sexta-feira, dezembro 29, 2023

REFLEXÃO PARA A FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA DE JESUS, MARIA E JOSÉ – LUCAS 2,22-40 (ANO B)

O evangelho da festa da Sagrada Família neste ano é Lc 2,22-40, texto que narra o episódio conhecido como apresentação de Jesus no templo de Jerusalém. De início, é importante recordar que, com este relato, o evangelista não pretendia apresentar um tratado sobre a família, mas revelar a identidade messiânica de Jesus e, ao mesmo tempo, a sua “normalidade”, mostrando que ele não caiu do céu, mas nasceu e criou-se no seio de uma família judaica comum, condicionado aos costumes e leis da sua época, embora capaz de contradizê-los e até negá-los, quando for necessário, como será demonstrado ao longo do Evangelho. Trata-se, portanto, de um texto de alta concentração cristológica, no qual convergem diversos elementos do Antigo Testamento para a novidade de Jesus, como preparação para o seu reconhecimento como salvador universal e “luz de todas as nações (v. 32). Inserido no chamado “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), faz parte de uma sequência de episódios iniciada com o relato do nascimento de Jesus (Lc 2,1-7): o anúncio do anjo aos pastores (Lc 2,8-12), o canto dos anjos glorificando a Deus (Lc 2,13-14), a visita dos pastores à manjedoura em Belém (Lc 2,15-20), até a circuncisão e imposição do nome Jesus (Lc 2,21).

Além do relato da apresentação do menino e da purificação da mãe, como cumprimento dos preceitos da Lei (vv. 22-24), o texto compreende também os testemunhos de Simeão (vv. 25-35) e Ana (vv. 36-38), o que lhe confere uma riqueza ainda maior. De fato, o simples cumprimento dos preceitos da Lei não revela nada de extraordinário, pois todas as famílias da época faziam a mesma coisa. Inclusive, a intenção do evangelista, ao mencioná-lo, é mostrar a inserção de Jesus na história, na vida concreta de um povo, vivendo o seu cotidiano. O que, de fato, desconcerta e apresenta grande novidade neste texto são os testemunhos de Simeão e Ana, enriquecendo a cristologia do texto com suas respectivas revelações sobre a identidade messiânica de Jesus. Inclusive, o ponto alto do episódio é o cântico de Simeão. Na conclusão, o autor fala do retorno de Jesus com seus pais à vida cotidiana de Nazaré e apresenta uma pequena síntese do seu crescimento acompanhado da força e a graça de Deus (vv. 39-40). Tudo isso faz parte das intenções teológicas e das capacidades literárias de Lucas, respondendo às necessidades de suas respectivas comunidades. Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos todos os versículos. Por último, recordemos que tudo o que Lucas apresenta no seu “evangelho da infância” funciona como introdução e chave de leitura para toda a sua obra.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, olhemos para o texto, buscando a sua compreensão. Como afirmamos anteriormente, esse texto possui uma alta concentração cristológica; o seu centro é o Cristo, e isso já pode ser percebido no primeiro versículo, que diz: «Quando se completaram os dias da purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor» (v. 22). Ora, o preceito de purificação era aplicado somente à mãe: quarenta dias após o parto, se a criança fosse menino, e oitenta dias se fosse menina (Lv 12,1-8). A lei exigia apenas que a mãe se apresentasse ao sacerdote, levando a oferta prescrita. Ao inserir Jesus na cena, Lucas pretende evidenciar a sua importância e centralidade, mostrando que tudo no Evangelho gira em torno dele. Ora, não havia nenhum preceito que exigisse a apresentação da criança. A Lei determinava apenas a consagração do primogênito (v. 23 = Ex 13,2). Para essa consagração não havia necessidade de levar a criança ao sacerdote, mas apenas o pagamento do seu resgate (Ex 34,19-20). Ora, em Israel, todo primogênito menino pertencia a Deus, sendo consagrado para o serviço do templo, mas como esse serviço já era exercido pela tribo de Levi, os primogênitos de outras tribos ficavam mesmo com seus pais, que deveriam pagar um valor ao templo, como resgate. Exigia-se apenas que o pai fosse levar a oferta. As motivações de Lucas são estritamente teológicas, ao inserir no episódio elementos que, de certo modo, não se aplicavam à situação. Com isso, ele apresenta Jesus inserido na vida concreta do povo judeu com suas tradições, mas com plena liberdade para transgredir. Isso quer dizer que nenhuma tradição ou doutrina é capaz de conter Jesus e seu agir, como será mostrado nos relatos da sua vida pública.

Além de evidenciar a centralidade de Jesus na cena, mesmo sem correspondência com um preceito legal, com a apresentação dele no templo o evangelista introduz um dos temas mais  relevantes de seu projeto teológico: a cidade de Jerusalém como destino da missão de Jesus e, posteriormente, como ponto de partida da missão cristã que, de lá, deverá se estender por todo o mundo (At 1,8). Por isso, ainda no “evangelho da infância”, ele vai mostrar Jesus indo a Jerusalém mais uma vez, aos doze anos, quando se perde de seus pais e é encontrado em meio aos doutores, discutindo teologia, no templo (Lc 2,41-49). É, portanto, do interesse teológico de Lucas mostrar Jesus em Jerusalém. Além, disso, para ele é importante também mostrar Jesus em movimento, percorrendo caminhos desde os primeiros dias de sua vida. Inclusive, ele já apresentou Jesus em caminho antes mesmo de nascer, tão logo foi gerado no ventre de Maria, tanto no episódio da visitação a Isabel, quanto na viagem de Nazaré a Belém, para o recenseamento, terminando com o nascimento. Com isso, ele antecipa, de modo prefigurativo, alguns dos traços mais característicos identidade da Igreja: a missionariedade e a sinodalidade, temas que serão introduzidos ao longo do ministério de Jesus, no Evangelho, e desenvolvidos no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Outro tema relevante de toda a obra de Lucas introduzido neste episódio é a identificação de Jesus com os pobres e a consequente opção por eles, o que também deve nortear a vida da Igreja em todos os tempos. Neste episódio, esse tema vem evidenciado, em primeiro lugar, pela descrição da oferta de José e Maria pela purificação da mãe: «Foram também oferecer o sacrifício – um par de rolas ou dois pombinhos – como está ordenado na Lei do Senhor» (v. 24). Ora, para a purificação da mãe, a oferta deveria ser de um cordeiro, com exceção para as famílias pobres que podiam oferecer um par de rolas ou dois pombinhos (Lv 12,8), como fizeram José e Maria. Aqui, o evangelista diz com clareza que eles fizeram a oferta dos pobres. Com isso, isso, ele evidencia que Jesus veio ao mundo pobre, pelos pobres, para os pobres e para ficar com os pobres, sobretudo. Sua identificação é clara com os últimos de Israel e, consequentemente, de todo o mundo: humildes, pecadores, mulheres e todas as categorias de pessoas marginalizados em geral. É com esse detalhe que o evangelista encerra as descrições rituais do episódio. Portanto, pegando a deixa do título desta festa, é conveniente lembrar que a “Sagrada Família” foi uma família pobre. Nos versículos seguintes ele apresentará os testemunhos de Simeão e Ana como centro do relato. Na verdade, ele usou os preceitos da Lei e os ritos apenas como pretexto para tratar da identidade messiânica de Jesus, como faz em seguida.

Simeão e Ana são personagens exclusivos de Lucas. São frutos da sua teologia e são personalidades corporativas, ou seja, representam uma coletividade: a parcela do povo de Israel que permaneceu fiel às promessas de Deus, especialmente os mais pobres, e que reconhece Jesus como o cumprimento das promessas e a plenitude da Lei. Eis a descrição de Simeão: «Em Jerusalém havia um homem chamado Simeão, o qual era justo e piedoso, e esperava a consolação do povo de Israel. O Espírito Santo estava com ele e lhe havia anunciado que não morreria antes de ver o Messias que vem do Senhor» (v. 25-26). As qualidades de justo e piedoso sintetizam o que Deus espera do ser humano. É sinônimo de conduta reta diante de Deus e do próximo. Esperar a consolação significa reconhecer e assumir uma situação de tristeza, de negação da vida. Por isso, Lucas enfatiza tanto a alegria ao longo do seu Evangelho. Israel vivia uma situação caótica e triste e, diante disso, muitos perderam a esperança e o gosto pela vida. Simeão, cujo nome significa “o que foi ouvido por Deus”, soube esperar e reconhecer em Jesus o consolo definitivo, a salvação de quem estava literalmente perdido, sem perspectivas, devido à opressão causada pelos sistemas de poder, tanto o político-econômico quanto o religioso. Certamente, ele clamou muito ao Senhor e, por isso, foi ouvido, literalmente, recebendo a consolação que tanto esperava. Vivendo em situação tão adversa e caótica, somente tendo consigo o Espírito Santo, Simeão poderia sentir a libertação definitiva tão próxima. Esse dado também é muito importante: é o Espírito Santo quem credencia o ser humano a reconhecer Jesus como Messias e Salvador e a acolher a novidade de Jesus e do seu Evangelho.

E o Espírito Santo é citado três vezes como fonte de inspiração e revelação para Simeão (vv. 25.26.27), embora a ocorrência do versículo 26 tenha sido omitida pela tradução do lecionário. É importante recordar esse dado porque o Espírito Santo também constitui um tema e personagem determinante para todo o conjunto da obra lucana (Lc-At). Por sinal, a consolação, objeto da espera de Simeão, na língua original dos evangelhos (em grego: παράκλησις – paráclesis), possui a mesma raiz de “paráclito” – consolador –, um dos títulos atribuídos ao Espírito Santo no Evangelho de João e adotado posteriormente no desenvolvimento da teologia cristã. Portanto, tudo o que Simeão faz é motivado pelo Espírito Santo, como mostra a continuação do texto, a começar pelo seguinte gesto: «Simeão tomou o menino nos braços e bendisse a Deus» (v. 28). Com esse gesto, Lucas quer afirmar que o velho acolheu o novo, os dois testamentos (alianças) se encontraram e podem, de agora em diante, conviver em harmonia, desde que haja abertura ao Espírito Santo da parte do antigo. O povo da antiga aliança é consolado ao participar da nova aliança, cedendo aos apelos do Espírito Santo. Isso requer um aprofundamento na vivência da fé, graças ao Espírito Santo. Conforme já profetizara Isaías (Is 49,6), Simeão percebe que é preciso abrir mão de certos pensamentos hegemônicos: a glória de Israel é compatível com a luz das nações. Ora, luz é também sinal de glória. Portanto, se Israel encontra sua glória, os povos de todo o mundo são também iluminados, e não dominados, como esperavam os movimentos mais nacionalistas e radicais.

Lucas aproveita a cena para introduzir mais um cântico no seu “evangelho da infância”, colocando-o, dessa vez, na boca de Simeão (vv. 29-32), conforme já fizera com Maria (Lc 1,46-55), com Zacarias (Lc 1,68-79), e com os anjos (Lc 2,14). Somente com olhos e coração atentos ao Espírito Santo, era possível afirmar que a salvação foi vista, contemplada. Assim, Simeão e, nele, todo o Israel fiel, pode dizer, finalmente: «podes deixar teu servo partir em paz» (v. 30). Com essa fala de Simeão, podemos dizer que, de fato, o Antigo Testamento deu ao Novo seu lugar! Simeão, ajudado pelo Espírito Santo, antecipa a missão de Jesus e o efeito dessa: ser sinal de contradição e causa de queda e reerguimento para muitos em Israel (v. 34). O Evangelho não será acolhido por todos e, portanto, a sua acolhida causará divisão, angústia e, consequentemente, queda e elevação. Na verdade, Lucas está reforçando o que já tinha apresentado no cântico de Maria: o Deus de Israel e de Jesus eleva os humildes e faz cair os soberbos (Lc 1,52ss). Quanto ao que Simeão diz em relação a Maria, a mãe, não é uma profecia sobre o drama da cruz, como muitas interpretações afirmam. A espada é uma imagem da palavra de Deus no Antigo Testamento (Is 49,2). Portanto, será a Palavra de Deus, revelada plenamente em Jesus, a atravessar a alma de Maria: o Evangelho dividirá o povo judeu; uns o acolherão, outros não. Como imagem e figura de Israel, Maria viveu em si esse drama: ela acolheu a Palavra de corpo e alma (Lc 1,38), mas assistiu a uma grande parcela do seu povo rejeitá-la.

Quanto a Ana, seu papel é semelhante ao de Simeão, embora a sua descrição seja bem diferente: «Havia também uma profetisa, chamada Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada; quando jovem, tinha sido casada e vivera sete anos com o marido» (v. 36). É característica de Lucas atribuir importância a pessoas praticamente destinadas ao esquecimento, conforme os condicionamentos da época. Assim ele faz com Ana. Ao mencioná-la, ele quer enfatizar o papel da mulher na nova aliança, resgatando uma importância que a antiga lhe tinha negado. Ao qualificá-la como profetisa, o evangelista lhe atribui um papel muito importante, pois cinco mulheres, em toda a Bíblia, receberam esse título; quatro no Antigo Testamento: Miriam, a irmã de Moisés (Ex 15,20), Débora (Jz 4,4), Hulda (2Rs 22,14), e a esposa de Isaías (Is 8,3); e ela no Novo. A tribo de Aser, da qual Ana era proveniente, localizada no extremo norte da Galileia, era a mais distante de Jerusalém, e sua população era considerada semi-pagã pelas autoridades religiosas da época. Esse dado também evidencia a predileção de Deus pelo que é rejeitado e marginalizado. Todos os dados sobre Ana, portanto, são muito significativos para o plano teológico de Lucas e para o projeto do Reino de Deus que será anunciado por Jesus e deve ser continuado pela comunidade cristã, ao longo da história.

A continuação da caracterização de Ana possui rico significado teológico, servindo também de introdução e chave de leitura para o conjunto da obra de Lucas. Eis o que se diz dela: «Depois ficara viúva, e agora já estava com oitenta e quatro anos. Não saía do templo, dia e noite servindo a Deus com jejuns e orações» (v. 37). O estado de viuvez já é suficiente para Ana ocupar um espaço relevante na obra de Lucas, o autor do Novo Testamento mais atento à situação das viúvas (Lc 4,25-26; 7,12; 20,47; 21,2-3; At 6,1ss; 9,31.41), como exemplo de pessoas vulneráveis e necessitadas, que se tornam protagonistas da nova história e do mundo novo inaugurado por Jesus. Com isso, ele recupera o sentido do cuidado com as viúvas previsto na legislação de Israel, mas esquecido ao longo da história (Ex 22,22-23; Dt 24,19-21; Is 10,1), e reafirma as opções de Jesus, reforçando quais devem ser as opções da comunidade cristã. A idade de Ana também é bastante significativa: 84 anos, é idade plena para uma pessoa judia. Significa 7 vezes 12, ou seja, Israel (número 12) chegando à perfeição (número 7); portanto, Ana representa o Israel ideal que encontrou em Jesus a sua razão de ser. Por isso, ela «pôs-se a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (v. 38). O louvor é consequência de quem se reencontra com a alegria e o gosto pela vida, algo que Lucas valoriza bastante em sua obra (Evangelho e Atos). Ana, ao louvar a Deus, se solidariza com todos aqueles que esperavam a libertação. Ora, libertação é o desejo de quem se sente na escravidão. Ela reconhece Jesus como a libertação definitiva de quem se encontrava escravizado pelos poderes econômico, político e religioso da época.

Diante de tudo o que se dizia do menino, a reação dos seus pais não poderia ser diferente: estavam maravilhados (v. 33). Assim como Simeão e Ana, José e Maria também estavam cansados da vida com suas mazelas, exploração e desencantos. Porém, mantiveram a esperança viva; não desanimaram, esperaram no Senhor e viram a chegada da libertação e da consolação. Por isso, são para nós testemunhas autênticas de um Deus que não deixa de cumprir as suas promessas e que olha, especialmente, pelos mais necessitados de todos os tempos. Em Jesus, as promessas de Deus são realizadas, o Antigo Testamento é cumprido, porém, de modo surpreendente: a mensagem salvífica de Jesus é tão grande que Israel não é capaz de comportá-la; por isso, transcende, é luz para todos os povos! Maravilhar-se é admirar-se, encantar-se. Em Jesus, uma nova história começa tendo como protagonistas os pobres, pequenos e humildes, ou seja, os necessitados de consolação e de libertação.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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