A liturgia
deste domingo – o vigésimo segundo do tempo comum – retoma a leitura do
Evangelho de Marcos, após uma interrupção de cinco domingos seguidos, quando
foram lidos trechos do capítulo sexto do Evangelho de João e um trecho de
Lucas, na solenidade da Assunção. O texto proposto para hoje é Mc
7,1-8.14-15.21-23. Como se vê, o texto está bastante fragmentado, devido aos
recortes. Seria mais interessante a leitura completa (vv. 1-23); contudo,
devemos nos contentar com o que a liturgia oferece. O trecho selecionado mostra
mais uma controvérsia de Jesus com os fariseus e mestres da lei. Os devotos
praticantes da religião oficial, fiéis guardiões da moral e dos bons costumes
da época, observam que o comportamento de Jesus e seus discípulos não condiz
com as tradições ensinadas e transmitidas pelos antepassados, por isso lhe
fazem alguns questionamentos e acusações. Ao respondê-los, Jesus os desmascara,
apontando e denunciando a hipocrisia deles. A controvérsia presente no texto de
hoje diz respeito às leis de pureza relacionadas às práticas alimentares, uma
das principais causas dos conflitos entre o judaísmo oficial e as primeiras
comunidades cristãs. O evangelista situa a cena logo após o relato de uma
intensa atividade messiânica de Jesus (Mc 6,53-56), marcada por muitas curas e
um contato muito próximo com pessoas de diversos lugares. Na ocasião, ele tanto
tocava quando deixava ser tocado pelas pessoas, sobretudo as enfermas. O toque
era traço marcante do agir libertador de Jesus. Tocando nas pessoas e
permitindo ser tocado por elas, ele libertava e humanizava.
O texto começa
com a seguinte afirmação: «Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de
Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus
discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado» (vv.
1-2). Já fazia algum tempo que Jesus era considerado uma pessoa perigosa para a
religião e o sistema dominante como um todo, devido à sua maneira autônoma e
livre de interpretar os costumes e tradições do seu povo, colocando sempre o
bem da pessoa humana acima de qualquer norma. Por isso, muito cedo, o seu
ministério passou a ser monitorado pelas autoridades religiosas de Jerusalém
que, informadas pelos fariseus da Galileia, enviavam comitivas para fiscalizar
e conferir o seu comportamento, considerado herético, pois estava fora dos
padrões estabelecidos pela religião e a cultura da época (Mc 3,22). O episódio
mostrado no evangelho de hoje constitui a segunda vez que uma comitiva sai de
Jerusalém para fiscalizá-lo, de acordo com o relato de Marcos (Mc 3,22; 7,1). Na
primeira vez, a acusação era de que Jesus expulsava demônios em nome de Belzebu.
Dessa vez, os alvos da denúncia são os discípulos, acusados de não observar as
leis de pureza relativas à alimentação, e não Jesus mesmo.
Isso mostra
que o texto reflete mais a época da redação do Evangelho (anos 60–70 d.C.) do
que propriamente o tempo de Jesus. Porém, é impossível separar a prática dos
discípulos da prática do mestre. Portanto, é inegável que o próprio Jesus
recebeu críticas e acusações por causa dessa prática, e a vida dos discípulos
das primeiras gerações era verdadeira extensão da sua. Além do mais, tanto para
a cultura semítica quanto para a greco-romana, qualquer anormalidade no
comportamento de um discípulo devia-se a má influência do seu mestre. Logo, era
o mestre quem devia assumir a responsabilidade pelas faltas dos seus
discípulos. A acusação relatada pelos fariseus e mestres da Lei, dessa vez, é
que os discípulos de Jesus comiam sem antes lavar as mãos. Ora, na época, o
costume de lavar as mãos antes das refeições não constituía uma regra básica de
higiene, como é hoje, mas um preceito religioso: deixar de lavar as mãos
tornava a pessoa impura e, por isso, ela ficava distante de Deus. A não
observância desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, era
uma denúncia a essa mentalidade religiosa fundamentalista e excludente, que
reduzia a relação com Deus a práticas ritualistas e exteriores. Era uma regra
de higiene, por exemplo, o lavamento dos pés, a mais humilhante função do
escravo, e isso Jesus recomendou que seus discípulos fizessem uns aos
outros como sinal de serviço (Jo 13,1ss).
Escrevendo seu evangelho fora da
Palestina, provavelmente em Roma, e para uma comunidade que já não conhecia tão
bem as tradições judaicas de pureza alimentar, o evangelista, para informar
melhor os seus leitores, oferece uma nota explicativa: «Com efeito, os
fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a
tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar
banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira
certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre» (vv. 3-4). Conforme
a maioria dos estudiosos, essa explicação do evangelista é um dos principais
elementos que atestam a redação do Evangelho de Marcos fora da Palestina –
provavelmente foi escrito em Roma – e a predominância de cristãs de origem não
judaica como destinatários principais, ou seja, pessoas que não conheciam
certos costumes judaicos. Por isso, o evangelista explica certas coisas, como
neste episódio. Com isso, o evangelista visa advertir seus leitores a não
reproduzirem na comunidade cristã as atitudes que Jesus reprovou na religião
judaica de seu tempo.
Como já afirmamos anteriormente,
as motivações de tal comportamento imposto pela religião não eram higiênicas,
mas religiosas. O motivo de ter de tomar banho ao voltar da praça, por exemplo,
era que o contato com outras pessoas que não praticassem a mesma religião
tornava o judeu impuro e, consequentemente, longe de Deus. A praça (em
grego: ἀγορά – agorá), palavra que poderia ser traduzida também por
mercado, era o espaço de circulação de pessoas, comercialização de produtos e
propagação de variadas doutrinas filosóficas e religiosas. Lá, se encontravam
pessoas de diversas culturas. Por isso, para os judeus mais fundamentalistas, a
praça era um lugar perigoso, pois imaginavam que o simples contato com uma
pessoa de outra cultura já tornava o judeu impuro; por isso, ao retornar para
casa, era necessário purificar-se o quanto antes, com o ritual do lavar-se
(ablução). Além disso, havia prescrições determinando até mesmo a maneira de
lavar os objetos domésticos (v. 4). Enfim, era um sistema religioso totalmente
baseado no cumprimento de regras, sem qualquer exigência ética. E o cumprimento
minucioso das regras tornava as pessoas autossuficientes, imaginando ter mérito
diante de Deus.
No mundo
antigo, tanto na cultura greco-romana quanto na semita, os mestres tinham a
responsabilidade de responder pelo comportamento dos seus discípulos. Por isso,
quando se via em algum discípulo um comportamento irregular, fora dos padrões
estabelecidos, era ao mestre que se tomava satisfação. E os evangelhos mostram
várias situações em que Jesus é chamado a dar explicações por causa do comportamento
dos seus discípulos, considerado indisciplinado. Inclusive, escritos extra-bíblicos do final do primeiro século e início do segundo, sobretudo de
autores a serviço do império romano, continuavam “culpando” um certo “Cristo”
pelo comportamento subversivo dos cristãos, mesmo já se tendo passado várias
décadas da sua morte. Isso reforça o quanto era forte a ideia da
responsabilidade de um mestre em relação ao comportamento dos seus discípulos.
É nessa perspectiva, portanto, que os vigilantes da religião pedem explicações
a Jesus: «Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Porque
os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar
as mãos?”» (v. 5).
Mais do que um
simples questionamento, a pergunta dos fariseus e mestres da Lei contém uma
grave acusação contra Jesus: seus discípulos não seguem as tradições dos pais! Essas
tradições eram consideradas sagradas em Israel. Deixar de segui-las era considerado
pecado grave, além de ameaça à manutenção da ordem estabelecida. Por isso, tanta
vez Jesus e seus discípulos foram tratados como subversivos, rebeldes. Ora,
além dos numerosíssimos mandamentos da Torá enquanto Lei escrita,
principalmente as leis do livro do Levítico, os judeus mais fiéis, como os
fariseus, seguiam também as leis da “tradição oral”; a essa tradição, eles
atribuíam o mesmo valor da Lei escrita, a Torá, pois também consideravam
proveniente de Deus e transmitida a Moisés, o qual a repetiu para Josué e
depois aos sucessivos chefes religiosos. Por isso, os fariseus e mestres da Lei
consideravam que deixar de cumprir um só daqueles preceitos era ofender a Deus
e desonrar os antepassados. Muitas vezes, nos evangelhos, quando Jesus e seus
discípulos são acusados de transgredir um preceito não se trata propriamente de
mandamento escrito na Torá, mas de uma dessas “tradições dos antigos”. Contudo,
é importante recordar que Jesus tinha autoridade, enquanto cumprimento da Lei, também
sobre os mandamentos escritos.
À pergunta acusatória dos
fariseus e mestres da lei, o evangelista diz que «Jesus respondeu: “Bem
profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo
me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o
culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. Vós
abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”» (v.
6-7). Como se vê, a resposta de Jesus se fundamenta na herança mais autêntica
da religião de Israel: a profecia! Ele cita explicitamente Isaías 29,13,
denunciando a falsidade da religiosidade dos fariseus e mestres da Lei e, ao
mesmo tempo, provocando-os a buscar uma religião autêntica, vivida a partir de
dentro, ou seja, do coração. Mesmo que tenha sido cultivada e transmitida
durante muitos séculos, a tradição que separa, segrega e condena, não passa de
preceito humano, logo, não pode ser de origem divina. Jesus diz claramente que
seu Deus, que é Pai, jamais imporia tradições e costumes que não tenham o bem
do ser humano como fundamento e finalidade.
Lábios e coração estão entre os
membros do corpo considerados mais importantes, conforme os conhecimentos de
anatomia da época. Aplicados ao contexto religioso, sobretudo no mundo judaico,
se tornavam ainda mais relevantes, pois constituem os elementos de conexão
entre o interior e o exterior: o que se vive no coração deve ser externado com
os lábios. Apontam para a harmonia entre o crer e o confessar. Quando não há
harmonia entre os dois, o ser humano entra em contradição, como denuncia Jesus em
seus interlocutores, retomando a atualizando a denúncia de Isaías, certa de
oito séculos antes. Ao chamar os fariseus e mestres da Lei de hipócritas (em
grego: ὑποκριτής – hipocritês), termo grego que,
literalmente, significa ator de teatro ou intérprete, Jesus denuncia que toda
aquela religiosidade não passava de encenação, era um mero espetáculo, como é
toda religião que, independente da época histórica, prioriza o rito e o
preceito ao invés do amor, da justiça e da misericórdia. Jesus atualizou a denúncia
profética de Isaías e o evangelista Marcos convida os seus leitores de todos os
tempos a fazer o mesmo, inclusive a ler as Escrituras somente tendo Jesus e seu
Evangelho como chaves interpretativas.
Tendo
desmascarado já os fariseus e mestres da Lei, Jesus troca de interlocutores e
dirige-se à multidão. Ele conhecia o risco que era a mentalidade dos fariseus
para a multidão e até para os seus discípulos. Por isso, à multidão, ele transmite
um ensinamento solene e importante: «Jesus chamou a multidão para perto
de si e disse: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o
que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”» (vv.
14-15). O emprego do verbo escutar no imperativo (em grego: akússate – ἀκούσατέ) indica a
importância do que está sendo ensinado. Quer dizer que se trata de algo
fundamental para a vida da comunidade. Com esse ensinamento, Jesus decreta a
inutilidade e ineficiência dos ritos judaicos de purificação e proclama que a
relação do ser humano com Deus não depende de fatores externos, mas
simplesmente do interior, ou seja, do coração. Não é a comida em si nem sua
procedência, tampouco o contato com pessoas de cultura e religião diferentes
que tornam uma pessoa mais próxima ou mais distante de Deus. Quando uma
religião impõe preceitos desse tipo, ela perde qualquer relação com Jesus e com
o seu Deus, o Pai.
Nos últimos versículos, os interlocutores de Jesus já são os discípulos e ensinamento acontece dentro da casa, embora a maneira como o texto litúrgico está estruturado não permita perceber, pois o versículo que faz a transição foi saltado (v. 17). Contudo, o fio temático continua sendo o mesmo, pois Jesus percebe que também seus discípulos tinham dificuldade de assimilar seu ensinamento, mesmo tendo sido eles a causa do questionamento dos fariseus e mestre da Lei. O mal não
entra no ser humano a partir de fora, por contato com pessoas, coisas, lugares
e alimentos, mas nasce a partir de dentro, quando o amor não é cultivado no
coração, como Jesus mesmo afirma, na sequência: «Pois é de dentro do
coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja,
calúnia, orgulho, falta de juízo» (vv. 21-22). Aqui,
ele oferece uma grande lista de situações e ações incompatíveis com o seu
programa. Quem permite que tais coisas saiam do coração, mesmo que observe
minuciosamente todos os preceitos da Lei – oral e escrita –, não está em
comunhão com Deus. Esses treze elementos citados constituem o que pode
realmente tornar o ser humano impuro, ou seja, longe de Deus, e são típicos de
quem se fecha ao amor e à justiça; não são ocasionados por situações
exteriores, mas depende somente do coração da própria pessoa. Por “falta de
juízo”, o último dos males elencados, entende-se o egoísmo desenfreado que faz
a pessoa pensar somente em si, portanto, não é alusão a qualquer doença mental.
No último
versículo, referindo-se à lista de elementos danosos anteriormente citados, ele
conclui: «Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam
impuro o homem» (v. 23). Como se vê, ele ressalta mais uma vez que é o
coração humano que pode tornar a pessoa impura, pois é do coração que saem as
maldades. Com isso, ele deixa claro que o critério para o ser humano viver em
harmonia com Deus não é a observância de leis de separação entre puro e impuro,
mas o cultivo de bons sentimentos no coração e a prática de boas ações em favor
do próximo. De fato, a boa religião para Jesus é aquela que ajuda o ser humano
a promover o bem e a ser, a cada dia, uma pessoa melhor. Na perspectiva de
Jesus, conforme o relato de Marcos, a religião só tem sentido se ela for um
fator de humanização. Reduzida a um conjunto de tradições, ela é apenas um
elemento, talvez o mais perverso, a serviço do sistema dominante. O ser humano
é impuro quando não permite que de seu coração saiam coisas boas. Nenhum rito
ou norma é capaz de determinar a relação com Deus, nem de determinar a bondade
do ser humano, mas somente a disposição interior de fazer o bem. E, é claro, o
contato com o Evangelho de Jesus ajuda na criação das disposições interiores à
prática do bem.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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