sábado, julho 06, 2024

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 6,1-6 (ANO B)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, interrompida no último domingo, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. O texto lido neste domingo – Mc 6,1-6 – corresponde ao episódio da visita de Jesus a Nazaré, em dia de sábado, acompanhado de seus discípulos. Na oportunidade, ele sofreu forte oposição dos seus conterrâneos, os quais tentaram desqualificar sua mensagem e o seu agir. Esse texto ocupa uma posição estratégica no conjunto do Evangelho de Marcos. O episódio retratado pode ser considerado até um divisor de águas no ministério de Jesus, pois o que vem logo após esse aponta para uma mudança de rumo e estratégia na sua missão, com o envio missionário dos Doze (6,7-13), o qual será lido na liturgia do próximo domingo. Contudo, antes de recordar o que vem depois, é importante lembrar o que vem antes do episódio de hoje: a cura da mulher hemorroíssa e a reanimação da filha de Jairo (5,21-43). Esses dois milagres aconteceram logo após Jesus fazer a travessia de retorno do território dos pagãos, junto com seus discípulos, cuja viagem de ida fora marcada pela tempestade que ameaçou a barca e ele a acalmou (4,35-41).

A localização estratégica de um episódio nos evangelhos é sempre um indicativo de importância para o conjunto do livro, o que se verifica no texto de hoje. Outro dado que aponta para a sua importância na vida de Jesus é o fato de tratar-se de um episódio transmitido também pelos outros sinóticos (Mt 13,53-58; Lc 4,16-30). No Evangelho de Lucas, por exemplo, esse episódio foi transformado no evento programático e inaugural do ministério de Jesus. Por isso, ele o transferiu para o início da obra. Contudo, é mais lógica e plausível a posição que este episódio ocupa em Marcos e Mateus, ou seja, quando a atividade de Jesus já estava em pleno desenvolvimento e as notícias sobre a sua mensagem e o seu agir libertador já tinham se espalhado pela Galileia e, por isso, tinham repercutido também em Nazaré. Inclusive, seus familiares já tinham recebido notícias sobre o seu agir pouco ortodoxo, por isso, certa vez, saíram à sua procura, com objetivo de prendê-lo, imaginando que estivesse louco (Mc 3,20-31). Também a hierarquia religiosa de Jerusalém já estava a par da sua atividade, fiscalizando e vigiando o seu agir, por considerá-lo subversivo e herético e, por isso, perigoso para o sistema.

Uma vez apresentados alguns elementos a nível de contexto, voltamos a atenção para o próprio texto, partindo do primeiro versículo, no qual se diz que «Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos foram com ele» (V. 1). Aqui, chamamos a atenção para uma primeira incoerência da tradução litúrgica, pois a palavra Nazaré não aparece no texto original. O que o evangelista diz é que Jesus foi à sua pátria (em grego: πατρίς – patrís), o que deve ser compreendido como a terra natal. Contudo, sabemos que a terra natal de Jesus era um pequeno vilarejo chamado Nazaré (Mc 1,9). Somente Lucas menciona Nazaré explicitamente neste episódio, certamente por razões mais teológicas do que históricas e geográficas (Lc 4,16). É muito provável que a ausência do nome Nazaré, neste contexto, em Marcos e Mateus, seja proposital, visando ampliar a dimensão do evento, transformando a rejeição dos nazarenos em projeção da rejeição de Israel à mensagem de Jesus. De fato, o apego exagerado às tradições e o fechamento às novidades do Reino foram as principais atitudes de Israel diante da mensagem libertadora e humanizante de Jesus. Por isso, na rejeição de um pequeno povoado, o evangelista prefigura a rejeição futura de todo o país, sobretudo das autoridades, cujo desfecho será a morte de Jesus.

Como era seu costume, «quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga» (v. 2a). Ao contrário de Lucas, Marcos não faz qualquer referência ao conteúdo do ensinamento de Jesus, mas o leitor do seu Evangelho já sabe que a pregação dele consistia no anúncio da chegada do Reino de Deus e o apelo à conversão (Mc 1,15). É importante recordar que essa é a última vez que Marcos mostra Jesus ensinando numa sinagoga. Isso reforça o quanto esse episódio é relevante, pois parece delimitar um antes e um depois na vida de Jesus. A reunião litúrgica do sábado na sinagoga, além da oração, era também uma ocasião para as pessoas se reencontrarem, se saudarem. Como fazia tempo que Jesus não retornava à sua terra, era de se esperar que fosse bem acolhido, saudado por todos, afinal, num povoado pequeno todos se conheciam, como o texto vai mostrar mais adiante. Quanto à acolhida, parece até que houve um certo entusiasmo, no início da pregação: «Muitos que o escutavam ficavam admirados e diziam: “De onde ele recebeu tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos?”» (v. 2bc). Os questionamentos, enquanto consequência da admiração, confirmam que a fama de Jesus enquanto pregador e operador de milagres já tinha realmente se espalhado e os nazarenos estavam constatando, porém, sem acreditar ser possível, pois lhe faltavam credenciais razoavelmente aceitáveis, como uma origem que lhe rendesse prestígio social e religioso.

Ao questionarem precisamente a origem do conhecimento e da sabedoria de Jesus, bem como dos milagres realizados, seus conterrâneos preparam o rechaço, pois não o viam habilitado para fazer tudo aquilo, pois ele era apenas uma pessoa simples, como eles, como fica evidente no versículo seguinte: «“Este homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco?” E ficaram escandalizados por causa dele» (v. 3). Aqui são apresentados os traços comuns de Jesus, o que parece contradizer os atributos anteriormente identificados nele, para a mentalidade dos seus conterrâneos. A primeira característica é sua identificação como carpinteiro, embora não seja o termo mais adequado para traduzir a palavra grega empregada pelo evangelista (τέκτων – tékton). De fato, essa palavra significa artesão, o que pode incluir uma variedade de habilidades, incluindo, além de carpinteiro, marceneiro, pedreiro e construtor. Como era difícil a sobrevivência com apenas uma atividade, geralmente se fazia um pouco de tudo, sobretudo nos lugares pequenos como Nazaré. Anteriormente, os nazarenos tinham se admirado com os milagres feitos pelas mãos de Jesus, agora recordam sua condição de artesão, imaginando que de suas mãos simples, que deveriam estar cheias de calos, não era possível sair milagres, não poderiam conter força de salvação.

Da profissão como primeiro elemento de contraste com as qualidades identificadas, seus contestadores passam a citar os parentes conhecidos que viviam no lugar, também como contradição ao que ele estava demonstrando. O identificam pejorativamente como o “filho de Maria”, apenas. Para a mentalidade da época, referir-se a alguém sem mencionar o pai era uma demonstração de desprezo. As pessoas eram identificadas pelo nome do pai, o chefe do clã, mesmo quando esse já tivesse morrido. O nome da mãe não tinha importância alguma para a sociedade, na época. Inclusive, poderia tratar alguém a partir do nome da mãe era indicação de que o filho era ilegítimo. Porém, o evangelista se serve desse artifício para recordar a origem divina de Jesus, não o associando a um pai humano. Quer dizer que Jesus é filho de Maria porque seu Pai é somente Deus, e os isso os nazarenos não conseguiam compreender nem aceitar. A referência aos outros parentes próximos, chamados de irmãos e irmãs, só reforça a condição de homem comum que Jesus era, como viam seus conterrâneos. Imaginavam que, sendo Jesus parente de gente comum do povoado, não poderia ser um enviado de Deus, logo, não teria como ser o Messias esperado, que deveria vir ao mundo como um guerreiro e potente. O embate entre as diversas tradições cristãs sobre o grau de consanguinidade desses parentes mencionados é totalmente desnecessário e sem sentido.

Até então, Jesus tinha recebido oposição severa das autoridades religiosas e da família, apenas. Do povo, em geral, tinha recebido boa aceitação por onde passava. Esse episódio de Nazaré apresenta a primeira oposição coletiva à sua mensagem. Para a mentalidade provinciana dos habitantes de Nazaré, o que deveria ter nas mãos de um simples artesão seria calos, e não capacidade de operar sinais extraordinários. Embora ali não tenha feito milagres (v. 5), a sua fama já tinha chegado como milagreiro. Sendo Jesus uma pessoa simples, tendo crescido em um vilarejo simples, não era normal que ele tivesse tamanha sabedoria e, muito menos, que fosse o Messias. Jesus reage à oposição dos seus conterrâneos com um provérbio: «Um profeta só não é estimado em sua pátria, entre seus parentes e familiares» (v. 4). Para ele, não era surpresa um profeta ser rejeitado em sua terra, por parentes e conhecidos. Esse provérbio nasceu e amadureceu a partir da própria vivência dos profetas ao longo da história de Israel. Os principais exemplos dessa experiência de rejeição na própria terra foram Jeremias (cf. Jr 11,18-23; 12,6) e Ezequiel (cf. Ez 2,2-5). Com isso, ele prepara os seus discípulos para envio missionário que vai ser feito a seguir: também eles deverão sofrer rejeições por onde passarem. Ser rejeitado se torna a sina de quem permanece fiel a Deus e à missão por ele confiada. O que Marcos aqui constata em forma de narração, João antecipa poeticamente no prólogo do seu Evangelho, apresentando Jesus como a Palavra que se fez carne: «Veio para o que é seu, mas os seus não a acolheram» (Jo 1,11).

A rejeição a Jesus bloqueia a ação salvífica de Deus, o que significa que ele tenha se tornado impotente. O evangelista diz que «ali não pôde fazer milagre algum. Apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos» (v. 5). Isso quer dizer, acima de tudo, que ele não teve oportunidade, o clima criado ao possibilito que ele se revelasse plenamente como o verdadeiro enviado de Deus. Ora, os milagres de Jesus não eram meras demonstrações de poder e força, mas comunicação de Deus com a humanidade, e isso exigia interação e reciprocidade através da fé. Jesus se sentiu bloqueado, não imune de força, mas impedido de interagir, porque o Deus que ele veio revelar é alguém que se comunica, se relaciona com o ser humano de modo pessoal, e não através de sinais grandiosos. A fé é adesão à sua proposta de vida. Se a reação dos habitantes de Nazaré foi de perplexidade, também Jesus «admirou-se com a falta de fé deles» (v. 6a). A falta de fé é o fechamento ao seu amor humanizante, a incapacidade de adesão à sua mensagem; aqui, significa o fechamento e a dureza de coração, a insensatez. E, diante de toda essa rejeição recebida, a resposta de Jesus é a missão: «Jesus percorria os povoados da redondeza, ensinando» (v. 6b). Como em Nazaré ele diagnosticou que Israel todo padecia, eis que reagiu a isso indo ao encontro de mais povoados, e enviando também os Doze com a mesma autoridade com que ele mesmo agia, como refletiremos no próximo domingo.

Os habitantes de Nazaré rejeitaram Jesus porque ele lhes apresentou um Deus acolhedor, misericordioso, justo e simples, fora dos esquemas apresentados pelas tradições de Israel. O Deus de Jesus não age pela força, nem pela imposição, mas se revela na simplicidade e na pequenez. Os nazarenos não reconheceram a simplicidade e o cotidiano coo lugar privilegiado de revelação de Des. O erro dos habitantes de Nazaré é repetido pelos cristãos quando imaginam e desejam uma Igreja triunfante, forte e poderosa. Que o Evangelho de hoje nos ajude a compreender e viver o que é essencial para a nossa fé, e a acolher a grandeza de Deus que se revela na pequenez.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

Um comentário:

  1. Obrigado, Pe. Francisco Cornélio, por ajudar-me e a tantos a preparar a homilia. Suas reflexões são bem fundamentadas, além de muito claras e bem escritas. Seu trabalho é muito útil à Igreja!!!

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