Enquanto o evangelho
do domingo da ressurreição é o mesmo para todos os anos (Jo 20,1-9), o da
Vigília Pascal muda de acordo com o ciclo litúrgico vigente. Isso quer dizer
que, a cada ano, a liturgia propõe a leitura de um dos relatos da ressurreição
de Jesus a partir de um dos evangelhos sinóticos (Mt – Mc – Lc). Neste ano, por
ocasião do ciclo B, temos a oportunidade de ler o relato de Marcos – Mc 16,1-7.
Na verdade, mais do que relatos da ressurreição, os evangelhos trazem cenas que
retratam a experiência das mulheres diante do túmulo vazio na madrugada ou
início da manhã do primeiro dia da semana, adotado pela tradição cristã como o Domingo
de Páscoa. A ressurreição em si, apesar de ser o evento fundante da fé cristã,
não chega a ser narrada e nem descrita por nenhum dos evangelhos. Por isso, o
mais correto é chamar esses textos de relatos do túmulo vazio. De fato, nenhum
evangelista conta como Jesus ressuscitou e deixou a sepultura, nem o momento em
que isso aconteceu. O que todos os evangelhos contam são indícios, anúncios da
ressurreição e experiências de encontro com a pessoa do Ressuscitado. Nesse
sentido, o Evangelho de Marcos, enquanto o mais antigo dos quatro, apresenta-se
também mais atípico, pois teve sua redação original concluída com o silêncio
das mulheres (Mc 16,8) e, por isso, sem o relato de nenhuma aparição. As
referências a algumas aparições do Ressuscitado que se encontram na forma atual
fazem parte de um epílogo, acrescentado posteriormente (Mc 16,9-20), quando os
outros evangelhos já estavam concluídos, com a finalidade de corrigir a
impressão de incompletude que passava, ao ser comparado aos demais.
O relato lido hoje, obviamente,
possui versão paralela nos outros dois sinóticos (Mt 28,1-10; Lc 24,1-8), e é
por isso que se pode fazer comparações com eles. Possui certo paralelismo
também com o relato de João (Jo 20,1-9), embora com menos pontos em comum. É
importante recordar que os relatos do túmulo vazio – em todos os evangelhos –
fazem parte da seção narrativa que deu origem aos próprios evangelhos: as
narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Foi a partir destas
narrativas que os evangelhos ganharam corpo como livros. Isso indica a importância
que esses textos tiveram para as comunidades do cristianismo nascente. Se
trata, portanto, de textos fundantes. Posteriormente, cada evangelista, de
acordo com as necessidades catequéticas e teológicas de suas respectivas
comunidades, e suas próprias habilidades literárias, desenvolveram a história
de Jesus, partindo de fontes orais e escritas, anteriores a eles. Mateus e
Lucas, por exemplo, conseguiram reconstruir essa história da ressurreição até o
nascimento, enquanto Marcos parou no batismo e testemunho de João Batista. Porém,
a pregação inicial se fundava no anúncio de que Jesus Cristo, o Messias e Filho
de Deus, morreu na cruz e ressuscitou. Por isso, a escrita dos evangelhos
começou pelo final, ou seja, pelos relatos da paixão, morte e acenos à
ressurreição. Desde quando Marcos foi reconhecido como o primeiro Evangelho a
ser escrito, seus episódios passaram a ser considerados fontes para os demais,
e aquilo que parecia incompletude se tornou sinônimo de originalidade, profundidade
e riqueza teológica. É, portanto, a partir dessa perspectiva que devemos olhar
o evangelho desta noite.
Comecemos, então, a olhar para o
texto e logo perceberemos importantes particularidades recordadas pelo
evangelista. Eis o primeiro versículo: «Quando passou o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago,
e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus» (v. 1). Como se sabe, na tradução judaica o sábado
começa ao pôr do sol do dia anterior e termina ao pôr do sol do sábado mesmo.
Como o sepultamento de Jesus foi feito às pressas, no final da tarde do dia
anterior ao sábado, não houve tempo suficiente para fosse acontecesse com
todos os elementos tradicionalmente utilizados, pois obrigatoriamente deveria
ser concluído antes que começasse o sábado. E durante o sábado, era proibido
realizar qualquer atividade, inclusive tocar um cadáver. Por isso, as mulheres
não tiveram tempo sequer de comprar os perfumes necessários para ungir o corpo
de Jesus. Somente quando passou o sábado, provavelmente ao anoitecer do próprio
sábado, pois a partir das dezoito horas já começava o dia seguinte, e o
comércio de Jerusalém reabria nesse horário, mesmo que por pouco tempo, as
mulheres puderam comprar os perfumes para levaram ao túmulo ao amanhecer do dia
seguinte. O evangelista cita o nome de três mulheres, mas certamente o grupo
era maior, inclusive, a própria mãe de Jesus deveria fazer parte da comitiva.
Pelos nomes citados, são as mesmas que tinham observado a crucificação, juntas
com outras que seguiam Jesus e o serviam desde o começo da sua missão na Galileia
(Mc 15,40-41). Elas são exemplo de fidelidade, perseverança e solidariedade, ao
contrário dos discípulos homens, que abandonaram Jesus e fugiram, logo no
momento da prisão (Jo 14,50). Elas não poderiam esquecer a mensagem de Jesus e
o que ele fez por elas, inclusive, aceitando-as no seu discipulado, quando era
expressamente proibido pelo judaísmo da época. Num mundo dominado por homens, com
tudo pensado para os homens, Jesus deu voz às mulheres, tornando-as
protagonistas de suas próprias vidas e de uma nova história.
Tendo,
portanto, passado o sábado, e já tendo comprado os perfumes, as mulheres já
estavam decididas sobre o que fazer e não tinham tempo a perder. Por isso, o
evangelista afirma que, «bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do
sol, elas foram ao túmulo» (v. 2). O primeiro dia da semana, obviamente, é
o domingo. O dia do recomeço de sempre, mas a partir daquela ocasião deixou de
ser o dia de um simples recomeço e passou a ser o dia do novo início de tudo.
Início de uma nova história, de um novo mundo com a humanidade recriada.
Certamente, ao nascer do sol daquele dia, as mulheres que foram ao túmulo ainda
não tinham consciência do que estava acontecendo, mas a perseverança e
solidariedade delas levou-as à descoberta. Foram ao túmulo para embalsamar o
cadáver de um homem que tinha mudado o sentido da vida delas, com uma mensagem
libertadora, humanizante e emancipatória. Quando tomam a iniciativa de irem
sozinhas, logo cedo, ao túmulo, elas já demonstram que o mundo e a vida delas
não era mais o mesmo de antes de seguirem Jesus. O seguimento do Nazareno já
tinha transformado a vida delas para sempre, antes mesmo de qualquer indício de
ressurreição corporal.
Elas estavam
decididas a render homenagem a Jesus, custasse o que custasse. Até se
preocuparam como fazer: «E diziam entre si: “Quem rolará a para nós a pedra
da entrada do túmulo?”» (v. 3). Esse dado é exclusivo de Marcos. Os outros
evangelistas, que tiveram Marcos como fonte, não quiseram incorporá-lo aos seus
relatos. É um dado que reforça a perseverança das mulheres e o quanto a
ressurreição estava distante de seus horizontes. Em praticamente todas as
correntes do judaísmo da época, exceto entre os essênios, havia a crença na
ressurreição no último dia, no final dos tempos. Uma ressurreição como a de
Jesus estava fora de qualquer cogitação, embora ele tivesse anunciado várias
vezes aos seus discípulos e discípulas (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34; 14,28). A
preocupação das mulheres com a pedra do túmulo ressalta que elas queriam vê-lo
a todo o custo e derramar os perfumes sobre seu corpo. Mesmo sem perspectiva de
ressurreição, ainda, elas já estavam fazendo memória de Jesus. Isso quer dizer
que, ressuscitando ou não, Jesus já tinha transformado a vida delas. Elas
compreenderam sua mensagem como semente de um mundo novo, e nunca mais olhariam
para o mundo com a mentalidade de antes, por isso estavam dispostas a enfrentar
desafios sem recuar, mesmo conscientes do tamanho das pedras que teriam pela
frente.
Ao chegar ao
túmulo, certamente, se surpreenderam com o que viram, pois «Era uma pedra
muito grande. Mas quando olharam, viram que a pedra já tinha sido retirada» (v.
4). A referência ao tamanho da pedra visa enfatizar a distância entre o mundo
dos vivos e o mundo dos mortos, entre a vida e a morte. Era uma distância muito
grande, difícil de ser superada. A ressurreição é o fim dessa distância. Na
verdade, é o fim da distância entre o mundo de Deus e a humanidade, e as
mulheres foram as primeiras testemunhas desse fim, mesmo que as coisas ainda
não estivessem tão claras para elas. Elas viram que a pedra fora retirada. Quer
dizer que muita coisa já aconteceu e elas foram as primeiras beneficiárias
destas coisas, pois o obstáculo temido por elas desapareceu: a grande pedra,
certamente pesada, já tinha sido retirada. Ansiosas como estavam para ver o
corpo morto de Jesus, vendo que o túmulo estava aberto, pois a grande pedra tinha
sido retirada, elas entraram e, certamente, tiveram uma grande surpresa: «Entraram,
então, no túmulo e viram um jovem, sentado ao lado direito, vestido de branco» (v.
5). Ora, entraram no túmulo para ver um cadáver e render-lhe as últimas homenagens,
mas não o encontraram. O que encontraram foi um jovem vivo, sinal de esperança
e vida nova. Tudo muito surpreendente. No lugar da morte, encontraram vida. Ao invés
de um corpo próximo de entrar em estado de decomposição, pois os judeus imaginavam
que a decomposição começava a partir do quarto dia após o sepultamento, as
mulheres encontram um sinal de vida nova e vigor, simbolizada pelo jovem.
Contudo, não encontraram o que queriam: o corpo de Jesus. E, por isso, devem
ter sentido tristeza também.
O jovem vestido
de branco indica tratar-se de um mensageiro de Deus. A veste branca simboliza o
mundo de Deus, de onde veio o jovem. E eis que ele apresenta a mensagem trazida
de Deus, antes de tudo, encorajando as mulheres que, naturalmente, ficaram
desconcertadas diante do que estavam vendo: «Mas o jovem lhes disse: “Não
vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele
ressuscitou. Não está aqui» (v. 6). O imperativo «não vos assusteis» é
típico dos relatos de manifestação de Deus – teofanias. Visa tranquilizar o ser
humano. Não é tanto uma resposta ao medo, mas ao espanto, à admiração causada.
E, geralmente, a reação humana diante da manifestação de Deus é o espanto e o
temor reverencial, mais do que o medo mesmo. Após tranquilizar as mulheres, o jovem
lhes faz uma pergunta retórica, pois já sabia a resposta. Ele sabia a quem as
mulheres procuravam: o corpo de Jesus Nazareno, que foi crucificado. Na sequência,
como resposta à pergunta retórica, é feito o grande anúncio: Ele ressuscitou,
por isso não poderia mais estar ali. Esse anúncio é muito significativo, não
apenas por constituir o anúncio fundamental da fé cristã, mas também pelo modo
como é feito: quem ressuscitou foi Jesus Nazareno, o crucificado. Com isso, o
evangelista ensina que a comunidade não pode separar o anúncio da ressurreição
de Jesus da memória da sua vida. O Ressuscitado é Jesus Nazareno, que fora crucificado.
As marcas da cruz foram incorporadas à identidade do Ressuscitado.
É muito justo
que as mulheres tenham sido as primeiras a receber tal anúncio, pois elas viram
a crucificação, enquanto os discípulos homens tinham fugido há bastante tempo,
logo no momento da prisão. As mulheres perseveraram, assistiram tudo, viram
Jesus morrer na cruz, sofreram com ele. Certamente, elas sentiram muitos sonhos
serem crucificados com Jesus, sobretudo o sonho de um mundo novo, com justiça,
paz, igualdade e inclusão. A ida delas ao túmulo já demonstrava que o mundo para
elas não voltaria mais a ser como antes do seguimento de Jesus. Mas o anúncio
da ressurreição ensina que o caminho estava aberto para continuarem o projeto
de libertação começado, quer dizer, o Reino de Deus plantado há pouco tempo,
continuaria germinando na história. Por isso, elas são convidadas a contemplar
o lugar onde Jesus foi colocado: «Vede o lugar onde o puseram» (v. 7a), não
como prova material da ressurreição, pois não há necessidade, mas como motivação
para não buscarem mais sinais de morte, pois o Reino de Deus, que coincide com
a vida em abundância, encontra-se em plena edificação. Logo, é para os sinais
de vida que se deve olhar. Portanto, faz parte da ironia narrativa do
evangelista o convite o ver o sepulcro como o lugar para onde não se deve mais
olhar. O jovem vestido de branco estava ali de passagem, apenas para fazer esse
anúncio, dando um recado de Deus. Daquele momento em diante, o sepulcro passaria
a ser coisa do passado.
E, finalmente,
as mulheres receberam o verdadeiro recado de Deus, o Pai, e do Ressuscitado: «“Ide,
dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente na Galileia”» (v.
7b). Como se vê, elas recebem a missão de levar um anúncio capaz de recompor a
comunidade do discipulado de Jesus, da qual tinham restado somente elas, após o
drama da cruz. Da missão delas depende a unidade e a reunião dos que se tinham
dispersado com a prisão de Jesus. Temos aqui um
verdadeiro mandato apostólico, missionário. As mulheres são as primeiras a
receber a ordem “Ide anunciar”! O anúncio é dirigido a todos os discípulos
dispersos, com ênfase para Pedro. Certamente, a referência explícita a Pedro
não significa um privilégio, mas uma necessidade. Depois de Judas, foi o mais
covarde diante do que Jesus estava passando. Por três vezes, negou conhecer
Jesus. Por meio das mulheres, ele vai receber o anúncio que o Ressuscitado o
espera na Galileia. Esse anúncio pedindo que os discípulos retornem à Galileia
retoma uma predição do próprio Jesus, ainda no início da paixão, no monte das
Oliveiras. Lá, ele disse que todos se dispersariam, mas ele iria à frente deles,
após a ressurreição, para reencontrá-los na Galileia (Mc 14,2-28). Conhecedor das
limitações e fragilidades humanas, ele não condenou os discípulos que lhe
tinham abandonado. Quis reuni-los de novo, não para fazer uma prestação de
contas com acusações e condenações, mas para renovar a confiança e reconfirmá-los
na missão. Ele nunca desiste do ser humano. Por isso, o encontro com ele,
ressuscitado, na Galileia visa a reconciliação.
O retorno que os
discípulos devem fazer a Galileia visa também, além da reconciliação, o
reencontro de todos com as motivações originárias do seguimento. Nesse sentido,
retornar à Galileia se torna um verdadeiro imperativo. «“Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito”» (v. 7c). Ora, na perspectiva de Marcos, Jerusalém, como
centro do poder, estava completamente corrompida. Lá, o Reino de Deus não
floresceria, pois tinha se tornado um lugar de morte, sobretudo com o conluio do
poder religioso com o político, do qual Jesus mesmo foi vítima. Por isso, quem
permanecesse lá não veria o Ressuscitado. O retorno à Galileia significa o reencontro com os fundamentos da vocação e
da missão, sobretudo para os discípulos que se dispersaram. Eles precisavam se
reencontrar com Jesus e se reencantarem com o seu Evangelho. Precisavam
recomeçar, por isso, era necessário um encontro na Galileia, onde tudo começou.
É também um aceno que o mundo novo gerado pela ressurreição de Jesus começa
pelas periferias, como foi o começo do seu ministério. Como o Ressuscitado é o
mesmo Nazareno que fora crucificado, para vê-lo, portanto, é necessário ir à
Galileia. Obviamente, mais do que um lugar físico, a Galileia aqui é toda
possibilidade e ocasião de encontro com o Ressuscitado e de promoção da vida. Em
todo o mundo há Galileias a serem descobertas e reconhecidas.
Que a Páscoa imprima
em nós o desejo de participar do mundo novo oferecido pela ressurreição de
Jesus e renove nosso compromisso de lutar pela edificação do seu Reino vivendo
a fraternidade, a justiça e o amor. No mundo novo, os últimos se tornam
primeiros, como se vê pelo protagonismo das mulheres no primeiro anúncio. A
vida venceu. Que possamos manifestar essa vitória vivendo à maneira de Jesus, o
crucificado que ressuscitou e, por isso, não está mais no sepulcro. Ele quer
estar na vida de cada pessoa, humanizando e libertando. Que nossas comunidades
sejam pequenas Galileias, para onde possamos retornar quantas vezes for
necessário para nos reecontrarmos com ele e recomeçarmos.
Pe. Francisco
Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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