Neste
domingo, a Igreja no Brasil celebra a solenidade da Epifania do Senhor, uma
festa que pode ser considerada um verdadeiro prolongamento do Natal. Epifania
quer dizer manifestação, deriva do verbo grego “epifaino” (ἐπιφαίνω), cujo
significado literal é manifestar, aparecer, resplender. Nesta solenidade
celebramos, então, a manifestação de Deus em Jesus como luz, guia e Senhor de
todo o universo. O evangelho desta festa é o mesmo para todos os anos: Mt
2,1-12, texto que compreende o episódio da visita dos magos do Oriente, os
primeiros personagens do Evangelho segundo Mateus a reconhecer Jesus como rei;
eles saíram de longe para adorar à criança recém-nascida, configurando-se como
uma das primeiras surpresas da obra de Mateus. É importante observar que,
embora a celebração recorde a manifestação de Deus, o texto apresenta um
movimento inverso: é o mundo com sua pluralidade de raças e culturas,
representado pelos magos do Oriente, que manifesta sua adesão e aceitação ao
senhorio de Jesus, indo ao seu encontro.
O texto
evangélico referido é muito rico em teologia e simbologia, além da grande
beleza que possui. É um dos textos que melhor revela as habilidades teológicas
e literárias do evangelista. Certamente, é o episódio mais recordado de todo o
evangelho da infância de Mateus (Mt 1–2). Infelizmente, ao longo da história,
foi interpretado mais folcloricamente do que teologicamente. Daí a dificuldade
de termos uma interpretação mais fidedigna ao sentido real do texto, tendo em
vista que as interpretações folclóricas, inclusive adotadas pelo cristianismo
oficial, estão muito enraizadas no imaginário popular, a começar pela
transformação dos magos em reis. O primeiro passo para uma compreensão mais
adequada, considerando a necessidade de recuperar o sentido teológico original
do texto, é distanciar-se da romântica imagem do presépio, por mais encantador
que seja.
Começamos
o estudo do texto partindo dos primeiros versículos: «Tendo nascido
Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns
magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos
judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos
adorá-lo’» (v. 1-2). Ao contrário de Lucas, Mateus não narra o momento do
nascimento de Jesus, mas apenas o menciona como um fato já acontecido, dando,
porém, informações muito importantes de tempo e espaço: nasceu em Belém, no
tempo do rei Herodes. A princípio, já é possível perceber a intenção do autor
com essa informação: está surgindo uma alternativa de poder e realeza diferente
do sistema vigente; há um deslocamento do centro para a periferia; começa uma
descentralização, o que vem a indicar que o poder exercido até então na capital
Jerusalém é um poder ilegítimo e, por isso, está desmoronando.
É claro
que é necessário o complemento da informação para termos clareza da oposição que
o autor quer apresentar entre o poder centralizado em Jerusalém e o projeto
alternativo que surge em Belém: «nasceu um rei para os judeus» (v.
2); esse dado indica que alguém estava reinando de maneira ilegítima, no caso,
Herodes e o poder imperial em geral. As indicações de tempo e espaço também
servem para legitimar a historicidade do homem Jesus de Nazaré. Ora, os
cristãos da comunidade de Mateus não tinham conhecido o homem Jesus e, por
isso, poderiam questionar a sua existência. Com esses dados, o evangelista quer
reforçar que Jesus foi um homem concreto, gente de carne e osso que nasceu e
viveu em um período histórico determinado.
A outra
grande novidade do relato, percebida ainda no primeiro versículo, está na
peculiaridade dos personagens apresentados pelo autor: «alguns magos do
Oriente» (v. 1). Ora, os magos (em grego: μάγοι – mágoi), eram
estudiosos orientais, responsáveis pela interpretação dos sonhos e pela leitura
dos fenômenos da natureza e dos astros. No mundo greco-romano, e sobretudo em
Israel, os magos eram vistos como feiticeiros e charlatões, operadores da
magia. Eram os sacerdotes de cultos pagãos da Pérsia e Babilônia; pertenciam a
uma categoria condenada pelo judaísmo e pelo cristianismo das origens. De fato,
dois episódios nos ajudam a perceber o quanto a magia era condenada na Bíblia:
a saga de Balaão, no Antigo Testamento (cf. Nm 22–24), e a tentativa de compra
do dom do Espírito Santo pelo mago Simão, no Novo Testamento (cf. At 8,9-24).
Portanto, os magos eram pessoas abomináveis à luz da religião de Israel e dos
primeiros cristãos.
Para
encobrir a rejeição que estes personagens tão controversos poderiam sofrer, a
tradição cristã dos primeiros séculos resolveu caricaturá-los, atribuindo-lhes
características que o texto bíblico não cita, como a realeza. Ao invés de
ajudar na compreensão do texto, esse tratamento real aos magos terminou
distorcendo o sentido aplicado pelo evangelista. É importante reforçar que
esses personagens são fruto da inteligência e criatividade teológica do
evangelista, ou seja, os magos não são personagens reais, mas simbólicos. A
intenção do evangelista e de sua comunidade ao apresentá-los era exatamente
mostrar que também aos distantes e sem reputação Deus se revela, e são
exatamente esses os que com mais sinceridade buscam o verdadeiro rosto de Deus,
tão difícil de ser reconhecido na pessoa de uma frágil e pobre criança, como as
elites religiosa e política não foram capazes de reconhecer. Ainda sobre o
revestimento dado pela tradição, é importante recordar que o texto bíblico não
faz menção alguma ao número dos magos; não diz que eram três, como propagou a
tradição, com base apenas no número dos dons por eles oferecidos: ouro, incenso
e mirra. Além do número três, sem fundamento no texto bíblico, a tradição também
lhes deu nomes (Gaspar, Baltasar e Melchior) e meio de transporte
(camelos). Por isso, como afirmamos no início, é necessário distanciar-se
da imagem fantasiosa do presépio para compreender bem o texto de Mateus.
Está
mais do que clara a oposição: os magos vieram de longe para adorar o Deus
verdadeiro. Foram a Jerusalém, mas lá não era possível encontrar o verdadeiro
Deus porque a elite religiosa o tinha monopolizado e distorcido a sua imagem;
como gentios, os magos eram barrados pelas paredes do templo que separava os
pagãos dos judeus piedosos. Com a pergunta «Onde está o rei dos
judeus que acaba de nascer?» (v. 2a), os magos afirmam que não
reconhecem a autoridade de Herodes, ou seja, o consideram um rei ilegítimo; com
a afirmação «nós vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo» (v.
2b), eles desafiam também a elite religiosa, mostrando que as paredes do templo
já não conseguem mais conter esse Deus que se revela em todo o universo e a
todos os povos. Portanto, os poderes político e religioso vigentes são
desmascarados com o nascimento de Jesus, e os magos são os primeiros a constatarem
esse fato.
Enquanto
Herodes exercia o poder pela força e a violência, Jesus exercerá a sua
autoridade pelo serviço; enquanto a relação com Deus, monopolizado pela elite
religiosa, era mediada por uma casta sacerdotal corrompida e através de
sacrifícios e ofertas, em Jesus é Deus quem se manifesta plenamente, sendo Ele
mesmo quem à humanidade se oferece, ao invés de exigir oferendas. Por
isso, «o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém» (v.
3), pois viam que um novo tempo estava surgindo, novas relações estavam sendo
gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus
estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer. Como
sempre, a força dos pequenos gera desconforto nos grandes.
As
preocupações de Herodes e de “toda Jerusalém”, compreendida como a elite
política, religiosa e intelectual predominantes, ou seja, sacerdotes e
escribas, leva-os a um medíocre pacto (vv. 4-6), o qual se repetirá
posteriormente e levará Jesus à morte de cruz, com as mesmas motivações: o medo
que as autoridades tinham de um autêntico “Rei dos Judeus” (cf. Mt 27,11). Isso
significa que exerciam poder de modo ilegítimo, em favor de seus próprios
interesses, sem preocupação alguma com o bem do povo. Era um poder usurpado. A pedido
de Herodes, a elite religiosa usa as Escrituras em favor de um projeto de
morte, e isso serve de advertência para as comunidades cristãs de todos os
tempos: a Palavra não pode ser instrumentalizada para interesses pessoais nem projetos
de poder. Portanto, a reunião de Herodes com os sacerdotes e mestres da Lei
prefigura o conluio que levará Jesus à morte, no final do Evangelho. No
nascimento, o pacto é feito entre Herodes e toda Jerusalém; na paixão será
entre Pilatos e o sinédrio, mas são as mesmas forças, com as mesmas práticas.
Como último recurso, Herodes tenta a fraude e o suborno, exigindo que os magos
retornem a ele quando encontrarem o menino (vv. 7-8).
Ajudados
pela Escritura e pelo próprio Herodes, os magos foram a Belém e lá, de fato,
encontraram o que estavam procurando: Jesus, Deus e luz que ilumina todos os
povos, inclusive eles, operadores de práticas abomináveis aos olhos do
judaísmo. A reação deles não poderia ser outra: «Ao verem de novo a
estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande» (v. 10). A
luz de Deus, até então sufocada por uma religião ritualista e segregadora,
agora ilumina o universo inteiro e o convida a alegrar-se com isso, pois
significa o fim de todas as barreiras, o desmoronamento de todos os muros e
sinais de separação. É neste versículo que aparece pela primeira vez a palavra
alegria no Evangelho de Mateus. É importante recordar que, enquanto o “evangelho
da infância” de Lucas (Lc 1–2) é um relato alegre do começo ao fim, inclusive as
primeiras palavras que o anjo dirige a Maria são um convite á alegria – “alegra-te
cheia de graça!” –, o relato da infância de Mateus (Mt 1–2) é totalmente dramático,
marcado por angústia, dúvida e medo (cf. Mt 1,19.13-13). Por isso, é muito relevante
perceber a primeira alegria e, ainda mais, considerando que ela parte de pessoas
sem credibilidade para os padrões religiosos de Israel.
Se os
magos se alegraram por verem a estrela, a alegria deles deve ter aumentado
ainda mais «Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe» (v.
11a). Por serem pagãos e magos, eles não podiam adentrar além do pátio do
templo reservado para os gentios e, portanto, não podiam contemplar nem adorar
verdadeiramente a divindade nacional dos judeus. Agora, é tudo diferente: na
casa, eles entram e vêem porque é o próprio Deus quem se deixa ver e conhecer
em Jesus e na comunidade cristã, personificada em Maria, a mãe. Essa
passagem é muito importante, pois em todo o primeiro capítulo de Mateus houve
uma centralidade e importância dadas à figura de José. Nesta cena, ele não é
mencionado, mas apenas Maria, como imagem da comunidade cristã, lugar
privilegiado do encontro com Jesus e da verdadeira adoração. Certamente, Mateus
teve uma intenção especial com esse detalhe: quis mostrar que Deus se deixa
conhecer parcialmente na criação, representada pela estrela (vv. 2.9.10), de
maneira mais clara ele se revela na Escritura (vv. 4-6), mas para fazer uma
autêntica experiência com ele é necessário reunir-se em comunidade, personificada
em Maria (v. 11).
É
necessário recordar o que o texto diz, desde o início, sobre o objetivo dos
magos: «adorar o rei dos judeus» (v. 2). Para isso, eles tinham
empreendido um longo caminho, inclusive errando a rota, pois foram primeiro a
Jerusalém, mas lá não o encontraram, devido à estrutura rígida e decadente da
religião oficial aliada ao poder político tirano de Herodes e do império
romano. Ao contrário de Lucas, Mateus tem uma visão extremamente negativa sobre
Jerusalém e o templo. Para Mateus, Jerusalém é sinônimo de trevas, é sinal de
morte e ameaça para o reinado de Deus. Inclusive, pós a ressurreição, para
encontrarem o Ressuscitado, os discípulos deverão retornar à Galileia (Mt
28,16-20). Por isso, somente deslocando-se para a periferia os magos puderam,
de fato, experimentar o Deus que tanto buscavam. Aqui, está o ápice do
contraste que o evangelista quer apresentar: o templo perdeu seu sentido, Deus
não habita mais nele; é necessário retirar-se para a periferia, inserir-se na
comunidade e, assim, adorar e experimentar a beleza desse Deus que quer apenas
misericórdia e amor, e não mais sacrifícios.
Quando perceberam que encontraram aquele que tanto
buscavam, os magos «ajoelharam-se diante dele e o adoraram» (v.
11). Essa atitude mostra que, finalmente, os magos se saciaram, encontraram
sentido para suas vidas e, portanto, esvaziaram-se de si, oferecendo tudo o que
tinham. Não ofereceram porque lhes fora exigido, como acontecia na religião do
templo, mas porque sentiram-se confortados e correspondidos. Enquanto os
poderes oficiais se uniam para matar, os magos, como figuras dos
marginalizados, se prostram unidos para adorar. A adoração verdadeira, ou seja,
o autêntico culto, não depende mais de um espaço específico delimitado pela
religião; é feita na própria casa; a única exigência é que seja feita em «espírito
e em verdade» (cf. J 4,24). Ajoelhar-se em adoração será a atitude das mulheres e dos discípulos
no primeiro encontro com o Ressuscitado (cf. Mt 28,9.17). Com isso, o
evangelista apresenta os magos como inauguradores do novo e autêntico culto.
Os
presentes oferecidos pelos magos, ouro, incenso e mirra (v. 11b) são simbólicos
e revelam, por um lado a identidade de Jesus e, por outro, a nova relação entre
a humanidade e Deus. O ouro, revela que Jesus é rei enquanto o recebe, mas ao
mesmo tempo diz que todas as nações podem participar do seu reino, enquanto foi
oferecido por pagãos; assim, o privilégio de Israel como povo escolhido perde o
seu sentido, pois a pertença ao Reino de Deus não é determinada por raça ou
cultura, mas pela sinceridade de coração. O incenso representa a divindade de
Jesus, ou seja, é o reconhecimento de que Ele é Deus, mas a humanidade não
precisa mais dos sacerdotes do templo para se comunicar com Ele, pois qualquer
pessoa e em qualquer lugar pode fazer isso. A mirra é o mais ambíguo dos três
presentes: é, antes de tudo, o sinal da humanidade de Jesus, uma vez que era um
perfume usado pelos judeus para embalsamar os cadáveres, como acontecerá com o
corpo do próprio Jesus, quando morrer; porém, no Cântico dos Cânticos, em diversas
passagens, a mirra é citada como o perfume da esposa amada (cf. Ct 5,5.13) e,
com muita probabilidade, Mateus quis dizer que a esposa amada de Deus deixou de
ser Israel e passou a ser toda a humanidade.
Na
conclusão do texto, encontramos uma afirmação muito significante para a
comunidade cristã de todos os tempos: «Avisados em sonho para nãos
voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho» (v.
12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico
com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e
com o próximo. Consequentemente, brota uma nova mentalidade que rejeita
qualquer forma de poder que oprime e mata, inclusive amparado pela religião,
como o complô de Herodes com os sacerdotes do templo. Para viver bem a nova
relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas, como
fizeram os magos, ao perceberem que Jerusalém só oferecia exploração e perigo.
A experiência autêntica com Deus, portanto, provoca no ser humano a necessidade
de percorrer novos caminhos, o que pode ser compreendido como uma nova maneira
de viver, com novas atitudes parecidas com as de Jesus.
À guisa
de conclusão, podemos nos questionar sobre quais caminhos que o Natal nos
instiga a percorrer de agora em diante. Se serão os caminhos de sempre, ou
seja, se continuarmos com as mesmas maneiras de pensar e compreender as coisas,
principalmente a nossa relação com Deus e o próximo, é sinal de Jesus não
nasceu em nós, ou seja, o Natal não aconteceu em nossas vidas. E Jesus se não
nasceu em nós, não poderemos manifestá-lo ao próximo. Também é importante
recordar o atual contexto eclesial: que o “outro caminho” seguido pelos magos estimule
a reflexão sinodal em curso e que cada vez mais caminhos sejam abertos em
nossas comunidades. Quanto mais disposição de “caminhar juntos” houver, mais a luz
de Cristo iluminará o mundo.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Excelente abordagem! Principalmente sobre a simbologia e todo folclore em torno dos magos.
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