Após uma sequência de seis domingos, a liturgia
interrompe o tempo comum para viver e celebrar um de seus tempos mais fortes, a
Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas, com o convite à conversão, em
preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo deste tempo especial.
Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma
compreende a narrativa das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, logo após
ser batizado, como preparação para o início de seu ministério. Esse é um
episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um
dado que confirma a sua grande importância para as primeiras comunidades
cristãs. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, nós lemos a versão das
tentações do Evangelho de Mateus – 4,1-11. Se trata de um texto bastante rico,
muito bem elaborado, tanto do ponto de vista literário quanto teológico, com
uso abundante de linguagem simbólica.
Marcado por forte simbologia, o evangelho de hoje
corre o sério risco de ser mal compreendido, devido a nossa tendência
equivocada de considerar os evangelhos como livros de crônicas exatas da vida
de Jesus, esquecendo o aspecto simbólico que predomina neste tipo de relato.
Por isso, é necessário, a nível de introdução, fazer algumas considerações
importantes para uma adequada compreensão. A fonte original deste relato é o
Evangelho de Marcos, e não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das
tentações. Marcos apenas diz que «Jesus esteve no deserto durante
quarenta dias sendo tentado por Satanás» (Mc 1,13); dessa informação
simples e vaga, o evangelista Mateus, com muita criatividade, e atendendo às
necessidades da sua comunidade, ilustrou a história que lemos hoje na liturgia,
como fez também Lucas (cf. Lc 4,1-13).
A nível de contexto, é imprescindível recordar que o
relato das tentações segue, imediatamente, ao relato do batismo – cf. Mt 3,13-17
– e, por isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do
batismo, João tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no
batismo o Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou
como o seu “Filho Amado”. Logo, o principal objetivo do evangelista com
este episódio de hoje é apresentar o comportamento de Jesus como o enviado de
Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação no batismo, cena
anterior ao texto de hoje. E ele vai mostrar que Jesus permanecerá fiel aos
propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com os
valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo
diabo. Portanto, esse é um texto programático para a comunidade cristã,
pois indica como deve agir e resistir ao mal quem se deixa conduzir pelo
Espírito Santo, missão
comum a todos os batizados e batizadas.
Iniciamos nossa reflexão considerando os dois
primeiros versículos do texto: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto,
para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites,
e, depois disso, sentiu fome» (vv. 1-2). Ora, o mesmo Espírito
Santo que desceu em forma de pomba (cf. Mt 3,16) no batismo, acompanhará Jesus
em todos os seus passos e ações; com o batismo, foi inaugurada sua vida
pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito
Santo, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Aqui, o deserto não é um
indicativo geográfico, mas teológico. A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo,
indica que ele está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse
e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos pelos quais Israel passou, desde
a saída do Egito até a conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do
nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez
que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus, é verdadeiramente ser humano,
assumiu a humanidade em todas as suas dimensões. Embora o deserto evoque a
provação e a dificuldade, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com
Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas
apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal
da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Uma vez que o deserto
também é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que
tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não
é uma pessoa blindada. O autor das tentações é o diabo (em grego: διαβολος – diábolos), palavra grega que literalmente significa aquele
que divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de
Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser
específico, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus; muitas vezes é a
própria estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.
Se o deserto não é um dado geográfico, assim também os
“quarenta dias” que Jesus lá passou não podem ser considerados como um dado
cronológico exato. Mais uma vez, trata-se de um dado teológico, e de grande
relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta relacionado ao tempo
no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta dias e quarenta
noites (cf. Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a montanha, antes
de receber a Lei (cf. Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no deserto durou
quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade e infidelidade, idolatria e
prova (Ex 44,28); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias rumo ao
monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e personagens
importantes da história de Israel, esse número quer dizer também uma etapa
completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração (quarenta anos). Quando se
trata de dias, é o tempo necessário para assimilar um grande ensinamento.
Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é
também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma
vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer
que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de
conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder.
A primeira tentação diz respeito à maneira de
relacionar-se com as coisas; a lógica do império incentivava o consumo e a
satisfação dos desejos, o que Jesus rejeita. Eis o que diz a primeira
tentação: «Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: ‘Se és o
Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães! Mas Jesus
respondeu: ‘Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que
sai da boca de Deus’» (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe
que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito
mais do que pão. Por isso, com base na Escritura (cf. Dt 8,3), Ele não dispensa
o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena
não depende somente do alimento material, mas de todos os valores do Reino
contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que será explicitada no dec0rrer
do seu ministério. O messianismo da época previa um messias milagreiro,
ao que Jesus se opõe radicalmente; Ele não veio ao mundo para resolver os
problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e ainda querem muitos grupos
e movimentos religiosos. Por sinal, essa é única vez em que o evangelista
Mateus dá ao diabo o nome de “tentador” (em grego: πειράζων – peirazón), uma derivação do verbo tentar (em grego:
πειράζω – peirázo), o mesmo verbo que
ele aplica aos líderes religiosos, especialmente os fariseus, que põe Jesus à
prova durante o evangelho (16,1; 19,3; 22,18.35).
A segunda tentação chama a atenção para a relação com
Deus: «Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a
parte mais alta do Templo, e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, lança-te daqui
abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e
eles te levarão nas mãos, mas para que não tropeces em alguma pedra’. Jesus lhe
respondeu: ‘Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’» (v.
5-7). Ora, no templo de Jerusalém, onde a religião dizia que Deus morava,
o que mais se podia esperar era milagres! Jesus resiste à tentação do milagre
fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que
distribui anjos por todas as partes para guiar e proteger os seus “filhos bons”
e castigar os maus, como afirmava a religião da época, não é o Deus das visões
e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas é o Deus da simplicidade, das
coisas pequenas, porque age a partir de dentro do ser humano.
A terceira tentação diz respeito à relação com o
próximo, sobretudo quanto à maneira de conceber e exercer o poder: «Novamente,
o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do
mundo e sua glória, E lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares
diante de mim, para me adorar’. Jesus lhe disse: ‘Vai-te embora, Satanás,
porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás
culto’» (vv. 8-10). A lógica religiosa-imperial incentivava a
busca constante por prestígio e poder e, consequentemente, de domínio sobre o
outro. Cada vez mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e
poderoso, capaz de julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para
decepção de muitos, Jesus apresentou-se como messias servo e sofredor. Por
isso, rejeita toda e qualquer forma de poder, pois, mesmo que esse seja
exercido em nome de Deus, será sempre de origem diabólica, uma vez que impede a
concretização de uma fraternidade universal. O diabo apresenta a Jesus todos os
reinos do mundo; significa que há muitos, enquanto Jesus falará de um único
Reino, o Reino dos Céus, como sinal de unidade e fraternidade. A multiplicidade
de reinos do mundo significa a falta de concórdia e harmonia, decorrente das
formas tirânicas e ilegítimas do exercício do poder.
Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio
de exercício de sua autoridade, e fruto de suas convicções de Filho Amado do
Pai. Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e quer apenas que o
seu amor chegue, através dos seus seguidores e seguidoras, em todos os confins
da terra e, assim, que a humanidade seja transformada por esse amor. É claro
que o evangelista não descreve o diabo como dono do mundo; mas está denunciando
que o poder exercido até então, em todos os reinos, marcado pela exploração,
injustiça e opressão, segue a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe
com o Reino dos Céus anunciado por Jesus, marcado pelo amor, pelo serviço, a
justiça e a fraternidade.
Na conclusão, diz o evangelista: «Então o diabo
o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus» (v.
11). O diabo se afastou porque não encontrou em Jesus um aliado. Devido à
sua comunhão de amor com o Pai, Jesus sabia discernir e fazer opção pelo lado
do amor e da justiça, inclusive, foi para isso que o Pai lhe enviou ao mundo. Ao
falar do serviço dos anjos a Jesus, o evangelista emprega um verbo que
significa especificamente o serviço de mesa, ou seja, o serviço do pão. É esse
o sentido do verbo grego “diakonêo” (διακονέω), do qual
deriva o termo diácono (em grego: διάκονος – diáconos). Ao
invés de comer um pão fruto de uma mera demonstração de poder, Jesus recebe o
pão como dom gratuito; e aquilo que é dom deve ser partilhado, como ele mesmo
fará, seja partilhando o pão com as multidões famintas (cf. Mt 15,32-39), seja
doando a sua própria vida como alimento (cf. Mt 26,26-30).
As três tentações ou provas
relatadas no evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser
humano deve relacionar-se com as coisas, com Deus e com o próximo. São como uma
parábola da vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja
religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai
caracterizar o Reino dos Céus como uma sociedade alternativa a todas formas de
organização social até então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não
pela religião. Diante disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento
da Escritura entre o diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em
toda a vida de Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos
do seu tempo.
A resistência de Jesus,
recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs
de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto de Jesus dependem
essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao
perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois
também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus. É um alerta
de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de
pessoas muito religiosas.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Reflexão maravilhosa, muito obrigado.
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