Com a liturgia deste
terceiro domingo do tempo comum, iniciamos a leitura semi-contínua do Evangelho
de Mateus, a qual será interrompida após o sétimo domingo, para a vivência dos
tempos da Quaresma e da Páscoa, e retomada somente depois da solenidade da
Santíssima Trindade, já no décimo primeiro domingo. Durante esse intervalo –
quaresma, páscoa e solenidades pós-pascais – também serão lidos trechos do
Evangelho de Mateus, mas de modo aleatório, como acontece também nos tempos do
advento e do Natal, intercalando com os demais evangelhos. No ano de 2019, o
papa Francisco instituiu o terceiro domingo do tempo comum como o “Domingo da
Palavra de Deus”, com o objetivo de promover uma aproximação maior das pessoas
com a Palavra de Deus, evidenciando sua centralidade na vida da Igreja e ainda
visando despertar o interesse pelo estudo das Sagradas Escrituras. Na Igreja do Brasil, particularmente,
O texto lido hoje –
Mateus 4,12-23 – marca, de fato, o início do ministério de Jesus na Galileia,
tendo sido profundamente preparado pelos episódios anteriores: o batismo no
Jordão (Mt 3,13-17) e as tentações no deserto (Mt 4,1-11). No contexto
litúrgico da Igreja no Brasil, o que nos preparou para lermos o evangelho de
hoje foi o testemunho de João, o Batista, apontando Jesus como “o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo” e como “o Filho de Deus”, conforme o trecho do
Quarto Evangelho lido no domingo passado (Jo 1,29-34). O episódio das tentações
(Mt 4,1-11) será lido somente no primeiro domingo da quaresma. O texto de hoje
é programático; nele são delineadas as principais linhas de todo o ministério
de Jesus, ficando muito claro quais serão os principais destinatários da sua
missão libertadora e o conteúdo da sua pregação. Pela extensão do texto, não
conseguiremos comentar de maneira minuciosa versículo por versículo, mas
colheremos a mensagem central.
Partimos do primeiro
versículo, pois além de nos situar no tempo e no espaço, ele apresenta
elementos importantes para a compreensão do restante do texto: «Ao
saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia» (v.
12). A prisão de João se torna um divisor de águas na vida de Jesus. Além de marco
cronológico para o início da sua missão, é também um sinal de qual será o seu
destino, assim como o de praticamente todos os profetas: a perseguição. Do
ponto de vista geográfico, o retorno à Galileia está relacionado aos episódios
do batismo e das tentações, vividos no Jordão e no deserto, ambos localizados
na região da Judeia. Mas significa muito mais do que isso. Antes de tudo,
significa que a missão de Jesus não será uma repetição da missão de João. Ora,
se João pregou na Judeia e Jesus vai para a Galileia iniciar lá o seu
ministério, significa que há descontinuidade entre os dois. O programa de vida
de Jesus é completamente novo. A Galileia era uma região periférica, uma terra
má afamada, conhecida pela pouca ortodoxia do seu povo. Logo, o início da
missão de Jesus nessa região indica que os primeiros destinatários da sua
mensagem são as pessoas excluídas e marginalizadas, gente sem boa reputação.
Mesmo ciente da
novidade que Jesus inaugura, assim como fez no “evangelho da infância” (Mt 1–2),
o evangelista apresenta a sua missão, desde o início, como cumprimento das
profecias, por necessidade da sua comunidade. Por isso, ele explica o início na
Galileia à luz das Escrituras: «Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum,
que fica às margens do mar da Galileia, no território de Zabulon e Neftali,
para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías» (v. 13-14). A
mudança de Nazaré para Cafarnaum é estratégica. Nazaré era apenas um pequeno
povoado, o que na linguagem bíblica representa fechamento de mentalidade,
conservadorismo exagerado e apego às tradições. Com uma mensagem tão
libertadora como a sua, dificilmente Jesus seria aceito e compreendido lá, como
atesta, inclusive, o evangelista Lucas, ao dizer que após a primeira pregação
de Jesus em Nazaré já quiseram matá-lo (cf. Lc 4,16-30). Já Cafarnaum, cujo
nome significa “aldeia da consolação”, era uma cidade média e um importante
entreposto comercial. Localizada às margens do lago de Genesaré, o que Marcos e
Mateus chamam de mar da Galileia, provavelmente por questões teológicas,
Cafarnaum era um centro de circulação de pessoas, de mercadorias e de ideias.
Isso facilitava também os constantes deslocamentos de Jesus para pregar em
outros lugares. Pessoas de diversas proveniências passavam constantemente por Cafarnaum.
Num cenário assim, a Boa Nova de Jesus circularia melhor, o que não significa
que tenha havido uma acolhida unânime. É interessante recordar que, embora
todos os evangelistas apresentem Cafarnaum como um dos cenários da atuação de
Jesus, somente Mateus diz que ele fixou morada lá.
Como a comunidade de
Mateus era fortemente influenciada pelo judaísmo, ele foi buscar no profeta
Isaías (Is 8,23 – 9,1) uma passagem que justificasse essa opção tão
revolucionária de Jesus: «Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho
do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos! O povo que
vivia nas trevas viu uma grande luz» (vv. 15-16). Zabulon e Neftali
foram as primeiras tribos invadidas pelos assírios no séc. VIII a.C., onde
começou a miscigenação da população, fazendo a Galileia toda ser chamada de
“Galileia dos pagãos”. Ora, tanto o exército da Assíria deportou parte da
população local, quanto levou povos estrangeiros para habitar na Galileia,
fazendo nascer um grande sincretismo. Isso levou a população de Jerusalém e de
toda a Judeia a criar um preconceito histórico contra os galileus, tratando-os
como gente inferior, pessoas praticamente excluídas da salvação. No entanto, foram
as pessoas dessa região que Deus escolheu para conhecerem primeiro a sua luz
que brilha em Jesus. Isso é um fato bastante revolucionário: A grande luz de
Deus não foi acesa para os judeus considerados puros, frequentadores assíduos
do Templo de Jerusalém, mas para um povo desprezado, para as vítimas de
preconceitos e exclusão, gente considerada impura. O começo do ministério de
Jesus na Galileia significa, portanto, a sua identificação com os
marginalizados em geral.
Tendo apresentado o
cenário e os destinatários primeiros do ministério de Jesus, o evangelista apresenta
a sua mensagem, o conteúdo da sua pregação: «Daí em diante Jesus
começou a pregar dizendo: ‘Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo’» (v.
17). O chamado à conversão e o anúncio do Reino são o centro da mensagem de
Jesus. Mateus chama de “Reino dos Céus” a mesma realidade que os demais
evangelistas chamam de “Reino de Deus”. Provavelmente, ele evita usar aqui o
nome de Deus para não ferir a sensibilidade dos judeus, tão enraizada na sua
comunidade. Esse Reino é uma sociedade alternativa, é o sonho de Deus para a
humanidade. Ele é dos céus, porque foi todo pensado por Deus, mas seu destino é
a terra, é a história. Não se trata de uma vida futura, mas é viver a vida
presente conforme o projeto de Jesus. O Reino dos Céus é, portanto, um projeto
de mundo e sociedade onde haja igualdade, fraternidade, amor, concórdia,
solidariedade e paz; é um mundo sem preconceitos e nem exclusões.
A instauração desse
Reino na terra é tão urgente e necessária que, um pouco mais adiante, o próprio
Jesus ensinará os discípulos a pedirem ao Pai, em oração, que “Venha o teu
Reino” (Mt 6,10), ao ensiná-los a rezar o Pai nosso. Toda a práxis de Jesus é
manifestação desse Reino, porque ele mesmo é o Reino em pessoa. Por isso, ele
diz que o Reino está próximo, pois ele está presente no mundo e está prestes a
iniciar a sua missão libertadora, marcada pela prática do bem. E a sua práxis
deve ser continuada pelos seus discípulos de todos os tempos. Para abraçar um
projeto como esse é necessária uma mentalidade nova. Por isso, o anúncio do
Reino é precedido do imperativo “convertei-vos” (em grego: μετανοεῖτε – metanoeite).
Conversão significa uma mudança radical de mentalidade, e não uma simples
intensidade nas práticas religiosas e devocionais; é olhar o mundo de maneira
nova e adotar um novo estilo de vida. E a lógica do Reino exige isso.
A instauração do
Reino é tão urgente, que Jesus chama logo seus primeiros quatro colaboradores,
duas duplas de irmãos, cujos chamados se tornam paradigma vocacional válido
para todos os tempos. Eis o relato dos dois primeiros: «Quando Jesus
andava à beira do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu
irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse
a eles: ‘Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens’. Eles imediatamente
deixaram as redes e o seguiram» (vv. 18-20). O cenário do chamado dos
primeiros discípulos é o mar, embora se tratasse de um grande lago, apenas. O
evangelista chama de mar por razões teológicas. Para a mentalidade bíblica, o
mar era a morada do mal, sinônimo de perigo e morte. Propositalmente, é nesse
ambiente que Jesus escolhe as primeiras pessoas para o seu seguimento: os
irmãos Simão Pedro e André. Ele não vai a um ambiente cultual recrutar devotos,
mas vai onde há gente sem reputação e sinais de perigo e morte. Embora não
vivessem mal economicamente, pois a pesca era uma atividade rentável, os
pescadores não gozavam de nenhum prestígio social, pois o contato com o mar
tornava a atividade depreciativa.
Como se vê, o chamado
de Jesus acontece no cotidiano: os pescadores são chamados enquanto lançam as
redes. Isso serve para ilustrar a necessidade de adotar um novo estilo de vida
para seguir Jesus e, consequentemente, inserir-se no Reino. O deixar as redes
imediatamente para seguir Jesus (v. 20) significa exatamente a passagem de um
estilo de vida para outro. O convite a ser “pescadores de homens” (v. 19) deve
ser bem esclarecido, pois é muito fácil de ser deturpado, como tem sido,
inclusive. Ora, muitas vezes, usa-se essa expressão para justificar
proselitismos e até imposição de crenças, o que não combina com o projeto de
Jesus. Como afirmamos anteriormente, o mar tem um sentido muito negativo para o
mundo bíblico; é sinônimo de perigo, pois evoca o domínio do mal. Ser “pescador
de homens” (de gente!), portanto, é ser sinal de vida, e assim é a missão dos
seguidores de Jesus em todos os tempos: tirar homens e mulheres de condições
desumanas; é restituir a dignidade às pessoas, combatendo todos dos tipos de
mal que assolam o mundo, como a violência, a corrupção, a fome e as injustiças.
O seguimento de Jesus exige o comprometimento com essa causa.
Na continuidade, o
evangelista apresenta o chamado de mais uma dupla de irmãos: «Caminhando
um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu e seu
irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os
chamou. Eles imediatamente deixaram a barca e o pai, e o seguiram» (vv.
21-22). O cenário continua o mesmo, mas temos algumas novidades, principalmente
nas renúncias. Enquanto Simão Pedro e André deixaram apenas as redes, o texto
diz que Tiago e João deixaram a barca e o pai. Há, portanto, um crescendo nas
exigências. O primeiro chamado enfatiza a ruptura com a ordem
socioeconômica, representada pelas redes (v. 20), enquanto o segundo destaca a
ruptura com a estabilidade, representada pela barca, e o mundo cultural e
religioso, simbolizado pelo pai, o chefe de família. Com isso, o evangelista
quer dizer que a relação com Jesus deve ter precedência sobre todas as
instâncias da vida. Também é um sinal de que, ao longo da história, as
exigências para o seguimento de Jesus tendem a aumentar cada vez mais, conforme
os sinais dos tempos.
Na conclusão, o
evangelista apresenta um primeiro resumo da missão de Jesus, recordando o
caráter itinerante do seu ministério: «Jesus andava por toda a
Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando
todo tipo de doença e enfermidade do povo» (v. 23). Como se vê, é uma
atividade dinâmica, própria de quem não vive acomodado, mas vai ao encontro das
pessoas, onde há necessidade. Além de sintetizar a atividade de Jesus, esse
versículo também exprime a natureza da “pesca de homens” para a qual ele chamou
os discípulos: “curar todo tipo de doença e enfermidade do povo”, o que
significa esforçar-se constantemente para que as pessoas sejam libertadas de
todos os males que ferem a dignidade de filhos e filhas de Deus. E é para isso
que aponta a Palavra de Deus em sua inteireza: o cuidado com a vida.
Pe. Francisco
Cornelio Freire Rodrigues
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