sábado, agosto 31, 2024

REFLEXÃO PARA O 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,1-8.14-15.21-23 (ANO B)


A liturgia deste domingo – o vigésimo segundo do tempo comum – retoma a leitura do Evangelho de Marcos, após uma interrupção de cinco domingos seguidos, quando foram lidos trechos do capítulo sexto do Evangelho de João e um trecho de Lucas, na solenidade da Assunção. O texto proposto para hoje é Mc 7,1-8.14-15.21-23. Como se vê, o texto está bastante fragmentado, devido aos recortes. Seria mais interessante a leitura completa (vv. 1-23); contudo, devemos nos contentar com o que a liturgia oferece. O trecho selecionado mostra mais uma controvérsia de Jesus com os fariseus e mestres da lei. Os devotos praticantes da religião oficial, fiéis guardiões da moral e dos bons costumes da época, observam que o comportamento de Jesus e seus discípulos não condiz com as tradições ensinadas e transmitidas pelos antepassados, por isso lhe fazem alguns questionamentos e acusações. Ao respondê-los, Jesus os desmascara, apontando e denunciando a hipocrisia deles. A controvérsia presente no texto de hoje diz respeito às leis de pureza relacionadas às práticas alimentares, uma das principais causas dos conflitos entre o judaísmo oficial e as primeiras comunidades cristãs. O evangelista situa a cena logo após o relato de uma intensa atividade messiânica de Jesus (Mc 6,53-56), marcada por muitas curas e um contato muito próximo com pessoas de diversos lugares. Na ocasião, ele tanto tocava quando deixava ser tocado pelas pessoas, sobretudo as enfermas. O toque era traço marcante do agir libertador de Jesus. Tocando nas pessoas e permitindo ser tocado por elas, ele libertava e humanizava.

O texto começa com a seguinte afirmação: «Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado» (vv. 1-2). Já fazia algum tempo que Jesus era considerado uma pessoa perigosa para a religião e o sistema dominante como um todo, devido à sua maneira autônoma e livre de interpretar os costumes e tradições do seu povo, colocando sempre o bem da pessoa humana acima de qualquer norma. Por isso, muito cedo, o seu ministério passou a ser monitorado pelas autoridades religiosas de Jerusalém que, informadas pelos fariseus da Galileia, enviavam comitivas para fiscalizar e conferir o seu comportamento, considerado herético, pois estava fora dos padrões estabelecidos pela religião e a cultura da época (Mc 3,22). O episódio mostrado no evangelho de hoje constitui a segunda vez que uma comitiva sai de Jerusalém para fiscalizá-lo, de acordo com o relato de Marcos (Mc 3,22; 7,1). Na primeira vez, a acusação era de que Jesus expulsava demônios em nome de Belzebu. Dessa vez, os alvos da denúncia são os discípulos, acusados de não observar as leis de pureza relativas à alimentação, e não Jesus mesmo.

Isso mostra que o texto reflete mais a época da redação do Evangelho (anos 60–70 d.C.) do que propriamente o tempo de Jesus. Porém, é impossível separar a prática dos discípulos da prática do mestre. Portanto, é inegável que o próprio Jesus recebeu críticas e acusações por causa dessa prática, e a vida dos discípulos das primeiras gerações era verdadeira extensão da sua. Além do mais, tanto para a cultura semítica quanto para a greco-romana, qualquer anormalidade no comportamento de um discípulo devia-se a má influência do seu mestre. Logo, era o mestre quem devia assumir a responsabilidade pelas faltas dos seus discípulos. A acusação relatada pelos fariseus e mestres da Lei, dessa vez, é que os discípulos de Jesus comiam sem antes lavar as mãos. Ora, na época, o costume de lavar as mãos antes das refeições não constituía uma regra básica de higiene, como é hoje, mas um preceito religioso: deixar de lavar as mãos tornava a pessoa impura e, por isso, ela ficava distante de Deus. A não observância desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, era uma denúncia a essa mentalidade religiosa fundamentalista e excludente, que reduzia a relação com Deus a práticas ritualistas e exteriores. Era uma regra de higiene, por exemplo, o lavamento dos pés, a mais humilhante função do escravo, e isso Jesus recomendou que seus discípulos fizessem uns aos outros como sinal de serviço (Jo 13,1ss).

Escrevendo seu evangelho fora da Palestina, provavelmente em Roma, e para uma comunidade que já não conhecia tão bem as tradições judaicas de pureza alimentar, o evangelista, para informar melhor os seus leitores, oferece uma nota explicativa: «Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre» (vv. 3-4). Conforme a maioria dos estudiosos, essa explicação do evangelista é um dos principais elementos que atestam a redação do Evangelho de Marcos fora da Palestina – provavelmente foi escrito em Roma – e a predominância de cristãs de origem não judaica como destinatários principais, ou seja, pessoas que não conheciam certos costumes judaicos. Por isso, o evangelista explica certas coisas, como neste episódio. Com isso, o evangelista visa advertir seus leitores a não reproduzirem na comunidade cristã as atitudes que Jesus reprovou na religião judaica de seu tempo.

Como já afirmamos anteriormente, as motivações de tal comportamento imposto pela religião não eram higiênicas, mas religiosas. O motivo de ter de tomar banho ao voltar da praça, por exemplo, era que o contato com outras pessoas que não praticassem a mesma religião tornava o judeu impuro e, consequentemente, longe de Deus. A praça (em grego: ἀγορά – agorá), palavra que poderia ser traduzida também por mercado, era o espaço de circulação de pessoas, comercialização de produtos e propagação de variadas doutrinas filosóficas e religiosas. Lá, se encontravam pessoas de diversas culturas. Por isso, para os judeus mais fundamentalistas, a praça era um lugar perigoso, pois imaginavam que o simples contato com uma pessoa de outra cultura já tornava o judeu impuro; por isso, ao retornar para casa, era necessário purificar-se o quanto antes, com o ritual do lavar-se (ablução). Além disso, havia prescrições determinando até mesmo a maneira de lavar os objetos domésticos (v. 4). Enfim, era um sistema religioso totalmente baseado no cumprimento de regras, sem qualquer exigência ética. E o cumprimento minucioso das regras tornava as pessoas autossuficientes, imaginando ter mérito diante de Deus.

No mundo antigo, tanto na cultura greco-romana quanto na semita, os mestres tinham a responsabilidade de responder pelo comportamento dos seus discípulos. Por isso, quando se via em algum discípulo um comportamento irregular, fora dos padrões estabelecidos, era ao mestre que se tomava satisfação. E os evangelhos mostram várias situações em que Jesus é chamado a dar explicações por causa do comportamento dos seus discípulos, considerado indisciplinado. Inclusive, escritos extra-bíblicos do final do primeiro século e início do segundo, sobretudo de autores a serviço do império romano, continuavam “culpando” um certo “Cristo” pelo comportamento subversivo dos cristãos, mesmo já se tendo passado várias décadas da sua morte. Isso reforça o quanto era forte a ideia da responsabilidade de um mestre em relação ao comportamento dos seus discípulos. É nessa perspectiva, portanto, que os vigilantes da religião pedem explicações a Jesus: «Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Porque os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?”» (v. 5).

Mais do que um simples questionamento, a pergunta dos fariseus e mestres da Lei contém uma grave acusação contra Jesus: seus discípulos não seguem as tradições dos pais! Essas tradições eram consideradas sagradas em Israel. Deixar de segui-las era considerado pecado grave, além de ameaça à manutenção da ordem estabelecida. Por isso, tanta vez Jesus e seus discípulos foram tratados como subversivos, rebeldes. Ora, além dos numerosíssimos mandamentos da Torá enquanto Lei escrita, principalmente as leis do livro do Levítico, os judeus mais fiéis, como os fariseus, seguiam também as leis da “tradição oral”; a essa tradição, eles atribuíam o mesmo valor da Lei escrita, a Torá, pois também consideravam proveniente de Deus e transmitida a Moisés, o qual a repetiu para Josué e depois aos sucessivos chefes religiosos. Por isso, os fariseus e mestres da Lei consideravam que deixar de cumprir um só daqueles preceitos era ofender a Deus e desonrar os antepassados. Muitas vezes, nos evangelhos, quando Jesus e seus discípulos são acusados de transgredir um preceito não se trata propriamente de mandamento escrito na Torá, mas de uma dessas “tradições dos antigos”. Contudo, é importante recordar que Jesus tinha autoridade, enquanto cumprimento da Lei, também sobre os mandamentos escritos.

À pergunta acusatória dos fariseus e mestres da lei, o evangelista diz que «Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”» (v. 6-7). Como se vê, a resposta de Jesus se fundamenta na herança mais autêntica da religião de Israel: a profecia! Ele cita explicitamente Isaías 29,13, denunciando a falsidade da religiosidade dos fariseus e mestres da Lei e, ao mesmo tempo, provocando-os a buscar uma religião autêntica, vivida a partir de dentro, ou seja, do coração. Mesmo que tenha sido cultivada e transmitida durante muitos séculos, a tradição que separa, segrega e condena, não passa de preceito humano, logo, não pode ser de origem divina. Jesus diz claramente que seu Deus, que é Pai, jamais imporia tradições e costumes que não tenham o bem do ser humano como fundamento e finalidade.

Lábios e coração estão entre os membros do corpo considerados mais importantes, conforme os conhecimentos de anatomia da época. Aplicados ao contexto religioso, sobretudo no mundo judaico, se tornavam ainda mais relevantes, pois constituem os elementos de conexão entre o interior e o exterior: o que se vive no coração deve ser externado com os lábios. Apontam para a harmonia entre o crer e o confessar. Quando não há harmonia entre os dois, o ser humano entra em contradição, como denuncia Jesus em seus interlocutores, retomando a atualizando a denúncia de Isaías, certa de oito séculos antes. Ao chamar os fariseus e mestres da Lei de hipócritas (em grego: ὑποκριτής – hipocritês), termo grego que, literalmente, significa ator de teatro ou intérprete, Jesus denuncia que toda aquela religiosidade não passava de encenação, era um mero espetáculo, como é toda religião que, independente da época histórica, prioriza o rito e o preceito ao invés do amor, da justiça e da misericórdia. Jesus atualizou a denúncia profética de Isaías e o evangelista Marcos convida os seus leitores de todos os tempos a fazer o mesmo, inclusive a ler as Escrituras somente tendo Jesus e seu Evangelho como chaves interpretativas.

Tendo desmascarado já os fariseus e mestres da Lei, Jesus troca de interlocutores e dirige-se à multidão. Ele conhecia o risco que era a mentalidade dos fariseus para a multidão e até para os seus discípulos. Por isso, à multidão, ele transmite um ensinamento solene e importante: «Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”» (vv. 14-15). O emprego do verbo escutar no imperativo (em grego: akússateἀκούσατέ) indica a importância do que está sendo ensinado. Quer dizer que se trata de algo fundamental para a vida da comunidade. Com esse ensinamento, Jesus decreta a inutilidade e ineficiência dos ritos judaicos de purificação e proclama que a relação do ser humano com Deus não depende de fatores externos, mas simplesmente do interior, ou seja, do coração. Não é a comida em si nem sua procedência, tampouco o contato com pessoas de cultura e religião diferentes que tornam uma pessoa mais próxima ou mais distante de Deus. Quando uma religião impõe preceitos desse tipo, ela perde qualquer relação com Jesus e com o seu Deus, o Pai.

Nos últimos versículos, os interlocutores de Jesus já são os discípulos e ensinamento acontece dentro da casa, embora a maneira como o texto litúrgico está estruturado não permita perceber, pois o versículo que faz a transição foi saltado (v. 17). Contudo, o fio temático continua sendo o mesmo, pois Jesus percebe que também seus discípulos tinham dificuldade de assimilar seu ensinamento, mesmo tendo sido eles a causa do questionamento dos fariseus e mestre da Lei. O mal não entra no ser humano a partir de fora, por contato com pessoas, coisas, lugares e alimentos, mas nasce a partir de dentro, quando o amor não é cultivado no coração, como Jesus mesmo afirma, na sequência: «Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo» (vv. 21-22)Aqui, ele oferece uma grande lista de situações e ações incompatíveis com o seu programa. Quem permite que tais coisas saiam do coração, mesmo que observe minuciosamente todos os preceitos da Lei – oral e escrita –, não está em comunhão com Deus. Esses treze elementos citados constituem o que pode realmente tornar o ser humano impuro, ou seja, longe de Deus, e são típicos de quem se fecha ao amor e à justiça; não são ocasionados por situações exteriores, mas depende somente do coração da própria pessoa. Por “falta de juízo”, o último dos males elencados, entende-se o egoísmo desenfreado que faz a pessoa pensar somente em si, portanto, não é alusão a qualquer doença mental.

No último versículo, referindo-se à lista de elementos danosos anteriormente citados, ele conclui: «Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem» (v. 23). Como se vê, ele ressalta mais uma vez que é o coração humano que pode tornar a pessoa impura, pois é do coração que saem as maldades. Com isso, ele deixa claro que o critério para o ser humano viver em harmonia com Deus não é a observância de leis de separação entre puro e impuro, mas o cultivo de bons sentimentos no coração e a prática de boas ações em favor do próximo. De fato, a boa religião para Jesus é aquela que ajuda o ser humano a promover o bem e a ser, a cada dia, uma pessoa melhor. Na perspectiva de Jesus, conforme o relato de Marcos, a religião só tem sentido se ela for um fator de humanização. Reduzida a um conjunto de tradições, ela é apenas um elemento, talvez o mais perverso, a serviço do sistema dominante. O ser humano é impuro quando não permite que de seu coração saiam coisas boas. Nenhum rito ou norma é capaz de determinar a relação com Deus, nem de determinar a bondade do ser humano, mas somente a disposição interior de fazer o bem. E, é claro, o contato com o Evangelho de Jesus ajuda na criação das disposições interiores à prática do bem.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 24, 2024

REFLEXÃO PARA O 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,60-69 (ANO B)

 


Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia conclui a sequência de cinco domingos de leitura do sexto capítulo do Evangelho de João. Trata-se de um fenômeno exclusivo do “ano litúrgico B”, devido ao fato de o Evangelho de Marcos ser mais abreviado em relação aos outros sinóticos (Mt; Lc). Por isso, nesse ano, recorre-se mais ao Quarto Evangelho, como complemento, uma vez que os textos de Marcos não seriam suficientes para todos os domingos do tempo comum. No entanto, na sequência dos cinco domingos – do décimo sétimo ao vigésimo primeiro –, um deles foi saltado – o vigésimo –, devido à solenidade de Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, celebrada no domingo passado. Após a interrupção, portanto, temos hoje a retomada e a conclusão, ao mesmo tempo. E o texto proposto para este dia é Jo 6,60-69. Nessa passagem, o evangelista mostra a reação final dos discípulos, incluindo os Doze, diante do longo e exigente discurso de Jesus sobre o pão da vida, que é ele mesmo, e a necessidade de alimentar-se dele para obter vida em plenitude. Tudo isso, ainda, como desdobramento do sinal da multiplicação (condivisão) dos pães no início do capítulo (6,1-15).

Como sempre, para compreender melhor o texto é necessário recordar o seu contexto narrativo. E o primeiro aspecto a ser recordado é a reação da multidão que tinha sido saciada com a partilha dos cinco pães e dois peixes: quiseram, de imediato, proclamar Jesus como rei (6,15), como consequência de uma compreensão equivocada do seu messianismo, uma visão totalmente incompatível com a missão de Jesus e o seu estilo de vida. Diante de uma ideia tão absurda, Jesus quis refugiar-se (6,15), por precaução, a fim de não alimentar ideias erradas sobre a sua missão, mas a multidão foi atrás dele e, no dia seguinte, o encontrou novamente, já na sinagoga de Cafarnaum, do outro lado do lago (6,22-25). Jesus percebeu logo o equívoco e, com muita franqueza e transparência, disse porque estavam lhe procurando: queriam, novamente, comer pão gratuito e em abundância (6,26). Diante disso, ao sentir-se incompreendido, Jesus aproveitou a oportunidade para fazer uma ampla catequese, apontando para a importância de se buscar não apenas o pão material, pois, embora necessário e essencial, esse é perecível e seus efeitos duram poucas horas. Por isso, apontou para a necessidade de um alimento que dura por toda a vida, mostrando que esse alimento é a sua própria pessoa (6,27-40), dom por excelência do Pai para a vida do mundo.

Ao apresentar-se como verdadeiro alimento, ou seja, como pão da vida ou pão vivo descido do céu, e convidar os seus ouvintes a comer a sua carne e beber o seu sangue, Jesus causou perplexidade, questionamentos, incredulidade e até ira, em seus interlocutores. Enfim, provocou as mais variadas reações. Inclusive, após a conclusão do discurso (6,59), instaurou-se uma grande crise entre os seus discípulos, pois, até então, ainda não tinham escutado exigências tão fortes para o seguimento. O evangelista João recorda tudo isso para ajudar a sua comunidade a discernir e tomar decisões: o seguimento de Jesus é comprometedor... ser discípulo e discípula dele não é memorizar uma doutrina para depois repeti-la, mas é entrar em comunhão plena com a sua pessoa, assimilando seu jeito de ser; é esse o sentido de comer a sua carne e beber o seu sangue (6,54). Recebê-lo como alimento é tornar-se também alimento para os outros. Uma proposta de vida tão exigente assim não poderia ser assimilada com facilidade. Certamente, entre as diversas formas de reação, houve também quem sentiu-se mais convicto e confiante para continuar no seguimento, como ser verá pela declaração de Pedro. Contudo, a crise foi instaurada no discipulado.

Tendo já mostrado as reações de outros interlocutores, como a própria multidão e “os judeus”, ao discurso de Jesus como verdadeiro alimento e pão para a vida eterna, o evangelista quis mostrar também a reação dos discípulos, pois era essa a que mais interessava à sua comunidade que se encontrava com a fé comprometida, devido as perseguições e o “esfriamento” no fervor de alguns membros, na época da redação do Evangelho. Olhemos então para o texto, começando pelo primeiro versículo, no qual se diz que «Muitos dos discípulos de Jesus, que o escutaram, disseram: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?”» (v. 60). Como se vê, os próprios discípulos contestam o discurso que Jesus tinha acabado de proferir. E essa é a primeira grande novidade do evangelho de hoje. Ora, os evangelhos mostram muitas situações em que Jesus é contestado pelos seus tradicionais adversários (fariseus, saduceus, mestres da lei…), mas raramente pelos discípulos. O máximo que os discípulos ousavam era fazer perguntas e pedir esclarecimentos sobre alguns aspectos da sua vida e do seu ensinamento que não tinham ficado muito claros. Normalmente, eles concordam, ou pelo menos fingem concordar, com tudo o que Jesus diz, exceto quando escutam o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23; Mc 8,27-33).

Quando não concordam com o que Jesus diz, geralmente seus discípulos silenciam. É partindo desse dado que se percebe a profundidade da contestação apresentada no evangelho de hoje. Trata-se de um verdadeiro protesto contra Jesus e sua mensagem: «Esta palavra é dura». Muitos dos seus se sentiram realmente ofendidos, incapazes, incapazes de levar adiante um programa tão comprometedor. O adjetivo grego empregado pelo evangelista, traduzido por dura, é ‘sklerós’ (σκληρός), do qual deriva a palavra esclerosado/a. Além de dura, essa palavra – sklerós –pode ser traduzida também por insuportável, inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam completamente incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio de Jesus parecia inviável para eles. A dureza da palavra de Jesus consiste no comprometimento que dela deriva: diante dela, é preciso tomar posições firmes, como tornar-se alimento para os outros, fazendo as mesmas opções de Jesus e, consequentemente, assumindo as consequências. É uma palavra dura porque não se trata de um discurso para ouvir uma vez por semana, como a liturgia da sinagoga, mas exige uma coerência de vida cotidiana; não é uma palavra para ser simplesmente proferida, mas para ser vivida, acima de tudo.

Além da reclamação de muitos discípulos em alta voz, Jesus percebeu também que outros de «seus discípulos estavam murmurando, e por causa disso mesmo, perguntou: “isto vos escandaliza?”» (v. 61). Ao murmurar, os discípulos de Jesus repetem um dos antigos pecados de Israel. No contexto do êxodo, os israelitas recém-libertados murmuravam constantemente contra Deus e Moisés (Ex 16,2-4). O verbo murmurar, como emprega o evangelista (em grego: γογγύζω – gonguízo) expressa uma verdadeira revolta contra Deus; considerando toda a simbologia do mundo bíblico, é a negação da fé. No contexto dos evangelhos, é o verbo empregado tradicionalmente para descrever a reação dos adversários de Jesus (fariseus, saduceus, sacerdotes, etc.). Portanto, os discípulos, ou pelo menos uma parte deles, estavam agindo como adversários de Jesus, pois se sentiram ofendidos pelo seu discurso tão exigente. Ao perguntar se aquilo – o discurso – os escandalizava, ou seja, se era impedimento para a fé deles, Jesus vai bem mais além, dizendo, em outras palavras, que era como se os discípulos “ainda não tivessem visto nada”, pois realidades mais difíceis de assimilação ainda estavam por vir: «E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?» (v. 62). Ora, uma das passagens mais chocantes do discurso de Jesus foi dizer ser ele “o pão vivo descido do céu”; um absurdo para seus ouvintes que conheciam até mesmo seus pais e sabiam que ele não passava de um filho de carpinteiro (6,41-42) e, por isso, não poderia ter uma origem no alto. Logo, a sua subida seria muito mais chocante para os discípulos, uma vez que compreendia a morte na cruz, que deveria ser o destino reservado também a eles, como consequência. Aqui, portanto, Jesus os previne: coisas piores estão por acontecer, humanamente falando. Ora, se ficaram escandalizados porque Jesus afirmou ter descido do céu, muito mais ficariam vendo a sua subida, sobretudo porque essa pressuponha a cruz, e o destino dos crucificados, conforme a tradição, era a condenação eterna. Portanto, tendo a cruz no horizonte, a tendência é que muitos dos discípulos sentissem as exigências do programa de Jesus ainda mais duras, tornando-se cada vez mais difíceis de ser assimiladas.

Diante da reação negativa, Jesus não procura conformar seu discurso e suas exigências às capacidades e disposições dos discípulos. Pelo contrário, ele reforça o que já havia dito e deixa claro que já previa a resistência e até mesmo a negação completa de seu projeto por alguns discípulos. Ele sabia que somente deixando-se guiar pelo Espírito os discípulos poderiam manter-se firmes no seu seguimento. Por isso, declara: «O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não crêem» (vv. 63-64a). A reação negativa dos discípulos não faz Jesus alterar seu projeto. Ele sabia que muitos ainda não tinham se deixado conduzir pelo Espírito e abraçado a fé, continuavam vendo as coisas apenas no plano material e conforme a Lei, por isso, não tinham assimilado a vida contida em suas palavras. Inclusive, «Jesus sabia desde o início, quem eram os que tinham fé e quem havia de entregá-lo» (v. 64b). A contraposição entre ter fé e entregar – trair – reforça que o contrário da fé não é a incredulidade, mas a covardia. Diante de tudo isso, percebendo a oposição de muitos de seus discípulos, Jesus reforça sua confiança no Pai, ressaltando sua relação intrínseca com ele: «É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim, a não ser que lhe seja concedido pelo Pai» (v. 65). Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem chama e atrai as pessoas para o seu seguimento. Isso recorda que, na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Os evangelistas fazem questão de ressaltar, e João com mais precisão ainda, que a salvação é um projeto originado no Pai, de quem Jesus é o agente autorizado para torná-la acessível a toda a humanidade.

O evangelista apresenta esse momento como um divisor de águas na vida de Jesus e dos discípulos, pois foi no discurso do pão da vida que Jesus apresentou a sua máxima revelação, até então, na dinâmica do Quarto Evangelho. Foi o momento em que Jesus mais falou de si, deixando-se conhecer completamente. O evangelista sentia que a sua comunidade, vivendo momentos de altos e baixos no discipulado, precisava tomar decisões importantes e, para isso, era necessário tornar Jesus cada vez mais conhecido em toda a sua profundidade, inclusive deixando mais claro o seu programa de vida com as exigências implicadas no seu seguimento. Até mesmo o encontro semanal da fração do pão – a eucaristia – estava perdendo a sua importância na comunidade joanina, passando a ser apenas um conjunto de ritos, deixando de ser verdadeiro encontro de comunhão transformadora. Assim como Jesus mesmo fez, também o evangelista quis mostrar que o discipulado não é uma obrigação, e sim uma opção, por sinal, radical e exigente. Por isso, ele diz que «A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele» (v. 66). Houve desistência entre os discípulos porque nem todos estavam dispostos a aderir aos compromissos do discipulado. Mas não se trata apenas de uma desistência e sim de um rompimento total. Voltar atrás, aqui, é mais do que desistir, significa uma negação completa. Não quer dizer que apenas deixaram de andar com ele, como faz entender a tradução do texto litúrgico. Quer dizer que romperam completamente, deixando de acreditar. As “palavras duras” são realmente difíceis de ser assimiladas e vividas, de modo que um seguimento superficial não tem como se sustentar. Por isso, muitos desistiram de continuar seguindo-o. A “debandada” de discípulos nas comunidades de tradição joanina parece ter sido marcante, pois na Primeira Carta o autor faz referência, embora com outras palavras, ao mesmo fato: «Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco». (1Jo 2,19). Por isso, no discurso de despedida, o verbo mais utilizado por Jesus será o verbo “permanecer” no modo imperativo (Jo 14-17). 

Entre os discípulos e discípulas, estava o seu núcleo primeiro, o chamado grupo dos Doze, a quem Jesus se dirige com muita firmeza: «Vós também vos quereis ir embora?»  (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, as convicções do seu projeto: ele prefere ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar o sistema e, assim, iniciar a construção de um mundo novo, humanizado, repleto de amor, justiça, fraternidade e paz. Jesus quer saber com quem pode contar, embora esteja disposto a seguir com seu projeto mesmo ficando sozinho, se necessário. Essa é a primeira vez que o evangelista João se refere ao grupo dos discípulos como os Doze; e só fará isso mais três vezes (Jo 6,69.71; 20,24). No contexto do sinal da partilha dos pães, essa menção adquire um sentido ainda maior: assim como sobraram doze cestos de pães, após a multidão ficar saciada (Jo 6,13), sobraram doze discípulos para Jesus. É um claro recado do evangelista às suas comunidades e aos seus leitores de todos os tempos: a comunidade de Jesus é feito das sobras, das margens, dos excluídos. Os Doze não foram os melhores, escolhidos a dedo, na verdade foi o que sobrou para Jesus. É com esse resto que ele vai contar na continuação do seu projeto. Prova que foi realmente uma sobra é o fato de que, desse mesmo grupo, ainda vai sair um traidor e outro que o negará. Humanamente falando, esse episódio é um atestado do fracasso da missão de Jesus, por isso, se torna um divisor de águas no plano narrativo do Quarto Evangelho.

Mesmo não sendo totalmente coerente, o grupo dos Doze optou por continuar no seguimento, como mostra o evangelista com a resposta de Pedro: «Simão Pedro respondeu: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o santo de Deus”» (v. 68-69). Do que sobrou, Jesus encontrou resposta para seu projeto de libertador. Ao mostrar que Pedro respondeu no plural – nós –, o evangelista afirma que Pedro fala em nome dos Doze. É a resposta da comunidade que, embora pequena numericamente, procura perseverar com fidelidade no seguimento, reconhecendo que, apesar de duras, as palavras de Jesus contêm vida, são palavras de vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados, ou seja, os restos descartados pelos sistemas de dominação. A resposta de Pedro indica reflexão. Não há outro a quem ir; não há outro que tenha uma proposta tão inclusiva e humanizante. Num mundo hostil e perverso, explorado pela religião e pelo império romano, a comunidade joanina, mesmo sendo um pequeno resto, não via outra possibilidade de encontrar vida e sentido para a existência senão nas palavras de Jesus. Talvez isso explique o fato de ser o Evangelho que contém mais palavras e discursos de Jesus; é o Evangelho no qual Jesus mais fala. Certamente, o evangelista sentia a necessidade de alimentar sua comunidade com palavras de vida eterna. E somente as palavras que saem da boca de Jesus geram vida eterna. Isso porque ele é a própria Palavra-Verbo que se faz carne. Logo, o que ele fala vivifica.

Além da confiança nas palavras de Jesus, a resposta de Pedro também expressa a fé da comunidade e o quanto essa deve ser sólida: «nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus» (v. 69)Com essa afirmação, o evangelista traz outra informação importante que reflete a situação da sua comunidade: a necessidade de conciliar fé e conhecimento. De fato, não há contraposição entre essas duas realidades. O evangelista emprega dois verbos fundamentais da sua catequese e teologia: crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) e conhecer/saber (em grego: γινώσκω – guinôsko). Na época, havia muitas correntes teológicas equivocadas que tentavam separar a fé do conhecimento. É claro que não basta o conhecimento para um seguimento autêntico; tampouco tem sentido uma fé cega, desprovida de razão. O evangelista mostra a necessidade de conciliar fé e conhecimento a fim de garantir solidez na vivência dos ensinamentos de Jesus. E o objeto da fé e do conhecimento da comunidade deve ser a identidade de Jesus, como Pedro confessa: «tu és o Santo de Deus». Sem dúvidas, temos aqui o equivalente à solene confissão de Pedro dos evangelhos sinóticos, na região de Cesareia de Filipe (Mc 8,29; Mt 16,16; Lc 9,20). É claro que há diferenças na formulação da confissão, mas possui valor equivalente. Inclusive, também entre os sinóticos há pequenas diferenças na expressão. Mas é inegável a equivalência. Quem o reconhece Jesus como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé. Assim, os Doze conseguem assimilar a outra dimensão da dureza: a firmeza, a coragem e a força, elementos necessários e essenciais para implantar, no mundo, a civilização do amor. A proclamação de Jesus como “O Santo de Deus” é também uma forma de dizer que ele é o único agente de Deus para agir em seu nome com legitimidade. Desse modo, a religião do templo – da sinagoga na época, da redação do evangelho – não tinha mais autoridade para revelar Deus e agir em seu nome. Só Jesus revela Deus. Só se conhece Deus passando por Jesus, e só passa por Jesus quem come sua carne e seu sangue, ou seja, quem assimila seu jeito de viver.

Que saibamos reconhecer que as palavras duras de Jesus são também portadoras de espírito e vida, por isso, indispensáveis para a missão. Que essas mesmas palavras nos ajudem a discernir e escolher a qual projeto e religião seguir: um projeto de vida consistente e comprometedor, que não exige meios termos, mas apenas um engajamento total e transformador ou, simplesmente, uma religião como conjunto de ritos e normas com encontros dominicais fervorosos e semanas vazias de sentido e de amor. O Evangelho de hoje nos coloca numa verdadeira encruzilhada; é preciso tomar decisão: continuar seguindo-o ou abandoná-lo. Ele nada impõe, cada pessoa é livre para segui-lo ou não. Porém, de quem escolhe segui-lo exige-se o compromisso de ser portador de uma palavra dura, embora portadora de vida, esperança, amor e força humanizadora.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, agosto 16, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA – LUCAS 1,39-56


Neste ano, a liturgia do vigésimo domingo do tempo comum é substituída pela solenidade da Assunção de Maria. Independentemente do ano litúrgico, o evangelho desta festa é sempre o mesmo: Lc 1,39-56. Trata-se de um dos textos mais conhecidos do Evangelho de Lucas, que compreende a visitação de Maria à sua parenta Isabel, e o famoso cântico do Magnificat. Embora a assunção só tenha se tornado dogma em 1950, pelo papa Pio XII, as tradições relativas à festa em si são muito antigas. Inicialmente, celebrava-se essa festa com o nome de “dormição de Nossa Senhora”, título que as igrejas do Oriente preservam até hoje. Contudo, como sempre, concentramos a nossa reflexão exclusivamente a partir do texto do evangelho proposto, o qual possui grande importância para o conjunto da obra de Lucas. E é importante começar considerando o contexto narrativo, que é o chamado “Evangelho da Infância”, formado pelos dois primeiros capítulos do Evangelho (Lc 1–2), que funcionam como introdução literária e síntese teológica de toda a obra.

É unanimidade entre os estudiosos que, no “Evangelho da Infância”, Lucas antecipa as principais linhas teológicas da sua grande obra, composta também pelo livro de Atos dos Apóstolos. E o trecho lido hoje é uma boa demonstração disso. De fato, os principais temas da obra lucana, como o protagonismo das mulheres, a opção pelos pobres, a força transformadora do Espírito Santo, a misericórdia de Deus, e a natureza missionária da Igreja estão bem presentes no evangelho de hoje. E o primeiro tema evidenciado é exatamente o protagonismo feminino: a cena é dominada pelo encontro de duas mulheres que, em diálogo, expressam suas impressões sobre os últimos acontecimentos, reconhecendo neles o agir de Deus, e apontando um futuro novo. Com isso, o evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas perspectivas e esperanças; trata-se de uma história construída e escrita a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as mulheres na época em que Evangelho foi escrito. O que Deus sempre propôs à humanidade, começa a cumprir-se e realizar-se definitivamente a partir do sim de Maria. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar misericordioso (v. 48).

Certamente admirada com tudo o que estava acontecendo consigo e com Isabel, pois o anjo lhe informara (Lc 1,36), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta. Assim diz o texto: «Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia» (v. 39). Embora a maioria das interpretações apontem o desejo de servir a Isabel como o motivo da partida apressada de Maria, o texto não fornece nenhum indício. Sem dúvidas, o serviço ao próximo sempre fez parte do estilo de vida de Maria, sobretudo após o seu decisivo sim a Deus. Mas aqui se pode ver algo além disso. Ora, quando Maria questionou o anjo no momento do anúncio, sobre como poderia engravidar se não tinha relação com homem algum (Lc 1,34), o anjo disse que tudo seria obra do Espírito Santo, e ainda deu um exemplo concreto como sinal e prova de que nada é impossível para Deus: Isabel, uma anciã estéril estava grávida (Lc 1,36). A gravidez de uma anciã estéril seria tão surpreendente quanto a de uma jovem virgem. É, portanto, normal e compreensível que Maria tenha procurado Isabel para confirmar se o que anjo lhe dissera era verdade. Também é normal que tenha procurado sua parenta para partilhar a alegria do que estava acontecendo com ambas, como sinal da fidelidade de Deus ao seu povo, Israel, de quem as duas são imagens.

Ao conceder tanto espaço a Maria no início do seu Evangelho, Lucas está criando o modelo de discípulo e discípula ideal para Jesus. Por isso, é importante apresentá-la em movimento, disposta a proclamar, até nos lugares mais distantes, as maravilhas de Deus e a certeza de que ele está construindo uma nova história, a partir das pessoas humildes e marginalizadas. A partida de uma jovem grávida de Nazaré, na Galileia, para a Judeia antecipa os desafios e a necessidade dos discípulos de todos os tempos estarem sempre em estado de saída. Mesmo que a distância não fosse tão grande, as circunstâncias eram muito adversas para uma jovem mulher. É típico da obra lucana o movimento, o sair de si. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e perigos, como Maria teria enfrentado no caminho, indo sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

O evangelista diz que, chegando ao destino, Maria «Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel» (v. 40). Muito mais do que cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais apropriado na tradução do texto. A expressão hebraica para a saudação é o desejo de paz – o hebraico shalom. Mais tarde, ao enviar seus discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,5). Isso mostra que, aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula de Jesus: ser portador(a) da paz! Maria é mesmo a imagem ideal de todo discípulo e discípula de Jesus. E a paz que Jesus comunica é sempre inquieta; não é tranquilidade nem resignação; é o acesso aos bens messiânicos, como a libertação de todas as cadeias de morte impostas pelos sistemas dominantes, é a conquista de um mundo com igualdade e bem-estar para todos. E o evangelista sempre apresenta Maria quebrando paradigmas: como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher ao invés do homem, ao entrar na casa (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará mais adiante, no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, quem deveria ser saudado era o dono da casa; saudando a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem. Percebe-se que, apesar de poucos, cada gesto de Maria antecipa o futuro agir libertador Jesus. O mesmo pode ser constatado com suas palavras que, embora também sejam poucas, ela antecipam a mensagem de Jesus. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que Lucas a apresenta como modelo de discípula, ele reconhece que, na condição de mãe, ela foi também mestra de Jesus.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a), o que confirma que a paz de Jesus, que ela antecipa, não combina com tranquilidade, mas provoca inquietude. Isso porque Isabel também ficou «cheia do Espírito Santo» (v. 41b), como Maria já estava. Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: «O Espírito Santo descerá sobre ti» (Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. Quem recebe o Espírito Santo, o irradia por onde passa e onde chega, como um contágio. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!» (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais “bendita” entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar as “bem-aventuranças” no Evangelho de Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias tão esperado seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a Escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-la no “evento Cristo”. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova “Arca da Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo, conforme a fé do povo de Israel. Com esta exclamação de Isabel: «Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?» (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: «Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?» (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova da aliança, não mais portadora da Lei escrita em tábuas de pedra, e sim portadora do amor e da misericórdia de Deus, conforme Jesus veio manifestar ao mundo. E a Lei que Maria carrega em si é o próprio Jesus, com seu Evangelho libertador e o Espírito Santo, do qual ela estava cheia e, por isso, o irradiava, sendo a primeira a viver a experiência de Pentecostes, enquanto envio do Espírito Santo ao mundo. Convém recordar que Lucas compara os eventos do Antigo Testamento com os do Novo para mostrar a superioridade do Novo. Assim, enquanto diante da arca, Davi exclamou com medo (2 Sm 6,10), diante de Maria, Isabel exclamou de alegria, o que mostra que a Lei escraviza, enquanto o Espírito, que é amor, liberta, transforma, humaniza.

E, mais uma vez, Lucas faz Maria ser reconhecida como bem-aventurada: «Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (v. 45). O motivo do reconhecimento, desta vez, é a fé: ela é bem-aventurada porque acreditou. Além de exaltar a fé de Maria, as palavras de Isabel funcionam também como uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Assim, Isabel combate a incredulidade do marido e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: «Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião oficial do templo, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes de acolher as intuições do Espírito Santo, como fez Maria. Assim, a religião do rigor e da Lei estava superada, pois não capacitava o ser humano para perceber o agir de Deus na vida e na história. Isso quer dizer que, para o evangelista, o exemplo de fé não está nas autoridades religiosas, mas nas pessoas simples e humildes.

Na sequência do texto, finalmente, Maria toma a palavra, pois somente Isabel tinha falado até aqui. As entrelinhas apontam para um provável constrangimento de Maria, diante de tantos elogios. Por isso, o evangelista mostra ela praticamente interrompendo Isabel, para expressar a sua alegria e o louvor a Deus, com o seu magnífico cântico (vv. 46-54). Isto reflete, certamente, a preocupação do evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja: não é ela que deve ser louvada, mas o Deus que agiu nela. O centro do culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, antecipa a missão de Jesus. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura básica é tomada do cântico de Ana (1Sm 2,1-10), o que se explica pela semelhança das duas situações, uma vez que, assim como Isabel, também Ana era considerada estéril e concebeu um profeta, Samuel, como Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-a a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que estava acontecendo era dom de Deus e prova da sua fidelidade.

Em seu cântico, Maria personifica Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que «o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas» (v. 49), também se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). E essa é a primeira condição para o início da edificação do Reino de Deus: a queda dos poderosos, ou seja, de todos os detentores de poder que oprime e mata. Um só é o Poderoso, Deus, e este destina seu poder em favor da libertação dos pequenos. Temos, então, o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e da comunidade dos seus discípulos, da qual Maria é modelo. Aqui, mais uma vez, Lucas faz Maria antecipar o programa messiânico de Jesus, que será anunciado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-18) e confirmado no sermão da planície. De fato, a expressão «Encheu de bens os famintos» (v. 53a), antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (Lc 6,20-21); já a expressão «Despediu os ricos de mãos vazias» (v. 53b) antecipa as maldições lançadas contra os ricos – “ai de vós” (Lc 6,24-25). O Magnificat é, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos de Jesus, a comunidade cristã. É clara, portanto, a intenção de Lucas de antecipar a missão de Jesus. Isso mostra também que ele é o evangelista que mais retoma a mensagem profética de denúncia às injustiças sociais. A predileção de Deus pelos pequenos, tão clara no ministério de Jesus, é central na mensagem dos profetas do Antigo Testamento. E o Magnificat evidencia bem essa continuidade.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança, mas com uma dimensão completamente nova. Diz o evangelista que «Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa» (v. 56). No Antigo Testamento há uma expressão muito parecida com essa, em 2Sm 6,11, e certamente Lucas pensou nela, ao fala da permanência de Maria na casa de Isabel: «A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família». A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João. Mas a bênção que a presença de Maria inaugura é infinitamente superior a tudo o que até então se tinha experimentado, pois é o início da plenitude da presença de Deus em meio ao seu povo. Na arca da nova aliança já não há tábuas de pedra com a Lei inscrita, não há mais norma nem preceito; há o Espírito Santo e Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história, como cantado no Magnificat.

Mais do que um reforço à devoção, o evangelho deste dia é um convite e advertência à comunidade cristã a reencontrar-se com suas origens, com sua identidade missionária e sinodal, assumindo seu compromisso de ser presença do Reino, promovendo igualdade e fraternidade. Para isso, é necessário renovar a confiança no Espírito Santo, que é aquele que dá impulso à força transformadora dos pequenos e humildes. Um trecho do evangelho tão significativo como este, no qual apenas duas mulheres falam, discutindo um novo rumo para a humanidade, não pode deixar de ser visto também como um sinal de que a voz feminina precisa ser mais ouvida e valorizada na Igreja.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 10, 2024

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,41-51 (ANO B)


A liturgia do décimo nono domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, iniciada há dois domingos. O trecho lido hoje é Jo 6,41-51. Apesar de saltar alguns versículos, é clara a continuidade entre o texto de hoje e aquele do domingo passado (Jo 6,24-35). É a sequência do discurso de autoapresentação de Jesus como pão vido descido do céu e alimento para a vida eterna, proferido na sinagoga de Cafarnaum. Esse discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado na outra margem do mar – ou do lago –, e maravilhada por causa do sinal cumprido, quis logo proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de suas ações prodigiosas (Jo 6,1-15). Diante disso, Jesus refugiou-se (Jo 6,15b-21), ao perceber a interpretação equivocada e as pretensões interesseiras, mas a multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com fartura (Jo 6,22-25). Conhecendo as intenções da multidão, Jesus aproveitou a oportunidade para apresentar uma ampla catequese, chamando a atenção para a importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão vivo descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo. Por tratar-se de uma realidade difícil de ser assimilada, o evangelista organizou essa catequese em forma de um longo discurso de revelação, e a liturgia do “ciclo B” o distribuiu na sequência de domingos que estamos celebrando. O contexto, brevemente recordado acima, é o mesmo dos últimos domingos, o que torna desnecessário recordá-lo de modo mais pormenorizado.

A autoapresentação de Jesus como pão descido do céu e alimento para a vida eterna foi duramente criticada e questionada pelos seus ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para eles, a única referência de pão descido céu era o maná do deserto, mas aquele era um alimento perecível, tanto é que os antepassados que dele se alimentaram, morreram todos. Portanto, a afirmação de Jesus soava como pretensiosa e uma verdadeira afronta aos parâmetros da religião judaica. Por isso, o protesto questionador: «Os judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o pão que desceu do céu» (v. 41). Geralmente, quando o evangelista João menciona “os judeus”, não se refere ao povo judeu propriamente, mas às autoridades religiosas, que eram bastante hostis aos ensinamentos e à pessoa de Jesus. Contudo, neste caso, quase excepcionalmente, a expressão “os judeus” designa o povo mesmo, a multidão que estava ao redor de Jesus, que tinha se alimentado fartamente com o pão multiplicado, mas era manipulada ideologicamente pelas classes dirigentes de Israel. Ora, Jesus com sua mensagem libertadora era visto como uma verdadeira ameaça para aquela religião, pois ele abria caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da sua pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos. Por isso, era frequente o murmúrio diante da sua mensagem, tanto da parte das lideranças quanto do povo por elas manipulado, como neste caso. A proposta humanizadora de Jesus soava altamente desestabilizadora para a religião e todo o sistema vigente.

Na linguagem bíblica, o verbo murmurar (em grego: γογγύζω – gonghýzo) não significa uma simples crítica ou discordância. Trata-se de um lamento que afronta, negando a autoridade. Por isso, é um pecado, pois nega a graça e o poder de Deus. É a atitude de um povo rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por Deus, como acontecera no deserto: «Murmuraram contra Moisés e contra Aarão todos os filhos de Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos morrido na terra do Egito! Estamos morrendo neste deserto!» (Nm 14,2). Portanto, o murmúrio do povo contra Jesus é a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré. Ao se autoapresentar como pão descido do céu, Jesus quis mostrar o fim da distância entre o humano e o divino; decretou a proximidade de Deus com a humanidade, mas foi rejeitado pelo povo que estava manipulado por uma religião que imaginava ter o monopólio de Deus. Por isso, o discurso se prolonga bastante, pois Jesus insiste na emancipação do povo, mesmo que não alcance o objetivo, pois o murmúrio indica o fechamento de perspectiva e mentalidade, o que impede a necessária conversão.

Para desqualificar Jesus e negar a sua condição de enviado de Deus, seus contestadores alegam a sua origem humana e simples: «Eles comentavam: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?”» (v. 42). Vale lembrar que o fato de seus interlocutores conhecerem seus familiares por nome é mais uma demonstração de que, neste caso, os judeus são mesmo o povo simples da Galileia, e não as autoridades de Jerusalém. Como a religião oficial tinha caricaturado Deus como um soberano distante da terra, inacessível ao ser humano, as afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela mentalidade, era impossível que um Deus tão grande pudesse ser manifestar na pessoa de um simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos, Jesus não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus difundida por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, os judeus do seu tempo estariam desconstruindo um discurso sustentado há séculos e colocando em risco os privilégios dos poderosos. Ao associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus afirmavam que ele não poderia ter descido do céu, pois possuía origem comum a todos os homens.

Jesus não entra diretamente na discussão, pois não sente necessidade de reafirmar a sua origem divina para aquele povo duro de coração. Apenas interrompe o comentário, repreendendo às murmurações: «Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós”» (v. 43). Jesus não quer a perpetuação dos erros de Israel que, historicamente, tem interpretado mal a presença de Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes. Ele combate o murmúrio porque deseja que Deus, o seu Pai, quer que todos o reconheçam e o aceitem como ele realmente é: um Pai doador de vida, por amor. E tudo o que um pai realmente necessita é de filhos sintam-se amados e se amem reciprocamente. Por isso, com muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso deixar-se atrair pelo Pai para chegar até ele e sentir-se filhos e filhas: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia» (v. 44). Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem atrairá cada pessoa ele. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus, o Pai. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Ao reconhecer o Pai como agente de atração, Jesus dispensa qualquer forma de proselitismo e fundamentalismo no seu seguimento. A atração do Pai se dá por uma espécie de contágio, cujo elemento determinante é o amor. Quem faz a experiência de encontro com um Deus que é essencialmente amor, sente-se atraído por ele. E muitas vezes o que desperta para esse encontro é a maneira de viver das pessoas que já se encontraram com ele. Por isso, na relação com Jesus, sobretudo na perspectiva do evangelista João, o testemunho é tão indispensável. Por isso, o proselitismo é, além de desnecessário, também nocivo.

Em Jesus, toda a humanidade tem a oportunidade de unir-se a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do Pai (v. 45). Ora, escuta o Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna, o seu filho Jesus, cujo convite já ressoava desde os tempos dos profetas (Hb 1,1ss). O Evangelho de Jesus é, portanto, a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a humanidade. Por Evangelho, aqui, compreende-se a vida e a mensagem de Jesus. Assim como Jesus é o Reino em pessoa, ele é também o Evangelho em pessoa, pois é melhor de todas as boas notícias que o Pai já comunicou ao mundo. Por isso, ainda como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua condição de único mediador entre o Pai e a humanidade: «Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai» (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto amoroso do Pai quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto a religião oficial comercializava um personagem distante, violento e vingativo, caricaturado de Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo claro a identidade do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas uma adesão de fé, pois é ele mesmo quem se oferece à humanidade.

E Jesus continua sua catequese como resposta às incompreensões e murmúrio da multidão que lhe cercava, expondo agora o resultado direto para quem, atraído pelo Pai, lhe der adesão pela fé: «Em verdade, em verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna» (v. 47). O verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) é um dos mais relevantes para a comunidade do evangelista João, sendo utilizado noventa e oito vezes no seu Evangelho, enquanto Marcos o emprega doze vezes, Mateus trezes vezes e Lucas apenas nove vezes. Significa dar plena adesão a Jesus, deixando-se conduzir pelo seu Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Como consequência, quem faz essa adesão se torna possuidor da vida eterna, a qual não é uma vida para o além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. O evangelista faz questão de empregar o verbo possuir no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a vida eterna (em grego: ζωὴν αἰώνιον – zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte foi capaz de destruí-la. A eternidade dessa vida não significa a duração, mas a qualidade: é a vida em abundância, que já começa neste mundo; é uma vida tão autêntica, tão cheia de sentido, que nem a morte destrui-la-á.

Mais uma vez se apresentando como pão da vida e alimento perene (v. 48), Jesus põe em questão o maná comido pelos antepassados no deserto, mostrando a ineficácia daquele alimento: «Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram» (v. 49). Aqui, Jesus dá mais um sinal de ruptura com aquela tradição ao falar de “vossos pais” ao invés de “nossos pais”, pois ele também era judeu de origem. Ele quer se distanciar de uma tradição ultrapassada, fechada em seus próprios conceitos e incapaz de abrir-se ao novo. O apego aos “pais” encobria o rosto paterno de Deus. Essa tradição impedia o povo de viver uma relação filial com Deus. Eles colocavam personagens do passado no lugar do Pai, colocando Deus num trono imaginário inacessível. Jesus quer que todos tenham Deus como único Pai; para isso, é preciso sentir-se filhos e filhas dele. Seus interlocutores, pelo contrário, sentiam-se clientes de Deus, no máximo servos, devido à manipulação da religião. Na referência ao maná está implícita a referência à Lei. Assim como o maná não evitou a morte dos antepassados, também a observância da Lei não garante a vida em abundância. Mesmo assim, os judeus continuavam “devotos” do maná, considerando-o como o único alimento descido do céu. Jesus se contrapõe a essa mentalidade: está sendo dada a oportunidade de provarem um alimento verdadeiramente descido do céu, que é ele mesmo, como disse: «Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá» (v. 50).

Apresentando-se como pão, Jesus garante a sua eficácia como alimento e deixa ainda mais clara a oferta total de si para a vida do mundo: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo» (v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um povo específico e privilegiado que, mesmo assim, murmurava constantemente. A oferta de Jesus é universal, não é mais para a vida de um povo, mas para a vida do mundo. Toda a humanidade é destinatária: é uma oferta universal e plena, porque é a inteireza do seu ser, é carne e espírito, é sua vida e mensagem dadas plenamente. Aceitar essa oferta é condição para viver eternamente. O evangelista usa a palavra carne (em grego: σάρξ – sarx), um hebraísmo que exprime a totalidade da pessoa, ao invés de corpo, que poderia ser facilmente interpretado a partir da dicotomia grega corpo-espírito. É, portanto, pelo dom da carne de Jesus que é dada vida ao mundo. Logo, é também na condição carnal que o ser humano é chamado a acolher a salvação, quer dizer, na concretude da existência terrena, mesmo marcada por contradições. Do pão enquanto palavra, passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma perspetiva ainda mais eucarística, mas não no sentido ritual, ainda, mas enquanto vida que se doa. A expressão «carne dada para a vida do mundo» indica, acima de tudo, a entrega de Jesus na cruz, consequência de seu amor infinito e sua fidelidade ao Pai. Se foi na carne que ele veio ao mundo, enquanto Palavra eterna, é também na carne que ele dá vida ao mundo.

Acolher Jesus como pão descido do céu é aceitá-lo como único mediador e revelador do Pai. Recebê-lo como alimento perene é aceitar o Evangelho como único programa de vida. A insuficiência e ineficácia do maná está ficando cada vez mais clara no discurso de Jesus, assim como o pão partilhado para a multidão no outro lado do mar. Com isso, se torna cada vez mais claro que o único alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida eterna é o próprio Jesus na inteireza do seu ser. Comê-lo é assimilar o Evangelho com todas as consequências que dele emanam.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,31-37 (ANO B)

O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum é Mc 7,31-37, texto que compreende o relato da cura de um surdo-mudo por Jesus,...