sábado, novembro 26, 2022

REFLEXÃO PARA O PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 24,37-44 (ANO A)

 


Neste domingo – o primeiro do advento – a Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a percorrer o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde anúncio do seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento, iniciado hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O termo advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”; possui o mesmo significado do termo grego parusia (παρουσα). Fazia parte do vocabulário das religiões pagãs no império romano, sendo usado em referência às supostas visitas das divindades aos seus respectivos templos, e no âmbito civil era usado para designar as visitas de funcionários ilustres e dos imperadores às cidades e províncias do império. Por volta do século IV, o cristianismo absorveu a palavra advento, passando a utilizá-la no contexto do natal, a visita de Deus ao mundo, por excelência, uma vez que já estava consolidado o uso do termo grego “parusia” para designar a segunda vinda de Cristo. Como o próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivo de esperanças e expectativas, e essa é uma das características principais do tempo do advento. E a esperança suscitada com esse tempo gira em torno da construção de um mundo novo, no qual devem reinar a justiça, o amor e a paz.

Com o início do novo ciclo litúrgico, neste ano iniciamos também a leitura do Evangelho segundo Mateus, porém, não do início, mas do seu final, exatamente do discurso escatológico. Por isso, o texto proposto para hoje é Mateus 24,37-44. O discurso escatológico está presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), porém é mais amplo em Mateus, uma vez que é esse evangelista quem faz questão de apresentar o ensinamento de Jesus organizado em forma de discursos mais prolongados. O discurso escatológico trata das realidades últimas e finais da história, antecedendo as narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus, na estrutura dos evangelhos mencionados. À primeira vista, parece paradoxal que a preparação para o Natal seja iniciada com um discurso que precede o relato da morte de Jesus e que fala do final da história. Porém, é necessário ver o advento como uma oportunidade de preparação para a vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda uma presença permanente, ao invés de alimentar uma expectativa futurista e preparar para apenas uma data ou evento. E, embora use imagens para falar das realidades últimas, o objetivo do discurso escatológico é ajudar a comunidade a viver o hoje o como se já fosse o futuro, alimentando a esperança e estimulando a luta pela transformação do mundo já agora, com a superação das injustiças, da violência e do ódio. Por isso, mais do que falar de uma vinda, é mais oportuno recordar a necessidade de acolher uma presença que já está inserida no mundo, mas precisa ser acolhida e experimentada na vida de cada pessoa.

O primeiro passo para uma compreensão mais adequada do texto é colocá-lo no seu devido contexto, como faremos aqui. Ora, como já adiantamos, trata-se de um trecho do discurso escatológico de Jesus. A nível de contexto literário, ou seja, considerando o texto no conjunto do Evangelho segundo Mateus, esse discurso nasceu como resposta à pergunta dos discípulos diante da declaração de Jesus sobre a destruição do templo de Jerusalém. Ora, quando Jesus afirmou que daquela faraônica construção “não restaria pedra sobre pedra” (cf. Mt 24,2), seus discípulos, certamente escandalizados, lhe perguntaram “como” e “quando” tudo isso aconteceria (cf. Mt 24,3). O amplo discurso escatológico é, portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta. A nível de contexto sócio histórico, no entanto, esse discurso nasceu como resposta à situação de perseguição vivida pelas comunidades do evangelista. Perseguidos pelas autoridades romanas e pelo judaísmo oficial, os cristãos sentiam-se sufocados, desanimados porque não viam o Reino de Deus ser instaurado; sentiam-se quase sem forças para suportar o sofrimento e o desânimo. Por isso, com o discurso, o evangelista os convidava à resistência e à perseverança, alimentando a esperança de um mundo novo e estimulando a sua construção. De fato, a situação das comunidades da Palestina, nos anos 80 do primeiro século, era bastante adversa, e a tendência ao desânimo na vivência da mensagem de Jesus era forte. E Mateus, o evangelista que mais conhecia aquela realidade, foi quem mais desenvolveu o discurso escatológico, com o intuito de renovar a esperança e perseverança, e combatendo o medo causado por pregadores oportunistas que já existiam naquela época.

Voltando à pergunta dos discípulos sobre “quando e como” aconteceria a grande transformação do mundo, cujo primeiro grande sinal seria a destruição do templo de Jerusalém, é importante recordar que Jesus responde com bastante cuidado. Ele emprega uma linguagem altamente simbólica, típica do gênero apocalíptico, como era comum no seu tempo, e convida os interlocutores de todos os tempos a olhar para a história e observar o tempo presente. À história, se olha a partir da Escritura, ao tempo presente se olha a partir do cotidiano, da vida das pessoas mais simples, como o agricultor e a dona de casa. Em relação à dimensão temporal, ao seja, ao “quando”, disse Jesus: “Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu e nem o Filho, mas somente o Pai” (Mt 24,36). Essa confissão de ignorância do Filho parece estranha, uma vez que Ele mesmo já tinha afirmado sua intimidade com o Pai, mostrando que tinham tudo em comum: “Tudo me foi entregue por meu Pai” (cf. Mt 11,27a). A afirmação de não conhecimento do momento exato da manifestação definitiva de Deus é, portanto, um alerta para a comunidade não se deixar levar por falsos anúncios de muitos supostos destinatários de visões e aparições. Quanto ao “como” da manifestação, Jesus também não apresenta muitos detalhes, embora seja menos ambíguo do que na resposta ao “quando”; inclusive, disse que haveria perseguição aos seus seguidores, e que muitos pregadores aproveitariam a ocasião para causar medo nas pessoas, o que exige bastante vigilância e cuidado para não se deixar enganar (cf. Mt 24,4-14). É, portanto, nesse contexto que o evangelho de hoje foi construído e transmitido na comunidade de Mateus e pensado também para as comunidades de todos os tempos e lugares.

É muito claro o interesse de Jesus em ponderar as expectativas e curiosidade dos discípulos. Na verdade, ele se preocupava bastante com tais expectativas, pois refletiam uma mentalidade incompatível com seu projeto de Reino. Por isso, ele ensina que, mais importante do que procurar descrever uma realidade desconhecida é estar preparado para acolher a novidade da vinda do Filho do Homem, como Ele mesmo se auto intitula, ao referir-se à sua segunda vinda. E, a melhor forma de preparar-se para tal evento é olhar com atenção para a história e perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus cita o exemplo do tempo de Noé para apresentar a imprevisibilidade da sua vinda: “A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Pois nos dias antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca” (vv. 37-38). Assim, Ele mostra que a única coisa a ser feita é prevenir-se a partir do cotidiano, com discernimento e responsabilidade. Por isso, diz que “nos dias antes do dilúvio” (v. 38a), todos levavam uma vida normal, aparentemente, e muitos foram surpreendidos. Com isso, ele ensina que é necessário “normalizar” a vida a partir dos valores do Evangelho. Quer dizer, o ensinamento de Jesus deve ser regra e não exceção. Por regra, aqui, não se deve entender normas ou preceitos, mas o que deve ser prioridade e essencial, como o amor, a solidariedade, a justiça, a paz.  

O dilúvio (em grego: κατακλισμός – kataklismós) é apresentado como exemplo de como Deus pode surpreender a humanidade e como essa costuma não se prevenir para uma questão tão fundamental, que é a própria relação com Deus. Ao afirmar que “todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento” (v. 38b), Ele quer dizer que se fazia o que era normal e consumia-se todas as energias em coisas efêmeras, embora necessárias. As atividades de “comer, beber e casar-se” representam o cotidiano, as coisas que sustentam a vida em sua rotina e normalidade, bem como o dar-se em casamento. São coisas essenciais, indispensáveis, bastante valorizadas nos livros proféticos e sapienciais da Bíblia Hebraica. Aqui, contudo, Jesus quer chamar a atenção para a comunidade não se contentar com a normalidade das coisas, pois foi por causa disso que muitos se perderam na história. Por isso, Noé é apresentado como exemplo de prudência, aquele que percebeu os sinais dos tempos, que são os sinais pelos quais Deus se comunica com a humanidade. Devido à sua prudência, “Noé entrou na arca” (v. 38c), enquanto os outros “nada perceberam, até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v. 39a). Mais do que um alerta, esse exemplo é uma advertência para a responsabilidade. Ora, considerando que o discurso escatológico é direcionado principalmente aos discípulos que viviam situação de perseguição e desilusão com os rumos da história, portanto, é inadmissível que esses não saibam perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus não lhes dá respostas prontas, mas convida-os a, inseridos no mundo, perceberem como Deus age na história.

De um exemplo do passado, Jesus parte para o presente e percebe que também no seu tempo as coisas estavam acontecendo da mesma forma, ou seja, as atividades do cotidiano continuavam distraindo as pessoas. É claro que não se pode ignorar o cotidiano; pelo contrário, deve-se vivê-lo bem, com intensidade, e o trabalho, como é mostrado nos dois exemplos seguintes, é uma dimensão indispensável para se viver bem o cotidiano; é um direito e um meio essencial para a dignidade humano. Mas isso exige responsabilidade, o que passa pela busca de sentido para a vida, tanto em nível pessoal quanto comunitário. Por isso, Ele cita duas atividades típicas do seu tempo, uma para o homem e outra para a mulher: o trabalho no campo e a atividade doméstica, respectivamente: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada” (vv. 40-41). Ao afirmar que um(a) será levado(a) e outro(a) deixado(a), Jesus não está antecipando a condenação e nem a salvação de ninguém, mas está lamentando que, novamente, a humanidade está desperdiçando a oportunidade de renovar-se, já que nem todos vivem as mesmas situações com a intensidade e a responsabilidade devidos. É lamentável que milhões de pessoas não tenham acesso ao trabalho digno. É igualmente lamentável que tantas pessoas não façam do trabalho um instrumento favorável à edificação do Reino de Deus.

O Reino de Deus, cuja irrupção na história corresponde, neste caso, à manifestação do Filho do Homem, não é excludente, mas é a própria humanidade que está rejeitando inserir-se nele. Enquanto alguns estão se esforçando para entrar nele, outros simplesmente o ignoram e, por isso, ficarão de fora. As atividades agrária e doméstica nesse contexto representam também o fechamento da humanidade a uma mentalidade antiga. Quem contentar-se somente em fazer estas coisas, sem preocupar-se com nada além disso, obviamente não está interessado no Reino, embora sejam atividades indispensáveis que não podem ser ignoradas. Aos discípulos e discípulas, é necessária uma abertura de horizonte. Estar atento à vinda do Filho do Homem é estar disposto a lutar e trabalhar pela instauração do Reino, e isso não se faz sem uma mudança de mentalidade. O Filho já veio; o discípulo e a discípula são desafiados, hoje, a reconhecer a sua presença e, assim, dar um novo sentido ao seu cotidiano, sobretudo, transformando-o. Por isso, é importante fazer bem-feitas as atividades do dia-a-dia, sem fechar-se nelas. Logo, quem trabalha no campo que o faça visando a construção do Reino, da mesma forma quem exerce atividade doméstica e qualquer que seja o trabalho. A instauração do Reino exige o esforço responsável e a esperança ativa de todas as pessoas.

O último exemplo usado para alertar os discípulos sobre a imprevisibilidade da vinda do Filho do Homem é aquele, tão conhecido, do dono da casa que não sabe a que hora pode ser surpreendido por um ladrão: “Compreendei bem isso: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada” (v. 43). Essa imagem tornou-se clássica entre os pregadores e escritores do cristianismo nascente (cf. 2Ts 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15), como sinônimo de advertência para manter um espírito de vigilância na vida cotidiana, tendo em vista a imprevisibilidade da manifestação do Senhor e a construção contínua do Reino. Infelizmente, essa imagem ajudou a criar um certo medo e angústia entre os primeiros cristãos, levando-os até a distorcerem o sentido da vigilância, que corresponde à corresponsabilidade de tornar, cotidianamente, o mundo melhor. Muitos pregadores, ao longo da história, tem se apropriado desta imagem para provocarem terror nas pessoas. No entanto, o que importa é o convite feito aos discípulos para não desanimarem um único instante, como a exortação do último versículo: “Por isso, ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (v. 44). Essa vinda coincide com a destruição da ordem opressora vigente e o estabelecimento do Reino de Deus, por isso, a vigilância é fundamental, pois esse processo exigirá muito empenho dos cristãos e cristãs.

O convite feito por Jesus no Evangelho de hoje é, portanto, que vivamos em estado constante de preparação para o encontro do Senhor, uma vez que Ele já veio e precisa apenas ser reconhecido e acolhido. Por isso, é preciso fazer do cotidiano uma constante preparação, ou melhor, preparar-se no cotidiano. Longe de ser uma mensagem de medo, o Evangelho é mensagem de salvação e boa-nova para todos. A “Boa Nova” de hoje é que, sem alarde algum, somos chamados a realizar nossas tarefas cotidianas já na presença dEle, tendo em vista que já veio, para que o fazer cotidiano já seja direcionado à chegada do Reino de Deus, com a superação de todas as injustiças e violências que continuam ofuscando a presença do Senhor que já é “Deus conosco”, expressão que orienta toda o Evangelho de Mateus do começo ao fim (cf. Mt 1,23; 18,20; 28,20).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

Um comentário:

  1. Neste começo de ano litúrgico, quero mais uma vez agradecer ao senhor, Padre Francisco Cornélio, pela sua grande colaboração a tantos presbíteros, fiéis e seminaristas que se valem deste precioso instrumento de pesquisa, que é o seu blog. Sou um leitor assíduo e sempre me utilizo das suas profundas reflexões para construir minhas homilias dominicais. Quero mais uma vez expressar minha gratidão por sua generosidade em partilhar seus conhecimentos... Deus há de recompensá-lo por esta dedicação constante. Um grande abraço e feliz caminhada neste tempo do advento e que Jesus venha fazer morada no teu coração na grande solenidade da Natividade.

    ResponderExcluir

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DE PÁSCOA – LUCAS 24,35-48 (ANO B)

O evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal é tirado da Evangelho de Lucas, interrompendo uma série de leituras do Evangelho de Joã...