O evangelho da festa da Sagrada Família neste ano é Lc 2,22-40, texto que narra o episódio conhecido como apresentação de Jesus no templo de Jerusalém. De início, é importante recordar que, com este relato, o evangelista não pretendia apresentar um tratado sobre a família, mas revelar a identidade messiânica de Jesus e, ao mesmo tempo, a sua “normalidade”, mostrando que ele não caiu do céu, mas nasceu e criou-se no seio de uma família judaica comum, condicionado aos costumes e leis da sua época, embora capaz de contradizê-los e até negá-los, quando for necessário, como será demonstrado ao longo do Evangelho. Trata-se, portanto, de um texto de alta concentração cristológica, no qual convergem diversos elementos do Antigo Testamento para a novidade de Jesus, como preparação para o seu reconhecimento como salvador universal e “luz de todas as nações (v. 32). Inserido no chamado “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), faz parte de uma sequência de episódios iniciada com o relato do nascimento de Jesus (Lc 2,1-7): o anúncio do anjo aos pastores (Lc 2,8-12), o canto dos anjos glorificando a Deus (Lc 2,13-14), a visita dos pastores à manjedoura em Belém (Lc 2,15-20), até a circuncisão e imposição do nome Jesus (Lc 2,21).
Além do
relato da apresentação do menino e da purificação da mãe, como cumprimento dos
preceitos da Lei (vv. 22-24), o texto compreende também os testemunhos de
Simeão (vv. 25-35) e Ana (vv. 36-38), o que lhe confere uma riqueza ainda
maior. De fato, o simples cumprimento dos preceitos da Lei não revela nada de
extraordinário, pois todas as famílias da época faziam a mesma coisa. Inclusive,
a intenção do evangelista, ao mencioná-lo, é mostrar a inserção de Jesus na
história, na vida concreta de um povo, vivendo o seu cotidiano. O que, de fato,
desconcerta e apresenta grande novidade neste texto são os testemunhos de
Simeão e Ana, enriquecendo a cristologia do texto com suas respectivas
revelações sobre a identidade messiânica de Jesus. Inclusive, o ponto alto do
episódio é o cântico de Simeão. Na conclusão, o autor fala do retorno de Jesus
com seus pais à vida cotidiana de Nazaré e apresenta uma pequena síntese do seu
crescimento acompanhado da força e a graça de Deus (vv. 39-40). Tudo isso faz
parte das intenções teológicas e das capacidades literárias de Lucas,
respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Por tratar-se de
um texto bastante longo, não comentaremos todos os versículos. Por último,
recordemos que tudo o que Lucas apresenta no seu “evangelho da infância” funciona
como introdução e chave de leitura para toda a sua obra.
Feitas as
devidas observações a nível de contexto, olhemos para o texto, buscando a sua
compreensão. Como afirmamos anteriormente, esse texto possui uma alta
concentração cristológica; o seu centro é o Cristo, e isso já pode ser
percebido no primeiro versículo, que diz: «Quando se completaram os
dias da purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José
levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor» (v. 22).
Ora, o preceito de purificação era aplicado somente à mãe: quarenta dias após o
parto, se a criança fosse menino, e oitenta dias se fosse menina (Lv 12,1-8). A
lei exigia apenas que a mãe se apresentasse ao sacerdote, levando a oferta prescrita.
Ao inserir Jesus na cena, Lucas pretende evidenciar a sua importância e
centralidade, mostrando que tudo no Evangelho gira em torno dele. Ora, não
havia nenhum preceito que exigisse a apresentação da criança. A Lei determinava
apenas a consagração do primogênito (v. 23 = Ex 13,2). Para essa consagração
não havia necessidade de levar a criança ao sacerdote, mas apenas o pagamento
do seu resgate (Ex 34,19-20). Ora, em Israel, todo primogênito menino pertencia
a Deus, sendo consagrado para o serviço do templo, mas como esse serviço já era
exercido pela tribo de Levi, os primogênitos de outras tribos ficavam mesmo com
seus pais, que deveriam pagar um valor ao templo, como resgate. Exigia-se
apenas que o pai fosse levar a oferta. As motivações de Lucas são estritamente
teológicas, ao inserir no episódio elementos que, de certo modo, não se
aplicavam à situação. Com isso, ele apresenta Jesus inserido na vida concreta
do povo judeu com suas tradições, mas com plena liberdade para transgredir. Isso
quer dizer que nenhuma tradição ou doutrina é capaz de conter Jesus e seu agir,
como será mostrado nos relatos da sua vida pública.
Além de evidenciar
a centralidade de Jesus na cena, mesmo sem correspondência com um preceito
legal, com a apresentação dele no templo o evangelista introduz um dos temas
mais relevantes de seu projeto
teológico: a cidade de Jerusalém como destino da missão de Jesus e,
posteriormente, como ponto de partida da missão cristã que, de lá, deverá se
estender por todo o mundo (At 1,8). Por isso, ainda no “evangelho da infância”,
ele vai mostrar Jesus indo a Jerusalém mais uma vez, aos doze anos, quando se
perde de seus pais e é encontrado em meio aos doutores, discutindo teologia, no
templo (Lc 2,41-49). É, portanto, do interesse teológico de Lucas mostrar Jesus
em Jerusalém. Além, disso, para ele é importante também mostrar Jesus em
movimento, percorrendo caminhos desde os primeiros dias de sua vida. Inclusive,
ele já apresentou Jesus em caminho antes mesmo de nascer, tão logo foi gerado
no ventre de Maria, tanto no episódio da visitação a Isabel, quanto na viagem
de Nazaré a Belém, para o recenseamento, terminando com o nascimento. Com isso,
ele antecipa, de modo prefigurativo, alguns dos traços mais característicos
identidade da Igreja: a missionariedade e a sinodalidade, temas que serão
introduzidos ao longo do ministério de Jesus, no Evangelho, e desenvolvidos no
segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.
Outro tema
relevante de toda a obra de Lucas introduzido neste episódio é a identificação
de Jesus com os pobres e a consequente opção por eles, o que também deve
nortear a vida da Igreja em todos os tempos. Neste episódio, esse tema vem
evidenciado, em primeiro lugar, pela descrição da oferta de José e Maria pela
purificação da mãe: «Foram também oferecer o sacrifício – um par de
rolas ou dois pombinhos – como está ordenado na Lei do Senhor» (v.
24). Ora, para a purificação da mãe, a oferta deveria ser de um cordeiro, com
exceção para as famílias pobres que podiam oferecer um par de rolas ou dois
pombinhos (Lv 12,8), como fizeram José e Maria. Aqui, o evangelista diz com
clareza que eles fizeram a oferta dos pobres. Com isso, isso, ele evidencia que
Jesus veio ao mundo pobre, pelos pobres, para os pobres e para ficar com os
pobres, sobretudo. Sua identificação é clara com os últimos de Israel e,
consequentemente, de todo o mundo: humildes, pecadores, mulheres e todas as
categorias de pessoas marginalizados em geral. É com esse detalhe que o
evangelista encerra as descrições rituais do episódio. Portanto, pegando a deixa
do título desta festa, é conveniente lembrar que a “Sagrada Família” foi uma
família pobre. Nos versículos seguintes ele apresentará os testemunhos de
Simeão e Ana como centro do relato. Na verdade, ele usou os preceitos da Lei e
os ritos apenas como pretexto para tratar da identidade messiânica de Jesus,
como faz em seguida.
Simeão e Ana são personagens
exclusivos de Lucas. São frutos da sua teologia e são personalidades
corporativas, ou seja, representam uma coletividade: a parcela do povo de
Israel que permaneceu fiel às promessas de Deus, especialmente os mais pobres,
e que reconhece Jesus como o cumprimento das promessas e a plenitude da Lei.
Eis a descrição de Simeão: «Em Jerusalém havia um homem chamado Simeão,
o qual era justo e piedoso, e esperava a consolação do povo de Israel. O
Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de
ver o Messias que vem do Senhor» (v. 25-26). As qualidades de justo e
piedoso sintetizam o que Deus espera do ser humano. É sinônimo de conduta reta
diante de Deus e do próximo. Esperar a consolação significa reconhecer e
assumir uma situação de tristeza, de negação da vida. Por isso, Lucas enfatiza
tanto a alegria ao longo do seu Evangelho. Israel vivia uma situação caótica e
triste e, diante disso, muitos perderam a esperança e o gosto pela vida. Simeão,
cujo nome significa “o que foi ouvido por Deus”, soube esperar e reconhecer em
Jesus o consolo definitivo, a salvação de quem estava literalmente perdido, sem
perspectivas, devido à opressão causada pelos sistemas de poder, tanto o
político-econômico quanto o religioso. Certamente, ele clamou muito ao Senhor
e, por isso, foi ouvido, literalmente, recebendo a consolação que tanto
esperava. Vivendo em situação tão adversa e caótica, somente tendo consigo o
Espírito Santo, Simeão poderia sentir a libertação definitiva tão próxima. Esse
dado também é muito importante: é o Espírito Santo quem credencia o ser humano
a reconhecer Jesus como Messias e Salvador e a acolher a novidade de Jesus e do
seu Evangelho.
E o
Espírito Santo é citado três vezes como fonte de inspiração e revelação para
Simeão (vv. 25.26.27), embora a ocorrência do versículo 26 tenha sido omitida
pela tradução do lecionário. É importante recordar esse dado porque o Espírito
Santo também constitui um tema e personagem determinante para todo o conjunto
da obra lucana (Lc-At). Por sinal, a consolação, objeto da espera de Simeão, na
língua original dos evangelhos (em grego: παράκλησις – paráclesis), possui a mesma raiz de “paráclito” –
consolador –, um dos títulos atribuídos ao Espírito Santo no Evangelho de João
e adotado posteriormente no desenvolvimento da teologia cristã. Portanto, tudo
o que Simeão faz é motivado pelo Espírito Santo, como mostra a continuação do
texto, a começar pelo seguinte gesto: «Simeão tomou o menino nos braços e
bendisse a Deus» (v. 28). Com esse gesto, Lucas quer afirmar que o
velho acolheu o novo, os dois testamentos (alianças) se encontraram e podem, de
agora em diante, conviver em harmonia, desde que haja abertura ao Espírito
Santo da parte do antigo. O povo da antiga aliança é consolado ao participar da
nova aliança, cedendo aos apelos do Espírito Santo. Isso requer um aprofundamento
na vivência da fé, graças ao Espírito Santo. Conforme já profetizara Isaías (Is
49,6), Simeão percebe que é preciso abrir mão de certos pensamentos
hegemônicos: a glória de Israel é compatível com a luz das nações. Ora, luz é
também sinal de glória. Portanto, se Israel encontra sua glória, os povos de
todo o mundo são também iluminados, e não dominados, como esperavam os
movimentos mais nacionalistas e radicais.
Lucas
aproveita a cena para introduzir mais um cântico no seu “evangelho da
infância”, colocando-o, dessa vez, na boca de Simeão (vv. 29-32), conforme já
fizera com Maria (Lc 1,46-55), com Zacarias (Lc 1,68-79), e com os anjos (Lc
2,14). Somente com olhos e coração atentos ao Espírito Santo, era possível
afirmar que a salvação foi vista, contemplada. Assim, Simeão e, nele, todo o
Israel fiel, pode dizer, finalmente: «podes deixar teu servo partir em
paz» (v. 30). Com essa fala de Simeão, podemos dizer que, de fato, o
Antigo Testamento deu ao Novo seu lugar! Simeão, ajudado pelo Espírito Santo,
antecipa a missão de Jesus e o efeito dessa: ser sinal de contradição e causa
de queda e reerguimento para muitos em Israel (v. 34). O Evangelho não será
acolhido por todos e, portanto, a sua acolhida causará divisão, angústia e,
consequentemente, queda e elevação. Na verdade, Lucas está reforçando o que já
tinha apresentado no cântico de Maria: o Deus de Israel e de Jesus eleva os
humildes e faz cair os soberbos (Lc 1,52ss). Quanto ao que Simeão diz em
relação a Maria, a mãe, não é uma profecia sobre o drama da cruz, como muitas
interpretações afirmam. A espada é uma imagem da palavra de Deus no Antigo
Testamento (Is 49,2). Portanto, será a Palavra de Deus, revelada plenamente em
Jesus, a atravessar a alma de Maria: o Evangelho dividirá o povo judeu; uns o
acolherão, outros não. Como imagem e figura de Israel, Maria viveu em si esse
drama: ela acolheu a Palavra de corpo e alma (Lc 1,38), mas assistiu a uma
grande parcela do seu povo rejeitá-la.
Quanto a
Ana, seu papel é semelhante ao de Simeão, embora a sua descrição seja bem
diferente: «Havia também uma profetisa, chamada Ana, filha de Fanuel,
da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem, tinha sido casada
e vivera sete anos com o marido» (v. 36). É característica de Lucas
atribuir importância a pessoas praticamente destinadas ao esquecimento,
conforme os condicionamentos da época. Assim ele faz com Ana. Ao mencioná-la,
ele quer enfatizar o papel da mulher na nova aliança, resgatando uma
importância que a antiga lhe tinha negado. Ao qualificá-la como profetisa, o
evangelista lhe atribui um papel muito importante, pois cinco mulheres, em toda
a Bíblia, receberam esse título; quatro no Antigo Testamento: Miriam, a irmã de
Moisés (Ex 15,20), Débora (Jz 4,4), Hulda (2Rs 22,14), e a esposa de Isaías (Is
8,3); e ela no Novo. A tribo de Aser, da qual Ana era proveniente, localizada
no extremo norte da Galileia, era a mais distante de Jerusalém, e sua população
era considerada semi-pagã pelas autoridades religiosas da época. Esse dado
também evidencia a predileção de Deus pelo que é rejeitado e marginalizado. Todos
os dados sobre Ana, portanto, são muito significativos para o plano teológico
de Lucas e para o projeto do Reino de Deus que será anunciado por Jesus e deve
ser continuado pela comunidade cristã, ao longo da história.
A
continuação da caracterização de Ana possui rico significado teológico,
servindo também de introdução e chave de leitura para o conjunto da obra de
Lucas. Eis o que se diz dela: «Depois ficara viúva, e agora já estava com oitenta
e quatro anos. Não saía do templo, dia e noite servindo a Deus com jejuns e
orações» (v. 37). O estado de viuvez já é suficiente para Ana ocupar um
espaço relevante na obra de Lucas, o autor do Novo Testamento mais atento à
situação das viúvas (Lc 4,25-26; 7,12; 20,47; 21,2-3; At 6,1ss;
9,31.41), como exemplo de pessoas vulneráveis e necessitadas,
que se tornam protagonistas da nova história e do mundo novo inaugurado por
Jesus. Com isso, ele recupera o sentido do cuidado com as viúvas previsto na
legislação de Israel, mas esquecido ao longo da história (Ex 22,22-23; Dt
24,19-21; Is 10,1), e reafirma as opções de Jesus, reforçando quais devem ser
as opções da comunidade cristã. A idade de Ana também é bastante significativa:
84 anos, é idade plena para uma pessoa judia. Significa 7 vezes 12, ou seja,
Israel (número 12) chegando à perfeição (número 7); portanto, Ana representa o
Israel ideal que encontrou em Jesus a sua razão de ser. Por isso, ela «pôs-se
a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de
Jerusalém» (v. 38). O louvor é consequência de quem se reencontra com
a alegria e o gosto pela vida, algo que Lucas valoriza bastante em sua obra
(Evangelho e Atos). Ana, ao louvar a Deus, se solidariza com todos aqueles que
esperavam a libertação. Ora, libertação é o desejo de quem se sente na
escravidão. Ela reconhece Jesus como a libertação definitiva de quem se
encontrava escravizado pelos poderes econômico, político e religioso da época.
Diante de
tudo o que se dizia do menino, a reação dos seus pais não poderia ser
diferente: estavam maravilhados (v. 33). Assim como Simeão e Ana, José e Maria
também estavam cansados da vida com suas mazelas, exploração e desencantos.
Porém, mantiveram a esperança viva; não desanimaram, esperaram no Senhor e
viram a chegada da libertação e da consolação. Por isso, são para nós
testemunhas autênticas de um Deus que não deixa de cumprir as suas promessas e
que olha, especialmente, pelos mais necessitados de todos os tempos. Em Jesus,
as promessas de Deus são realizadas, o Antigo Testamento é cumprido, porém, de
modo surpreendente: a mensagem salvífica de Jesus é tão grande que Israel não é
capaz de comportá-la; por isso, transcende, é luz para todos os povos!
Maravilhar-se é admirar-se, encantar-se. Em Jesus, uma nova história começa
tendo como protagonistas os pobres, pequenos e humildes, ou seja, os
necessitados de consolação e de libertação.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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