A
liturgia do segundo domingo do tempo comum emprega sempre um texto do Quarto
Evangelho, independentemente do ano litúrgico vigente (ano A: Jo 1,29-34; ano
B: Jo 29-351; Ano C: Jo 2,1-11). Na prática, este domingo constitui uma espécie
de “reforço” da festa do batismo do Senhor – normalmente celebrada no primeiro
domingo –, funcionando ainda como introdução ao tempo comum. Como neste ano a
festa do batismo foi transferida para uma segunda-feira, podemos considerar
este segundo domingo como a verdadeira abertura do tempo comum, e o evangelho
lido neste dia contribui para isso: Jo 1,29-34. Nesse texto, aparecem
declarações bastante relevantes sobre a identidade e missão de Jesus, de grande
profundidade teológica, que só serão bem compreendidas ao longo do tempo, acompanhando
cada passo da sua vida pública, como propõe a dinâmica do ano litúrgico. É
importante recordar que, ao contrário dos Sinóticos, o Quarto Evangelho não
narra o batismo de Jesus, mas faz alusões implícitas a esse acontecimento, como
se vê no evangelho de hoje.
O texto
lido neste dia faz parte da primeira seção narrativa do Evangelho de João,
convencionalmente chamada pelos estudiosos de “semana inaugural” (cf. Jo
1,19–2,21). Nesse intervalo, o evangelista introduz a vida pública de Jesus com
indicações temporais que indicam a duração de uma semana. Com isso, o autor
pretende apresentar a obra de Jesus como uma nova criação, em alusão à criação
originária, desenvolvida também em uma semana (cf. Gn 1,1–2,3). O primeiro dia da
“semana inaugural” do evangelho joanino foi marcado por uma comitiva fiscalizadora,
enviada pelas autoridades religiosas de Jerusalém para interrogar João sobre
sua identidade (cf. Jo 1,19-28), e o último dia ou sétimo é marcado pelas bodas
de Caná (cf. Jo 2,1), o qual é introduzido pela expressão “no terceiro dia”,
mas em relação aos quatro dias anteriores e, portanto, é o sétimo da primeira
semana. O episódio narrado no evangelho de hoje corresponde ao segundo dia da
semana. Porém, isso não se percebe na tradução do lecionário, que substituiu o
dado temporal do texto original pela genérica fórmula de introdução “naquele
tempo”.
Em sua
versão original, o texto começa com a expressão “no dia seguinte” (em grego: τῇ ἐπαύριον – tê
apaurion). Desse modo, a forma correta do primeiro versículo é: «No
dia seguinte, João viu Jesus aproximar-se dele e disse: ‘Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo’» (v 29). O Evangelho de hoje, portanto,
apresenta o segundo dia da nova criação, ou seja, do novo tempo que o autor do
Quarto Evangelho quer apresentar. Um dia após ter sido interrogado pelos
comissários de Jerusalém, “João viu Jesus aproximar-se dele” (v. 29a). É
necessário perceber a importância da ação de Jesus: vir, aproximar-se, caminhar
em direção de alguém, no caso, de João. Uma nova ordem na história da salvação
está sendo inaugurada, e João a contempla como testemunha privilegiada: é Deus
quem vem ao encontro dos homens e mulheres, ou seja, ao encontro da humanidade.
À humanidade, cabe o papel de reconhecer, acolher e testemunhar, como fez João.
A
propósito de João, é importante recordar que, no Quarto Evangelho, ele é
identificado como testemunha, bem mais do que que pela atividade batizadora,
como acontece nos Sinóticos. Inclusive, no evangelho joanino ele não é sequer
chamado de Batista, mas apenas de João, embora se afirme que ele batizava, como
diz o evangelho de hoje (v. 33). Esse dado é bastante relevante, pois o
testemunho (em grego: μαρτυρία –
martyria) é uma categoria teológica de grande importância no Quarto Evangelho
e, nesse sentido, a figura de João se torna paradigmática para o discipulado de
Jesus em todos os tempos. João reconheceu Jesus. E os discípulos de Jesus, por
sua vez, além de reconhecê-lo, devem também manifestá-lo por meio do
testemunho, inclusive, reconhecendo-o nas situações mais adversas: nos pobres,
pecadores e pessoas marginalizadas de um modo geral.
A reação de João diante do que estava contemplando foi decisiva e corajosa. Ao afirma que Jesus é «o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!», ele fez uma das declarações mais revolucionárias de toda a Bíblia. Com essa afirmação, ele desmascarou e decretou a falência de todo um sistema religioso e político sustentado pela exploração que o sistema sacrifical do templo de Jerusalém promovia. Essa declaração revela um novo rosto de Deus e anuncia, acima de tudo, uma nova maneira de se relacionar com ele. E a maneira nova de se relacionar com Deus corresponde ao fim do sistema cultual centralizado no templo de Jerusalém, símbolo de corrupção e exploração. A expressão “Cordeiro de Deus” (em grego: ἀμνὸς τοῦ θεοῦ – amnós tu Theú) é uma das maiores novidades do Evangelho de João; em toda a Bíblia, aparece somente duas vezes (Jo 1,29.36). Devido à novidade que comporta, muitas possibilidades de interpretação foram sugeridas para essa expressão, ao longo da história, umas convincentes e outras não, umas condizentes com a lógica do Quarto Evangelho e outras não. Portanto, diversas perspectivas podem ser apresentadas.
Uma
primeira perspectiva para a compreensão da definição de Jesus como “Cordeiro de
Deus” é a messiânica. Ora, estava consolidada no imaginário do judaísmo da
época a imagem de um messias valente, guerreiro, rei forte e potente. Havia muita
expectativa para a chegada desse personagem. João desconstrói completamente
essa imagem, pois o cordeiro era símbolo da mansidão e fragilidade, o oposto
das expectativas do povo. Com isso, o evangelista quer dizer que o messias
autêntico não é um guerreiro lutador, mas homem manso e não violento. Porém,
mansidão não quer dizer resignação, como Jesus vai mostrar ao longo de sua vida
pública, lutando incessantemente pela ruptura total com os costumes e tradições
que oprimem e matam, mas sem jamais empunhar as armas da violência. Outra perspectiva
de leitura, que não exclui a primeira, mas a complementa, é a releitura da
imagem do cordeiro no Antigo Testamento, especificamente em duas ocasiões: o
cordeiro pascal (cf. Ex 12,1-28), e o Servo sofredor que é comparado a um cordeiro
(cf. Is 53,6-7). E nessas duas ocasiões o cordeiro evoca libertação: na
primeira, simboliza a libertação da escravidão no Egito; na segunda, indica que
o sofrimento do povo no exílio da Babilônia estava acabando, ou seja, a libertação
estava próxima. Em ambas as situações, a libertação simbolizada pelo cordeiro
era parcial, destinada apenas ao povo de Israel. Em Jesus o horizonte é ampliado:
ele traz libertação para o mundo inteiro.
Para a instituição
religiosa de Israel, a função do Cordeiro Jesus apontada por João era um
verdadeiro golpe mortal: tirar o pecado do mundo. Ora, todo o aparato religioso
de Israel era sustentado “às custas do pecado” do povo. Quanto mais o povo
pecasse, mais sacrifícios precisaria oferecer no templo, mais ofertas deveria
dar e, assim, mais ricas ficariam as autoridades religiosas. Sendo Jesus o
Cordeiro, é ele mesmo quem se oferece, quem se doa, logo, não há mais
necessidade de oferecer cordeiros e touros no templo. Em Jesus, Deus veio ao
encontro definitivo da humanidade, oferecendo-se por inteiro, fazendo-se carne
e habitando no mundo (cf. Jo 1,1-18). Não há mais distância entre Deus e a
humanidade, por isso, os sacrifícios do templo não mais necessários. E o Cordeiro
Jesus não apenas “expia” pecados, mas elimina definitivamente o pecado do mundo.
E a eliminação do pecado do mundo representa a falência total do templo. Jesus
não veio para expiar os pecados, mas para abolir o pecado e, não apenas de
Israel, mas da humanidade inteira, ou seja, o pecado do mundo.
Tirar o pecado do mundo significa restabelecer na humanidade a sua capacidade de comunicação com Deus e imprimir nela o amor. A visão de pecado do Quarto Evangelho é completamente diferente daquela que a religião impôs; não é a transgressão individual de preceitos criados pela própria religião, mas a falta de comunicação com Deus. E, quem tinha distanciado Deus da humanidade e, portanto, impossibilitado essa comunicação, tinha sido a própria religião. A novidade que Jesus veio trazer ao mundo, ou seja, o seu “Evangelho”, é um projeto de vida plena, marcado pela igualdade, fraternidade, justiça, solidariedade e amor; é nesse projeto que Deus se revela e, portanto, faz desaparecer o pecado. Onde se vive à maneira de Jesus, Deus se faz presente e, por isso, o pecado desaparece, o mal perde o vigor. Logo, os sistemas cultuais expiatórios perdem seu sentido e seu valor quando o projeto de Jesus é assimilado. Para quem vivia “às custas do pecado” do povo, como o templo de Jerusalém, essa nova ordem é altamente prejudicial; na verdade, é destruidora.
E o
evangelista continua mostrando o testemunho de João. E é um testemunho importante
porque reconhece a necessidade de vir depois dele alguém que já existia antes (v.
30). Assim, João reconhece o quanto são maravilhosos os desígnios de Deus: a
humanidade não poderia permanecer nem perecer daquela forma e naquele estágio
em que se encontrava antes do Cordeiro se manifestar. O que preexistia, como
fora evidenciado pelo evangelista no prólogo (cf. Jo 1,1-18), deveria se
manifestar, e João teve a graça de testemunhar essa manifestação que marcou o
início de uma nova humanidade ou nova criação. João tinha consciência de que,
embora a salvação agora contemplada, tivesse um alcance universal, seria
manifestada primeiro a Israel, através do sinal exterior do seu batismo com
água (v. 31). Portanto, no momento da eleição por privilégio, no tempo de João
por necessidade, Israel não poderia deixar de ser o primeiro campo de
manifestação dessa nova ordem ou etapa da história da salvação. O desenrolar do
Evangelho, contudo, vai mostrar que, embora tenha sido o primeiro destinatário,
Israel não reconheceu.
A
continuidade do testemunho de João atesta sua autenticidade: ele mesmo fez a
experiência e viu «O Espírito descer como uma pomba, do céu e permanecer
sobre ele» (v. 32). Com essa imagem, João atesta a provisoriedade do seu
batismo e da religião: o Espírito desceu do céu e permaneceu em Jesus; logo, a
morada do divino na terra não é mais o templo, mas todo ser humano que acolhe e
assimila o jeito de viver de Jesus, uma vez que, após a ressurreição, esse
mesmo Espírito será enviado a toda a humanidade. João proclama que Jesus é a
morada do Espírito e, assim, a humanidade é transformada e reordenada. É a
contemplação da descida e permanência do Espírito em Jesus (v. 33) que dá a
João a certeza de que Jesus é, inclusive, mais do que Cordeiro: «Eu
vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus!’» (v. 34).
Afirmação
de que Jesus é o Filho de Deus não revela apenas um traço da sua identidade, mas
aponta para um novo jeito de se relacionar com Deus. Revela a comunhão e o amor
recíprocos entre os dois. Sendo Filho de Deus, Jesus é “igual” ao Pai e,
portanto, herdeiro; por ter em si o Espírito, somente ele poderá doá-lo,
transmitindo-o a toda a humanidade, como fará após a ressurreição. Assim,
acolhendo esse Espírito, todos podem tornar-se também filhos de Deus (cf. Jo
1,12) e, consequentemente, também doadores do Espírito Santo. O reconhecimento
de Jesus como Filho de Deus é o objetivo de todo o Quarto Evangelho, como vem
afirmado na primeira conclusão: «Esses sinais foram escritos para crerdes
que Jesus é o Filho de Deus» (Jo 20,31a). Por isso, logo no início
apresenta uma testemunha privilegiada, João (cf. Jo 1,6-8.19.29.32.34), e no
final, toda a comunidade dos discípulos e discípulas (cf. Jo 20,1-31).
Esperava-se um Messias
valente para exterminar os pecadores... Deus enviou um, manso como um cordeiro,
para tirar o pecado do mundo, através de uma proposta nova de vida para todos,
principalmente os pecadores e todas as pessoas marginalizadas. A condição de
Jesus como Cordeiro e Filho de Deus representam a humanização completa que ele
veio oferecer ao mundo. É a superação do Deus distante e rígido
que exigia sacríficos pelo Deus manifesta sua glória na fragilidade da carne
humano, como celebramos no natal e cujos ecos se sentem ainda na liturgia de
hoje.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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