A
liturgia deste quarto domingo do tempo comum propõe a leitura de um dos textos
mais importantes do Novo Testamento: Mt 5,1-12. Trata-se da introdução do
primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como
“discurso ou sermão da montanha” (Mt 5–7). Inclusive, a leitura desse discurso
será continuada nos próximos domingos, uma vez que, na estrutura do ano litúrgico A, ele é distribuído numa sequência de seis domingos do tempo comum: do quarto ao
nono, além de algumas festas, como a solenidade de todos os santos, por
exemplo, quando se lê também o texto das bem-aventuranças, como hoje, que
corresponde à introdução do discurso. Essa introdução ficou conhecida como
“bem-aventuranças”, devido à repetição contínua do termo grego makárioi (μακάριοι),
cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Sem
dúvidas, essa é uma das passagens mais lidas e conhecidas de todo o Novo
Testamento, apreciada por cristãos e não cristãos. Gandhi, por exemplo, definiu
as bem-aventuranças como “as palavras mais altas que a humanidade já escutou”.
De
todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos,
as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam
as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a
uma de resignação. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua
mensagem seja sempre de encorajamento e transformação, como exige o Reino dos
Céus. E as bem-aventuranças são as condições para o ingresso nesse Reino. O
Novo Testamento contém duas versões das bem-aventuranças: uma em Mateus e outra
em Lucas. Certamente os dois evangelistas tiveram acesso à mesma fonte, e cada
um adaptou de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades, tendo
em vista as diferenças entre as versões, facilmente constatadas numa leitura
paralela (cf. Mt 5,1-12a // Lc 6,20-26).
Na
versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores
considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por
nove vezes. Porém, a nona ocorrência do termo (v. 11) não deve ser considerada
como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito,
reforçando a exigência para que todas elas sejam intensamente vividas. Enquanto
isso, a versão de Lucas contém apenas quatro bem-aventuranças, que são
contrastadas com a fórmula de maldição “ai de vós”, aplicadas às situações de
oposição às bem-aventuranças. Também o cenário é diferente nos dois evangelhos:
enquanto em Mateus elas são proclamadas na montanha, em Lucas a proclamação se
dá na planície. Essa diferença se deve à perspectiva teológica de cada
evangelista. Mateus quer apresentar Jesus como o novo legislador e mestre que
supera Moisés. Assim como foi na montanha que Moisés recebeu a Lei, também é da
montanha que Jesus proclama as bem-aventuranças, que são consideradas a nova
Lei para a comunidade cristã, infinitamente superior à antiga.
Para
compreender melhor as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário
fazer mais uma consideração semântica. Como já foi dito anteriormente, o termo
grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι),
o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma
fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que,
embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma
mentalidade semítica, principalmente o de Mateus. Por isso, é importante
recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o
termo correspondente ao grego “makárioi” (μακαριοι) em
hebraico (אשרי = asherêi),
além de uma felicitação, corresponde também a uma forma imperativa do verbo
caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Há estudos recentes que
vêem uma confluência dos dois sentidos no texto de Mateus. De fato, sem esse
segundo sentido, as bem-aventuranças podem ser facilmente transformadas em
mensagem de conformismo ou resignação; com ele, fica mais clara sua dimensão
subversiva e transformadora, que caracteriza toda a mensagem de
Jesus.
Ainda
a nível de contexto, é importante recordar a dinâmica do Evangelho de Mateus,
que distribui os principais ensinamentos de Jesus em cinco grandes discursos,
sendo que o discurso da montanha é o primeiro deles e o mais importante.
Trata-se, portanto, do discurso inaugural de Jesus. Até então, o evangelista
tinha feito duas breves referências ao ensinamento de Jesus, dizendo apenas que
ele ensinava e qual era o tema da sua pregação: o Reino dos Céus (cf. Mt
4,17.23), mas sem mostrar o conteúdo propriamente. Por isso, o discurso da
montanha é a primeira exposição do programa do Reino que Jesus anuncia. Isso se
constata pelas diversas vezes em que o Reino (em grego: βασιλεία – basileia) é
mencionado ao longo do discurso, mas o mais importante é a natureza desse Reino
e seus destinatários primeiros: pobres, humildes, aflitos, injustiçados,
perseguidos.
Iniciamos
o estudo do texto propriamente considerando os dois primeiros versículos que
funcionam como introdução às bem-aventuranças e ao inteiro discurso da montanha:
«Vendo Jesus às multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos
aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los» (vv. 1-2). O evangelista já
tinha dito que Jesus ensinava e realizava curas, libertava as pessoas e, por
isso, grandes multidões o acompanhavam (cf. Mt 3,17.23-25). E isso é
surpreendente porque a vida pública de Jesus está apenas começando. Inclusive,
só tinha chamado os quatro primeiros discípulos, até então (cf. Mt 3,18-22).
Isso mostra a urgência do Reino. Ele tinha um núcleo de base para iniciar uma
comunidade, sendo que o mais importante era a natureza da comunidade, cujo
retrato é delineado nas bem-aventuranças. O gesto de sentar-se indica a
autoridade de mestre que ele possuía. Mas, ao contrário dos mestres judeus da
época, ele não abre um rolo de leis para transmitir. Simplesmente, ensina,
sendo ele mesmo o conteúdo. Por isso, pode-se dizer que ele é o Reino em
pessoa.
Olhemos,
pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de
transformação. Ao ler e contemplar cada uma delas, devemos recordar que elas
retratam as situações vividas pelo próprio Jesus. Por isso, elas representam o
retrato de Jesus e o ideal de discípulo e discípula. Eis a primeira
bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque
deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a
bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da
história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à
transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός –
ptôkós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se,
encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.
O
convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam,
coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino
dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e
plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα –
pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se
encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela
religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e,
conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra
encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e
lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.
A segunda
bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão
consolados» (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se
fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do
sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado
por completo, por isso, consolar é diferente de confortar. De fato, confortar
significa encorajar a suportar uma situação difícil, enquanto consolar é
eliminar o sofrimento. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil
traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem
avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação. Por isso, mais do que
aceitação da aflição, essa bem-aventurança convida as pessoas aflitas a não se
fecharem, não se acomodarem e buscarem a consolação. E isso não se faz sem
mobilização e sem luta perseverante.
Na terceira
bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque
possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e
significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso
particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da
violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais
difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência,
determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não
parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos
camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À
medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos
desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja. A terra é dom de Deus,
mas sua posse pelos mansos e pequenos é conquista, fruto da confiança em Deus e
da luta perseverante.
Como
não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo
o fez em toda a sua vida, a justiça como uma busca incessante. Por isso,
a quarta bem-aventurança é tão interpelante: «Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A
fome e a sede são as necessidades básicas que mais incomodam o ser humano.
Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a
luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando
não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há
dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.
Na quinta
bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque
encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia,
na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com
isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A
misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso,
deve ser também para os seus seguidores. Ser misericordioso, portanto, é
reproduzir o agir de Deus no mundo, cuja misericórdia é destinada a todas as
pessoas, embora tenha sempre as pessoas mais necessitadas como destinatárias
primeiras. Portanto, seguir fazendo o bem ao próximo, com opção preferencial
pelos mais necessitados, é uma das principais exigências do discipulado.
Com
a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de
purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do
judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade
daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção,
avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até
mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por
nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos
de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa
direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar, pois a verdadeira
pureza consiste em assimilar os sentimentos de Deus e transformá-los em ação,
conforme as circunstâncias e as necessidades.
A sétima
bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade
formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito
básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma,
intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de
conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום)
shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o
próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e
discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada.
Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser
chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o
pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por
isso, será chamado seu filho.
A oitava
bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o
reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os
que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v.
10). É claro que todas as bem-aventuranças estão interligadas, não se pode
separar uma da outra. Mas esta oitava é uma recapitulação mais explícita da
quarta: deve-se buscar a justiça como algo indispensável à vida, a exemplo do
alimento cotidiano. Mas a justiça não apenas sacia, e sim traz perseguição,
pois implica no combate às injustiças. E é certo que quem luta contra
injustiças recebe perseguição como resposta. Quem adere plenamente à dinâmica
do Reino será certamente perseguido(a), pois a busca pelo Reino é inseparável
da busca por justiça, como vai dizer o próprio Jesus na sequência do
discurso: «buscai, primeiro de tudo, o Reino de Deus e sua justiça» (Mt
6,33). Então, tendo em vista que a perseguição é consequência lógica da busca
pelo Reino e a justiça, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e
encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que
é vosso! E foi isso o que ele mesmo fez.
Viver
as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa
que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na
exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência.
Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve
avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o
ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão
com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois
vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de
mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a
vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação
como uma nova bem-aventurança, enquanto outros – a maioria – a vêem como um reforço e síntese
conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis.
Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou
outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois
nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou
avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.
As
bem-aventuranças nos desafiam a compreender e reconhecer se, de fato, seguimos
a Jesus, se somos seus discípulos e discípulas. Para seguir Jesus é preciso
estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a
realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar
que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de
resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino.
A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a
discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais
justo e mais fraterno.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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