-se injustiçado, mas pela
ganância, ou seja, por ter depositado toda a confiança naquela herança. E,
ajudando a resolver o problema, estaria ao mesmo tempo alimentando a ganância e
o desejo de acúmulo, enquanto o problema era muito mais profundo. Resolvendo um
caso a mais, não mudaria uma mentalidade tão impregnada naquela cultura. Assim,
Ele vai à raiz do problema. Ora, aquela herança um dia passaria por nova
divisão, quando aquele homem morresse e a deixasse para seus filhos. Poderia
ser causa de discórdia novamente. Jesus quer mostrar que no seu Reino as
heranças não devem ser divididas, pois não devem existir, uma vez que tudo deve
ser partilhado. Isso Ele deixará claro com a parábola que segue. Ao invés de
legalmente divididos, os bens devem ser partilhados conforme a necessidade de
cada pessoa, e não de acordo com normas legais.
A parábola vai sendo preparada aos poucos. Do caso específico do homem
que lhe pede intervenção, Jesus aproveita para chamar a atenção dos discípulos:
“E disse-lhes: Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que
alguém tenha muitas coisas, a vida do homem não consiste na abundância de bens”
(v. 15). A expressão “disse-lhes” sinaliza que não é mais a um indivíduo, mas
ao grupo dos discípulos que Ele está direcionando o ensinamento. É uma dura
advertência. Certamente, Ele sentia muita resistência nos seus seguidores no
processo de assimilação de seus ensinamentos. Assim, Ele vai de encontro à
mentalidade hebraica que via no acúmulo de bens, ou seja, na riqueza, um sinal
da bênção de Deus. Jesus contraria esse princípio. O acúmulo de bens é, na
verdade, a prova maior da falta de sentido para a vida e, inclusive, causa de
discórdias. Portanto, é urgente para seus seguidores e seguidoras libertarem-se
dos bens que aprisionam e escravizam. Provavelmente, os discípulos ainda não
tinham aprendido a rezar como Ele e estavam pedindo, ainda, mais que o pão
necessário para cada dia (cf. Lc 11,2-4).
Finalmente, chegamos na parábola. Recordamos que,
em Lucas, especialmente, as parábolas não surgem do nada, mas são
aprofundamento ou ilustração de um ensinamento já começado e visam responder a
questão concretas da existência, como acontece neste episódio: “E
contou-lhes uma parábola: “A terra de um homem rico deu uma grande colheita” (v.
16). A expressão “contou-lhes” evidencia, mais uma vez, que o
destinatário já não é mais o homem anônimo, mas os discípulos. A parábola apresenta a figura de um homem rico,
grande latifundiário, o qual fora surpreendido com uma grande colheita. A
atitude e o pensamento do personagem da parábola com a colheita abundante são
descritos a partir de um monólogo interior, através do qual é revelado,
sobretudo, o seu caráter: “Ele pensava consigo mesmo: ‘O que vou fazer? Não tenho onde
guardar minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou derrubar meus
celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os
meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva
para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!’” (vv. 17-19). Convém mencionar que, como escritor refinado que
é, Lucas é o único autor do Novo Testamento a empregar o recurso do monólogo
interior.
Como se vê, o personagem da parábola é um homem voltado somente para si
mesmo. Quase todas as suas falas são em primeira pessoa singular (vou fazer;
vou derrubar; vou guardar; poderei), além de um uso excessivo de pronomes possessivos
(minha; meus), o que revela um egoísmo profundo. Toda a sua confiança é
depositada na abundância dos bens. Em seu pensamento não há espaço para Deus e
nem para o próximo; ele pensa somente em si e nos bens que possui, e esse é o
seu grande pecado. Esse homem representa o “anti-discípulo”: apegado aos
bens, ganancioso, egocêntrico, autossuficiente e insensato. Tudo o que os
discípulo e discípulas de Jesus não podem ser, esse homem era.
A vida de uma pessoa perde o sentido quando não contempla Deus e o
próximo. Por isso, a intervenção divina: “Mas Deus lhe disse: ‘Louco! Ainda nesta
noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?’” (v. 20). Aqui, não se
trata de um ato vingativo de Deus, mas de um alerta, um convite à reflexão que
é feita a cada pessoa, independente da quantidade dos bens acumulados. Quer dizer que é Deus a fonte da vida. É o sinal de
contraposição à falsa segurança depositada, na riqueza, pelo homem (cf. v. 19).
Enquanto ele julgava ter vida longa pelo que havia acumulado, Deus entra na
história para mostrar o que, de fato, tem valor. A pergunta final: “E para
quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20b) é apenas uma ponte com o que
gerou toda a discussão e a parábola: o pedido de intervenção daquele homem
anônimo na divisão da herança. Além de não garantir vida verdadeira, os bens
acumulados ainda são causa de discórdia, tirando a harmonia e a paz das
pessoas.
Com a frase final, Jesus completa o sentido da parábola e reforça a
chamada de atenção nos discípulos: “Assim acontece com quem ajunta tesouros para si
mesmo, mas não é rico diante de Deus” (v. 21). O acúmulo para si, como do personagem da
parábola, leva o ser humano a deixar de refletir sobre a vida e o seu sentido,
tirando Deus e o próximo do seu horizonte. Isso é, consequentemente,
empobrecer-se diante de Deus. Ser rico diante de Deus é, por outro lado, estar
à disposição do seu projeto, cuja manifestação mais clara é a partilha e o
serviço ao próximo. É isso que dá sentido à vida e torna a pessoa rica diante
de Deus. Sendo a vida dom de Deus, essa só tem sentido quando o ser humano
também se faz dom para o próximo. Jesus ensina, assim, a partir do pedido que o homem desconhecido lhe
fez, aos seus discípulos a conscientizarem-se da incompatibilidade entre o seu
seguimento e as riquezas deste mundo. Para isso, rompe, inclusive, com um
princípio sagrado para o povo judeu, a herança. Se alguém deixou herança, foi
porque acumulou. Se acumulou, foi porque não partilhou e, quem não partilha,
não está apto a fazer parte do seu Reino.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
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