Neste domingo – o primeiro do advento –
a Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a
percorrer o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde
anúncio do seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento,
iniciado hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O
termo advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”;
possui o mesmo significado do termo grego parusia (παρουσία). Fazia parte do vocabulário
das religiões pagãs no império romano, sendo usado em referência às supostas
visitas das divindades aos seus respectivos templos, e no âmbito civil era
usado para designar as visitas de funcionários ilustres e dos imperadores às
cidades e províncias do império. Por volta do século IV, o cristianismo
absorveu a palavra advento, passando a utilizá-la no contexto do natal, a
visita de Deus ao mundo, por excelência, uma vez que já estava consolidado o
uso do termo grego “parusia” para designar a segunda vinda de Cristo. Como o
próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivo de esperanças e
expectativas, e essa é uma das características principais do tempo do advento.
E a esperança suscitada com esse tempo gira em torno da construção de um mundo
novo, no qual devem reinar a justiça, o amor e a paz.
Com o início do novo ciclo litúrgico, neste ano iniciamos também a leitura
do Evangelho segundo Mateus, porém, não do início, mas do seu final, exatamente
do discurso escatológico. Por isso, o texto proposto para hoje é Mateus
24,37-44. O discurso escatológico está presente nos três evangelhos sinóticos
(Mateus, Marcos e Lucas), porém é mais amplo em Mateus, uma vez que é esse
evangelista quem faz questão de apresentar o ensinamento de Jesus organizado em
forma de discursos mais prolongados. O discurso escatológico trata das
realidades últimas e finais da história, antecedendo as narrativas da paixão,
morte e ressurreição de Jesus, na estrutura dos evangelhos mencionados. À
primeira vista, parece paradoxal que a preparação para o Natal seja iniciada
com um discurso que precede o relato da morte de Jesus e que fala do final da
história. Porém, é necessário ver o advento como uma oportunidade de preparação
para a vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda
uma presença permanente, ao invés de alimentar uma expectativa futurista e
preparar para apenas uma data ou evento. E, embora use imagens para falar das
realidades últimas, o objetivo do discurso escatológico é ajudar a comunidade a
viver o hoje o como se já fosse o futuro, alimentando a esperança e estimulando
a luta pela transformação do mundo já agora, com a superação das injustiças, da
violência e do ódio. Por isso, mais do que falar de uma vinda, é mais oportuno
recordar a necessidade de acolher uma presença que já está inserida no mundo,
mas precisa ser acolhida e experimentada na vida de cada pessoa.
O primeiro passo para uma compreensão mais adequada do texto é colocá-lo no
seu devido contexto, como faremos aqui. Ora, como já adiantamos, trata-se de um
trecho do discurso escatológico de Jesus. A nível de contexto literário, ou
seja, considerando o texto no conjunto do Evangelho segundo Mateus, esse
discurso nasceu como resposta à pergunta dos discípulos diante da declaração de
Jesus sobre a destruição do templo de Jerusalém. Ora, quando Jesus afirmou que
daquela faraônica construção “não restaria pedra sobre pedra” (cf.
Mt 24,2), seus discípulos, certamente escandalizados, lhe perguntaram “como” e
“quando” tudo isso aconteceria (cf. Mt 24,3). O amplo discurso escatológico é,
portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta. A nível de contexto sócio histórico,
no entanto, esse discurso nasceu como resposta à situação de perseguição vivida
pelas comunidades do evangelista. Perseguidos pelas autoridades romanas e pelo
judaísmo oficial, os cristãos sentiam-se sufocados, desanimados porque não viam
o Reino de Deus ser instaurado; sentiam-se quase sem forças para suportar o
sofrimento e o desânimo. Por isso, com o discurso, o evangelista os convidava à
resistência e à perseverança, alimentando a esperança de um mundo novo e
estimulando a sua construção. De fato, a situação das comunidades da Palestina,
nos anos 80 do primeiro século, era bastante adversa, e a tendência ao desânimo
na vivência da mensagem de Jesus era forte. E Mateus, o evangelista que mais
conhecia aquela realidade, foi quem mais desenvolveu o discurso escatológico,
com o intuito de renovar a esperança e perseverança, e combatendo o medo
causado por pregadores oportunistas que já existiam naquela época.
Voltando à pergunta dos discípulos sobre “quando e como” aconteceria a
grande transformação do mundo, cujo primeiro grande sinal seria a destruição do
templo de Jerusalém, é importante recordar que Jesus responde com bastante
cuidado. Ele emprega uma linguagem altamente simbólica, típica do gênero
apocalíptico, como era comum no seu tempo, e convida os interlocutores de todos
os tempos a olhar para a história e observar o tempo presente. À história, se
olha a partir da Escritura, ao tempo presente se olha a partir do cotidiano, da
vida das pessoas mais simples, como o agricultor e a dona de casa. Em relação à
dimensão temporal, ao seja, ao “quando”, disse Jesus: “Quanto àquele
dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu e nem o Filho, mas somente o Pai” (Mt
24,36). Essa confissão de ignorância do Filho parece estranha, uma vez que Ele
mesmo já tinha afirmado sua intimidade com o Pai, mostrando que tinham tudo em
comum: “Tudo me foi entregue por meu Pai” (cf. Mt 11,27a). A
afirmação de não conhecimento do momento exato da manifestação definitiva de
Deus é, portanto, um alerta para a comunidade não se deixar levar por falsos
anúncios de muitos supostos destinatários de visões e aparições. Quanto ao
“como” da manifestação, Jesus também não apresenta muitos detalhes, embora seja
menos ambíguo do que na resposta ao “quando”; inclusive, disse que haveria
perseguição aos seus seguidores, e que muitos pregadores aproveitariam a
ocasião para causar medo nas pessoas, o que exige bastante vigilância e cuidado
para não se deixar enganar (cf. Mt 24,4-14). É, portanto, nesse contexto que o
evangelho de hoje foi construído e transmitido na comunidade de Mateus e
pensado também para as comunidades de todos os tempos e lugares.
É muito claro o interesse de Jesus em ponderar as expectativas e
curiosidade dos discípulos. Na verdade, ele se preocupava bastante com tais
expectativas, pois refletiam uma mentalidade incompatível com seu projeto de
Reino. Por isso, ele ensina que, mais importante do que procurar descrever uma
realidade desconhecida é estar preparado para acolher a novidade da vinda do
Filho do Homem, como Ele mesmo se auto intitula, ao referir-se à sua segunda
vinda. E, a melhor forma de preparar-se para tal evento é olhar com atenção
para a história e perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus cita o exemplo
do tempo de Noé para apresentar a imprevisibilidade da sua vinda: “A
vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Pois nos dias antes do
dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia
em que Noé entrou na arca” (vv. 37-38). Assim, Ele mostra que a única
coisa a ser feita é prevenir-se a partir do cotidiano, com discernimento e
responsabilidade. Por isso, diz que “nos dias antes do dilúvio” (v. 38a), todos
levavam uma vida normal, aparentemente, e muitos foram surpreendidos. Com isso,
ele ensina que é necessário “normalizar” a vida a partir dos valores do
Evangelho. Quer dizer, o ensinamento de Jesus deve ser regra e não exceção. Por
regra, aqui, não se deve entender normas ou preceitos, mas o que deve ser
prioridade e essencial, como o amor, a solidariedade, a justiça, a paz.
O dilúvio (em grego: κατακλισμός – kataklismós) é apresentado como exemplo de como
Deus pode surpreender a humanidade e como essa costuma não se prevenir para uma
questão tão fundamental, que é a própria relação com Deus. Ao afirmar que “todos
comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento” (v. 38b), Ele
quer dizer que se fazia o que era normal e consumia-se todas as energias em
coisas efêmeras, embora necessárias. As atividades de “comer, beber e casar-se”
representam o cotidiano, as coisas que sustentam a vida em sua rotina e
normalidade, bem como o dar-se em casamento. São coisas essenciais, indispensáveis,
bastante valorizadas nos livros proféticos e sapienciais da Bíblia Hebraica.
Aqui, contudo, Jesus quer chamar a atenção para a comunidade não se contentar
com a normalidade das coisas, pois foi por causa disso que muitos se perderam na
história. Por isso, Noé é apresentado como exemplo de prudência, aquele que
percebeu os sinais dos tempos, que são os sinais pelos quais Deus se comunica
com a humanidade. Devido à sua prudência, “Noé entrou na arca” (v.
38c), enquanto os outros “nada perceberam, até que veio o dilúvio e
arrastou a todos” (v. 39a). Mais do que um alerta, esse exemplo é uma
advertência para a responsabilidade. Ora, considerando que o discurso
escatológico é direcionado principalmente aos discípulos que viviam situação de
perseguição e desilusão com os rumos da história, portanto, é inadmissível que
esses não saibam perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus não lhes dá
respostas prontas, mas convida-os a, inseridos no mundo, perceberem como Deus
age na história.
De um exemplo do passado, Jesus parte para o presente e percebe que também
no seu tempo as coisas estavam acontecendo da mesma forma, ou seja, as
atividades do cotidiano continuavam distraindo as pessoas. É claro que não se
pode ignorar o cotidiano; pelo contrário, deve-se vivê-lo bem, com intensidade,
e o trabalho, como é mostrado nos dois exemplos seguintes, é uma dimensão
indispensável para se viver bem o cotidiano; é um direito e um meio essencial
para a dignidade humano. Mas isso exige responsabilidade, o que passa pela
busca de sentido para a vida, tanto em nível pessoal quanto comunitário. Por
isso, Ele cita duas atividades típicas do seu tempo, uma para o homem e outra
para a mulher: o trabalho no campo e a atividade doméstica,
respectivamente: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será
levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será
levada e a outra será deixada” (vv. 40-41). Ao afirmar que um(a) será
levado(a) e outro(a) deixado(a), Jesus não está antecipando a condenação e nem
a salvação de ninguém, mas está lamentando que, novamente, a humanidade está
desperdiçando a oportunidade de renovar-se, já que nem todos vivem as mesmas
situações com a intensidade e a responsabilidade devidos. É lamentável que
milhões de pessoas não tenham acesso ao trabalho digno. É igualmente lamentável
que tantas pessoas não façam do trabalho um instrumento favorável à edificação
do Reino de Deus.
O Reino de Deus, cuja irrupção na história corresponde, neste caso, à
manifestação do Filho do Homem, não é excludente, mas é a própria humanidade
que está rejeitando inserir-se nele. Enquanto alguns estão se esforçando para
entrar nele, outros simplesmente o ignoram e, por isso, ficarão de fora. As
atividades agrária e doméstica nesse contexto representam também o fechamento da
humanidade a uma mentalidade antiga. Quem contentar-se somente em fazer estas
coisas, sem preocupar-se com nada além disso, obviamente não está interessado
no Reino, embora sejam atividades indispensáveis que não podem ser ignoradas.
Aos discípulos e discípulas, é necessária uma abertura de horizonte. Estar
atento à vinda do Filho do Homem é estar disposto a lutar e trabalhar pela
instauração do Reino, e isso não se faz sem uma mudança de mentalidade. O Filho
já veio; o discípulo e a discípula são desafiados, hoje, a reconhecer a sua
presença e, assim, dar um novo sentido ao seu cotidiano, sobretudo,
transformando-o. Por isso, é importante fazer bem-feitas as atividades do
dia-a-dia, sem fechar-se nelas. Logo, quem trabalha no campo que o faça visando
a construção do Reino, da mesma forma quem exerce atividade doméstica e
qualquer que seja o trabalho. A instauração do Reino exige o esforço
responsável e a esperança ativa de todas as pessoas.
O último exemplo usado para alertar os discípulos sobre a imprevisibilidade
da vinda do Filho do Homem é aquele, tão conhecido, do dono da casa que não
sabe a que hora pode ser surpreendido por um ladrão: “Compreendei bem
isso: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente
vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada” (v. 43). Essa
imagem tornou-se clássica entre os pregadores e escritores do cristianismo
nascente (cf. 2Ts 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15), como sinônimo de advertência
para manter um espírito de vigilância na vida cotidiana, tendo em vista a
imprevisibilidade da manifestação do Senhor e a construção contínua do Reino.
Infelizmente, essa imagem ajudou a criar um certo medo e angústia entre os
primeiros cristãos, levando-os até a distorcerem o sentido da vigilância, que
corresponde à corresponsabilidade de tornar, cotidianamente, o mundo melhor. Muitos
pregadores, ao longo da história, tem se apropriado desta imagem para
provocarem terror nas pessoas. No entanto, o que importa é o convite feito aos
discípulos para não desanimarem um único instante, como a exortação do último
versículo: “Por isso, ficai preparados! Porque na hora em que menos
pensais, o Filho do Homem virá” (v. 44). Essa vinda coincide com a
destruição da ordem opressora vigente e o estabelecimento do Reino de Deus, por
isso, a vigilância é fundamental, pois esse processo exigirá muito empenho dos
cristãos e cristãs.
O convite feito por Jesus no Evangelho de hoje é, portanto, que vivamos em
estado constante de preparação para o encontro do Senhor, uma vez que Ele já
veio e precisa apenas ser reconhecido e acolhido. Por isso, é preciso fazer do
cotidiano uma constante preparação, ou melhor, preparar-se no cotidiano. Longe
de ser uma mensagem de medo, o Evangelho é mensagem de salvação e boa-nova para
todos. A “Boa Nova” de hoje é que, sem alarde algum, somos chamados a realizar nossas
tarefas cotidianas já na presença dEle, tendo em vista que já veio, para que o
fazer cotidiano já seja direcionado à chegada do Reino de Deus, com a superação
de todas as injustiças e violências que continuam ofuscando a presença do
Senhor que já é “Deus conosco”, expressão que orienta toda o Evangelho de
Mateus do começo ao fim (cf. Mt 1,23; 18,20; 28,20).
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Neste começo de ano litúrgico, quero mais uma vez agradecer ao senhor, Padre Francisco Cornélio, pela sua grande colaboração a tantos presbíteros, fiéis e seminaristas que se valem deste precioso instrumento de pesquisa, que é o seu blog. Sou um leitor assíduo e sempre me utilizo das suas profundas reflexões para construir minhas homilias dominicais. Quero mais uma vez expressar minha gratidão por sua generosidade em partilhar seus conhecimentos... Deus há de recompensá-lo por esta dedicação constante. Um grande abraço e feliz caminhada neste tempo do advento e que Jesus venha fazer morada no teu coração na grande solenidade da Natividade.
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