sexta-feira, janeiro 27, 2023

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,1-12 (ANO A)

 


A liturgia deste quarto domingo do tempo comum propõe a leitura de um dos textos mais importantes do Novo Testamento: Mt 5,1-12. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha” (Mt 5–7). Inclusive, a leitura desse discurso será continuada nos próximos domingos, uma vez que, na estrutura do ano litúrgico A, ele é distribuído numa sequência de  seis domingos do tempo comum: do quarto ao nono, além de algumas festas, como a solenidade de todos os santos, por exemplo, quando se lê também o texto das bem-aventuranças, como hoje, que corresponde à introdução do discurso. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição contínua do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Sem dúvidas, essa é uma das passagens mais lidas e conhecidas de todo o Novo Testamento, apreciada por cristãos e não cristãos. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como “as palavras mais altas que a humanidade já escutou”.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação, como exige o Reino dos Céus. E as bem-aventuranças são as condições para o ingresso nesse Reino. O Novo Testamento contém duas versões das bem-aventuranças: uma em Mateus e outra em Lucas. Certamente os dois evangelistas tiveram acesso à mesma fonte, e cada um adaptou de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades, tendo em vista as diferenças entre as versões, facilmente constatadas numa leitura paralela (cf. Mt 5,1-12a // Lc 6,20-26).

Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Porém, a nona ocorrência do termo (v. 11) não deve ser considerada como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito, reforçando a exigência para que todas elas sejam intensamente vividas. Enquanto isso, a versão de Lucas contém apenas quatro bem-aventuranças, que são contrastadas com a fórmula de maldição “ai de vós”, aplicadas às situações de oposição às bem-aventuranças. Também o cenário é diferente nos dois evangelhos: enquanto em Mateus elas são proclamadas na montanha, em Lucas a proclamação se dá na planície. Essa diferença se deve à perspectiva teológica de cada evangelista. Mateus quer apresentar Jesus como o novo legislador e mestre que supera Moisés. Assim como foi na montanha que Moisés recebeu a Lei, também é da montanha que Jesus proclama as bem-aventuranças, que são consideradas a nova Lei para a comunidade cristã, infinitamente superior à antiga.

Para compreender melhor as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já foi dito anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, principalmente o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego “makárioi” (μακαριοι) em hebraico (אשרי = asherêi), além de uma felicitação, corresponde também a uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Há estudos recentes que vêem uma confluência dos dois sentidos no texto de Mateus. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem ser facilmente transformadas em mensagem de conformismo ou resignação; com ele, fica mais clara sua dimensão subversiva e transformadora, que caracteriza toda a mensagem de Jesus.  

Ainda a nível de contexto, é importante recordar a dinâmica do Evangelho de Mateus, que distribui os principais ensinamentos de Jesus em cinco grandes discursos, sendo que o discurso da montanha é o primeiro deles e o mais importante. Trata-se, portanto, do discurso inaugural de Jesus. Até então, o evangelista tinha feito duas breves referências ao ensinamento de Jesus, dizendo apenas que ele ensinava e qual era o tema da sua pregação: o Reino dos Céus (cf. Mt 4,17.23), mas sem mostrar o conteúdo propriamente. Por isso, o discurso da montanha é a primeira exposição do programa do Reino que Jesus anuncia. Isso se constata pelas diversas vezes em que o Reino (em grego: βασιλεία – basileia) é mencionado ao longo do discurso, mas o mais importante é a natureza desse Reino e seus destinatários primeiros: pobres, humildes, aflitos, injustiçados, perseguidos.

Iniciamos o estudo do texto propriamente considerando os dois primeiros versículos que funcionam como introdução às bem-aventuranças e ao inteiro discurso da montanha: «Vendo Jesus às multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los» (vv. 1-2). O evangelista já tinha dito que Jesus ensinava e realizava curas, libertava as pessoas e, por isso, grandes multidões o acompanhavam (cf. Mt 3,17.23-25). E isso é surpreendente porque a vida pública de Jesus está apenas começando. Inclusive, só tinha chamado os quatro primeiros discípulos, até então (cf. Mt 3,18-22). Isso mostra a urgência do Reino. Ele tinha um núcleo de base para iniciar uma comunidade, sendo que o mais importante era a natureza da comunidade, cujo retrato é delineado nas bem-aventuranças. O gesto de sentar-se indica a autoridade de mestre que ele possuía. Mas, ao contrário dos mestres judeus da época, ele não abre um rolo de leis para transmitir. Simplesmente, ensina, sendo ele mesmo o conteúdo. Por isso, pode-se dizer que ele é o Reino em pessoa.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Ao ler e contemplar cada uma delas, devemos recordar que elas retratam as situações vividas pelo próprio Jesus. Por isso, elas representam o retrato de Jesus e o ideal de discípulo e discípula. Eis a primeira bem-aventurança«Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptôkós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.

O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo, por isso, consolar é diferente de confortar. De fato, confortar significa encorajar a suportar uma situação difícil, enquanto consolar é eliminar o sofrimento. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação. Por isso, mais do que aceitação da aflição, essa bem-aventurança convida as pessoas aflitas a não se fecharem, não se acomodarem e buscarem a consolação. E isso não se faz sem mobilização e sem luta perseverante.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja. A terra é dom de Deus, mas sua posse pelos mansos e pequenos é conquista, fruto da confiança em Deus e da luta perseverante.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fez em toda a sua vida, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão interpelante: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades básicas que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Ser misericordioso, portanto, é reproduzir o agir de Deus no mundo, cuja misericórdia é destinada a todas as pessoas, embora tenha sempre as pessoas mais necessitadas como destinatárias primeiras. Portanto, seguir fazendo o bem ao próximo, com opção preferencial pelos mais necessitados, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar, pois a verdadeira pureza consiste em assimilar os sentimentos de Deus e transformá-los em ação, conforme as circunstâncias e as necessidades.

sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). É claro que todas as bem-aventuranças estão interligadas, não se pode separar uma da outra. Mas esta oitava é uma recapitulação mais explícita da quarta: deve-se buscar a justiça como algo indispensável à vida, a exemplo do alimento cotidiano. Mas a justiça não apenas sacia, e sim traz perseguição, pois implica no combate às injustiças. E é certo que quem luta contra injustiças recebe perseguição como resposta. Quem adere plenamente à dinâmica do Reino será certamente perseguido(a), pois a busca pelo Reino é inseparável da busca por justiça, como vai dizer o próprio Jesus na sequência do discurso: «buscai, primeiro de tudo, o Reino de Deus e sua justiça» (Mt 6,33). Então, tendo em vista que a perseguição é consequência lógica da busca pelo Reino e a justiça, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso! E foi isso o que ele mesmo fez.

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros –  a maioria – a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

As bem-aventuranças nos desafiam a compreender e reconhecer se, de fato, seguimos a Jesus, se somos seus discípulos e discípulas. Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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