sábado, agosto 31, 2024

REFLEXÃO PARA O 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 7,1-8.14-15.21-23 (ANO B)


A liturgia deste domingo – o vigésimo segundo do tempo comum – retoma a leitura do Evangelho de Marcos, após uma interrupção de cinco domingos seguidos, quando foram lidos trechos do capítulo sexto do Evangelho de João e um trecho de Lucas, na solenidade da Assunção. O texto proposto para hoje é Mc 7,1-8.14-15.21-23. Como se vê, o texto está bastante fragmentado, devido aos recortes. Seria mais interessante a leitura completa (vv. 1-23); contudo, devemos nos contentar com o que a liturgia oferece. O trecho selecionado mostra mais uma controvérsia de Jesus com os fariseus e mestres da lei. Os devotos praticantes da religião oficial, fiéis guardiões da moral e dos bons costumes da época, observam que o comportamento de Jesus e seus discípulos não condiz com as tradições ensinadas e transmitidas pelos antepassados, por isso lhe fazem alguns questionamentos e acusações. Ao respondê-los, Jesus os desmascara, apontando e denunciando a hipocrisia deles. A controvérsia presente no texto de hoje diz respeito às leis de pureza relacionadas às práticas alimentares, uma das principais causas dos conflitos entre o judaísmo oficial e as primeiras comunidades cristãs. O evangelista situa a cena logo após o relato de uma intensa atividade messiânica de Jesus (Mc 6,53-56), marcada por muitas curas e um contato muito próximo com pessoas de diversos lugares. Na ocasião, ele tanto tocava quando deixava ser tocado pelas pessoas, sobretudo as enfermas. O toque era traço marcante do agir libertador de Jesus. Tocando nas pessoas e permitindo ser tocado por elas, ele libertava e humanizava.

O texto começa com a seguinte afirmação: «Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado» (vv. 1-2). Já fazia algum tempo que Jesus era considerado uma pessoa perigosa para a religião e o sistema dominante como um todo, devido à sua maneira autônoma e livre de interpretar os costumes e tradições do seu povo, colocando sempre o bem da pessoa humana acima de qualquer norma. Por isso, muito cedo, o seu ministério passou a ser monitorado pelas autoridades religiosas de Jerusalém que, informadas pelos fariseus da Galileia, enviavam comitivas para fiscalizar e conferir o seu comportamento, considerado herético, pois estava fora dos padrões estabelecidos pela religião e a cultura da época (Mc 3,22). O episódio mostrado no evangelho de hoje constitui a segunda vez que uma comitiva sai de Jerusalém para fiscalizá-lo, de acordo com o relato de Marcos (Mc 3,22; 7,1). Na primeira vez, a acusação era de que Jesus expulsava demônios em nome de Belzebu. Dessa vez, os alvos da denúncia são os discípulos, acusados de não observar as leis de pureza relativas à alimentação, e não Jesus mesmo.

Isso mostra que o texto reflete mais a época da redação do Evangelho (anos 60–70 d.C.) do que propriamente o tempo de Jesus. Porém, é impossível separar a prática dos discípulos da prática do mestre. Portanto, é inegável que o próprio Jesus recebeu críticas e acusações por causa dessa prática, e a vida dos discípulos das primeiras gerações era verdadeira extensão da sua. Além do mais, tanto para a cultura semítica quanto para a greco-romana, qualquer anormalidade no comportamento de um discípulo devia-se a má influência do seu mestre. Logo, era o mestre quem devia assumir a responsabilidade pelas faltas dos seus discípulos. A acusação relatada pelos fariseus e mestres da Lei, dessa vez, é que os discípulos de Jesus comiam sem antes lavar as mãos. Ora, na época, o costume de lavar as mãos antes das refeições não constituía uma regra básica de higiene, como é hoje, mas um preceito religioso: deixar de lavar as mãos tornava a pessoa impura e, por isso, ela ficava distante de Deus. A não observância desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, era uma denúncia a essa mentalidade religiosa fundamentalista e excludente, que reduzia a relação com Deus a práticas ritualistas e exteriores. Era uma regra de higiene, por exemplo, o lavamento dos pés, a mais humilhante função do escravo, e isso Jesus recomendou que seus discípulos fizessem uns aos outros como sinal de serviço (Jo 13,1ss).

Escrevendo seu evangelho fora da Palestina, provavelmente em Roma, e para uma comunidade que já não conhecia tão bem as tradições judaicas de pureza alimentar, o evangelista, para informar melhor os seus leitores, oferece uma nota explicativa: «Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre» (vv. 3-4). Conforme a maioria dos estudiosos, essa explicação do evangelista é um dos principais elementos que atestam a redação do Evangelho de Marcos fora da Palestina – provavelmente foi escrito em Roma – e a predominância de cristãs de origem não judaica como destinatários principais, ou seja, pessoas que não conheciam certos costumes judaicos. Por isso, o evangelista explica certas coisas, como neste episódio. Com isso, o evangelista visa advertir seus leitores a não reproduzirem na comunidade cristã as atitudes que Jesus reprovou na religião judaica de seu tempo.

Como já afirmamos anteriormente, as motivações de tal comportamento imposto pela religião não eram higiênicas, mas religiosas. O motivo de ter de tomar banho ao voltar da praça, por exemplo, era que o contato com outras pessoas que não praticassem a mesma religião tornava o judeu impuro e, consequentemente, longe de Deus. A praça (em grego: ἀγορά – agorá), palavra que poderia ser traduzida também por mercado, era o espaço de circulação de pessoas, comercialização de produtos e propagação de variadas doutrinas filosóficas e religiosas. Lá, se encontravam pessoas de diversas culturas. Por isso, para os judeus mais fundamentalistas, a praça era um lugar perigoso, pois imaginavam que o simples contato com uma pessoa de outra cultura já tornava o judeu impuro; por isso, ao retornar para casa, era necessário purificar-se o quanto antes, com o ritual do lavar-se (ablução). Além disso, havia prescrições determinando até mesmo a maneira de lavar os objetos domésticos (v. 4). Enfim, era um sistema religioso totalmente baseado no cumprimento de regras, sem qualquer exigência ética. E o cumprimento minucioso das regras tornava as pessoas autossuficientes, imaginando ter mérito diante de Deus.

No mundo antigo, tanto na cultura greco-romana quanto na semita, os mestres tinham a responsabilidade de responder pelo comportamento dos seus discípulos. Por isso, quando se via em algum discípulo um comportamento irregular, fora dos padrões estabelecidos, era ao mestre que se tomava satisfação. E os evangelhos mostram várias situações em que Jesus é chamado a dar explicações por causa do comportamento dos seus discípulos, considerado indisciplinado. Inclusive, escritos extra-bíblicos do final do primeiro século e início do segundo, sobretudo de autores a serviço do império romano, continuavam “culpando” um certo “Cristo” pelo comportamento subversivo dos cristãos, mesmo já se tendo passado várias décadas da sua morte. Isso reforça o quanto era forte a ideia da responsabilidade de um mestre em relação ao comportamento dos seus discípulos. É nessa perspectiva, portanto, que os vigilantes da religião pedem explicações a Jesus: «Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Porque os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?”» (v. 5).

Mais do que um simples questionamento, a pergunta dos fariseus e mestres da Lei contém uma grave acusação contra Jesus: seus discípulos não seguem as tradições dos pais! Essas tradições eram consideradas sagradas em Israel. Deixar de segui-las era considerado pecado grave, além de ameaça à manutenção da ordem estabelecida. Por isso, tanta vez Jesus e seus discípulos foram tratados como subversivos, rebeldes. Ora, além dos numerosíssimos mandamentos da Torá enquanto Lei escrita, principalmente as leis do livro do Levítico, os judeus mais fiéis, como os fariseus, seguiam também as leis da “tradição oral”; a essa tradição, eles atribuíam o mesmo valor da Lei escrita, a Torá, pois também consideravam proveniente de Deus e transmitida a Moisés, o qual a repetiu para Josué e depois aos sucessivos chefes religiosos. Por isso, os fariseus e mestres da Lei consideravam que deixar de cumprir um só daqueles preceitos era ofender a Deus e desonrar os antepassados. Muitas vezes, nos evangelhos, quando Jesus e seus discípulos são acusados de transgredir um preceito não se trata propriamente de mandamento escrito na Torá, mas de uma dessas “tradições dos antigos”. Contudo, é importante recordar que Jesus tinha autoridade, enquanto cumprimento da Lei, também sobre os mandamentos escritos.

À pergunta acusatória dos fariseus e mestres da lei, o evangelista diz que «Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”» (v. 6-7). Como se vê, a resposta de Jesus se fundamenta na herança mais autêntica da religião de Israel: a profecia! Ele cita explicitamente Isaías 29,13, denunciando a falsidade da religiosidade dos fariseus e mestres da Lei e, ao mesmo tempo, provocando-os a buscar uma religião autêntica, vivida a partir de dentro, ou seja, do coração. Mesmo que tenha sido cultivada e transmitida durante muitos séculos, a tradição que separa, segrega e condena, não passa de preceito humano, logo, não pode ser de origem divina. Jesus diz claramente que seu Deus, que é Pai, jamais imporia tradições e costumes que não tenham o bem do ser humano como fundamento e finalidade.

Lábios e coração estão entre os membros do corpo considerados mais importantes, conforme os conhecimentos de anatomia da época. Aplicados ao contexto religioso, sobretudo no mundo judaico, se tornavam ainda mais relevantes, pois constituem os elementos de conexão entre o interior e o exterior: o que se vive no coração deve ser externado com os lábios. Apontam para a harmonia entre o crer e o confessar. Quando não há harmonia entre os dois, o ser humano entra em contradição, como denuncia Jesus em seus interlocutores, retomando a atualizando a denúncia de Isaías, certa de oito séculos antes. Ao chamar os fariseus e mestres da Lei de hipócritas (em grego: ὑποκριτής – hipocritês), termo grego que, literalmente, significa ator de teatro ou intérprete, Jesus denuncia que toda aquela religiosidade não passava de encenação, era um mero espetáculo, como é toda religião que, independente da época histórica, prioriza o rito e o preceito ao invés do amor, da justiça e da misericórdia. Jesus atualizou a denúncia profética de Isaías e o evangelista Marcos convida os seus leitores de todos os tempos a fazer o mesmo, inclusive a ler as Escrituras somente tendo Jesus e seu Evangelho como chaves interpretativas.

Tendo desmascarado já os fariseus e mestres da Lei, Jesus troca de interlocutores e dirige-se à multidão. Ele conhecia o risco que era a mentalidade dos fariseus para a multidão e até para os seus discípulos. Por isso, à multidão, ele transmite um ensinamento solene e importante: «Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”» (vv. 14-15). O emprego do verbo escutar no imperativo (em grego: akússateἀκούσατέ) indica a importância do que está sendo ensinado. Quer dizer que se trata de algo fundamental para a vida da comunidade. Com esse ensinamento, Jesus decreta a inutilidade e ineficiência dos ritos judaicos de purificação e proclama que a relação do ser humano com Deus não depende de fatores externos, mas simplesmente do interior, ou seja, do coração. Não é a comida em si nem sua procedência, tampouco o contato com pessoas de cultura e religião diferentes que tornam uma pessoa mais próxima ou mais distante de Deus. Quando uma religião impõe preceitos desse tipo, ela perde qualquer relação com Jesus e com o seu Deus, o Pai.

Nos últimos versículos, os interlocutores de Jesus já são os discípulos e ensinamento acontece dentro da casa, embora a maneira como o texto litúrgico está estruturado não permita perceber, pois o versículo que faz a transição foi saltado (v. 17). Contudo, o fio temático continua sendo o mesmo, pois Jesus percebe que também seus discípulos tinham dificuldade de assimilar seu ensinamento, mesmo tendo sido eles a causa do questionamento dos fariseus e mestre da Lei. O mal não entra no ser humano a partir de fora, por contato com pessoas, coisas, lugares e alimentos, mas nasce a partir de dentro, quando o amor não é cultivado no coração, como Jesus mesmo afirma, na sequência: «Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo» (vv. 21-22)Aqui, ele oferece uma grande lista de situações e ações incompatíveis com o seu programa. Quem permite que tais coisas saiam do coração, mesmo que observe minuciosamente todos os preceitos da Lei – oral e escrita –, não está em comunhão com Deus. Esses treze elementos citados constituem o que pode realmente tornar o ser humano impuro, ou seja, longe de Deus, e são típicos de quem se fecha ao amor e à justiça; não são ocasionados por situações exteriores, mas depende somente do coração da própria pessoa. Por “falta de juízo”, o último dos males elencados, entende-se o egoísmo desenfreado que faz a pessoa pensar somente em si, portanto, não é alusão a qualquer doença mental.

No último versículo, referindo-se à lista de elementos danosos anteriormente citados, ele conclui: «Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem» (v. 23). Como se vê, ele ressalta mais uma vez que é o coração humano que pode tornar a pessoa impura, pois é do coração que saem as maldades. Com isso, ele deixa claro que o critério para o ser humano viver em harmonia com Deus não é a observância de leis de separação entre puro e impuro, mas o cultivo de bons sentimentos no coração e a prática de boas ações em favor do próximo. De fato, a boa religião para Jesus é aquela que ajuda o ser humano a promover o bem e a ser, a cada dia, uma pessoa melhor. Na perspectiva de Jesus, conforme o relato de Marcos, a religião só tem sentido se ela for um fator de humanização. Reduzida a um conjunto de tradições, ela é apenas um elemento, talvez o mais perverso, a serviço do sistema dominante. O ser humano é impuro quando não permite que de seu coração saiam coisas boas. Nenhum rito ou norma é capaz de determinar a relação com Deus, nem de determinar a bondade do ser humano, mas somente a disposição interior de fazer o bem. E, é claro, o contato com o Evangelho de Jesus ajuda na criação das disposições interiores à prática do bem.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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