A liturgia do décimo nono domingo do tempo comum continua
a leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, iniciada há dois domingos. O
trecho lido hoje é Jo 6,41-51. Apesar de saltar alguns versículos, é clara a
continuidade entre o texto de hoje e aquele do domingo passado (Jo 6,24-35). É
a sequência do discurso de autoapresentação de Jesus como pão vido descido do
céu e alimento para a vida eterna, proferido na sinagoga de Cafarnaum. Esse
discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado
na outra margem do mar – ou do lago –, e maravilhada por causa do sinal
cumprido, quis logo proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de
suas ações prodigiosas (Jo 6,1-15). Diante disso, Jesus refugiou-se (Jo
6,15b-21), ao perceber a interpretação equivocada e as pretensões
interesseiras, mas a multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com
fartura (Jo 6,22-25). Conhecendo as intenções da multidão, Jesus aproveitou a
oportunidade para apresentar uma ampla catequese, chamando a atenção para a
importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão
vivo descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo. Por tratar-se de
uma realidade difícil de ser assimilada, o evangelista organizou essa catequese
em forma de um longo discurso de revelação, e a liturgia do “ciclo B” o
distribuiu na sequência de domingos que estamos celebrando. O contexto,
brevemente recordado acima, é o mesmo dos últimos domingos, o que torna
desnecessário recordá-lo de modo mais pormenorizado.
A autoapresentação de Jesus como pão descido do céu e
alimento para a vida eterna foi duramente criticada e questionada pelos seus
ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para eles, a única referência de
pão descido céu era o maná do deserto, mas aquele era um alimento perecível,
tanto é que os antepassados que dele se alimentaram, morreram todos. Portanto,
a afirmação de Jesus soava como pretensiosa e uma verdadeira afronta aos
parâmetros da religião judaica. Por isso, o protesto questionador: «Os
judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o
pão que desceu do céu» (v. 41). Geralmente, quando o evangelista João
menciona “os judeus”, não se refere ao povo judeu propriamente, mas às
autoridades religiosas, que eram bastante hostis aos ensinamentos e à pessoa de
Jesus. Contudo, neste caso, quase excepcionalmente, a expressão “os judeus”
designa o povo mesmo, a multidão que estava ao redor de Jesus, que tinha se
alimentado fartamente com o pão multiplicado, mas era manipulada
ideologicamente pelas classes dirigentes de Israel. Ora, Jesus com sua mensagem
libertadora era visto como uma verdadeira ameaça para aquela religião, pois ele
abria caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da
sua pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos. Por isso, era
frequente o murmúrio diante da sua mensagem, tanto da parte das lideranças
quanto do povo por elas manipulado, como neste caso. A proposta humanizadora de
Jesus soava altamente desestabilizadora para a religião e todo o sistema
vigente.
Na linguagem bíblica, o verbo murmurar (em grego: γογγύζω – gonghýzo) não significa uma simples crítica ou
discordância. Trata-se de um lamento que afronta, negando a autoridade. Por
isso, é um pecado, pois nega a graça e o poder de Deus. É a atitude de um povo
rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por Deus, como acontecera
no deserto: «Murmuraram contra Moisés e contra Aarão todos os filhos de
Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos morrido na terra do
Egito! Estamos morrendo neste deserto!» (Nm 14,2). Portanto, o murmúrio do
povo contra Jesus é a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo
êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.
Ao se autoapresentar como pão descido do céu, Jesus quis mostrar o fim da
distância entre o humano e o divino; decretou a proximidade de Deus com a
humanidade, mas foi rejeitado pelo povo que estava manipulado por uma religião
que imaginava ter o monopólio de Deus. Por isso, o discurso se prolonga
bastante, pois Jesus insiste na emancipação do povo, mesmo que não alcance o
objetivo, pois o murmúrio indica o fechamento de perspectiva e mentalidade, o
que impede a necessária conversão.
Para desqualificar Jesus e negar a sua condição de
enviado de Deus, seus contestadores alegam a sua origem humana e simples: «Eles
comentavam: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua
mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?”» (v. 42). Vale lembrar que o
fato de seus interlocutores conhecerem seus familiares por nome é mais uma
demonstração de que, neste caso, os judeus são mesmo o povo simples da
Galileia, e não as autoridades de Jerusalém. Como a religião oficial tinha caricaturado
Deus como um soberano distante da terra, inacessível ao ser humano, as
afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela mentalidade, era
impossível que um Deus tão grande pudesse ser manifestar na pessoa de um
simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos, Jesus
não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus difundida
por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se
manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado
como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, os judeus do seu tempo
estariam desconstruindo um discurso sustentado há séculos e colocando em risco
os privilégios dos poderosos. Ao associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus
afirmavam que ele não poderia ter descido do céu, pois possuía origem comum a
todos os homens.
Jesus não entra diretamente na discussão, pois não sente
necessidade de reafirmar a sua origem divina para aquele povo duro de coração.
Apenas interrompe o comentário, repreendendo às murmurações: «Jesus
respondeu: “Não murmureis entre vós”» (v. 43). Jesus não quer a perpetuação
dos erros de Israel que, historicamente, tem interpretado mal a presença de
Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes. Ele combate o murmúrio porque
deseja que Deus, o seu Pai, quer que todos o reconheçam e o aceitem como ele
realmente é: um Pai doador de vida, por amor. E tudo o que um pai realmente
necessita é de filhos sintam-se amados e se amem reciprocamente. Por isso, com
muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso deixar-se
atrair pelo Pai para chegar até ele e sentir-se filhos e filhas: «Ninguém
pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no
último dia» (v. 44). Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua
confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai quem o
enviou, é também o Pai quem atrairá cada pessoa ele. Na história da salvação, a
iniciativa é sempre de Deus, o Pai. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a
Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Ao
reconhecer o Pai como agente de atração, Jesus dispensa qualquer forma de
proselitismo e fundamentalismo no seu seguimento. A atração do Pai se dá por
uma espécie de contágio, cujo elemento determinante é o amor. Quem faz a
experiência de encontro com um Deus que é essencialmente amor, sente-se atraído
por ele. E muitas vezes o que desperta para esse encontro é a maneira de viver
das pessoas que já se encontraram com ele. Por isso, na relação com Jesus,
sobretudo na perspectiva do evangelista João, o testemunho é tão indispensável.
Por isso, o proselitismo é, além de desnecessário, também nocivo.
Em Jesus, toda a humanidade tem a oportunidade de unir-se
a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do Pai (v. 45). Ora, escuta o
Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna, o seu filho Jesus, cujo
convite já ressoava desde os tempos dos profetas (Hb 1,1ss). O Evangelho de
Jesus é, portanto, a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a
humanidade. Por Evangelho, aqui, compreende-se a vida e a mensagem de Jesus.
Assim como Jesus é o Reino em pessoa, ele é também o Evangelho em pessoa, pois
é melhor de todas as boas notícias que o Pai já comunicou ao mundo. Por isso,
ainda como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua
condição de único mediador entre o Pai e a humanidade: «Só aquele que vem de
junto de Deus viu o Pai» (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto
amoroso do Pai quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto
a religião oficial comercializava um personagem distante, violento e vingativo,
caricaturado de Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo
claro a identidade do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas
uma adesão de fé, pois é ele mesmo quem se oferece à humanidade.
E Jesus continua sua catequese como resposta às
incompreensões e murmúrio da multidão que lhe cercava, expondo agora o
resultado direto para quem, atraído pelo Pai, lhe der adesão pela fé: «Em
verdade, em verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna» (v. 47). O
verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) é
um dos mais relevantes para a comunidade do evangelista João, sendo utilizado
noventa e oito vezes no seu Evangelho, enquanto Marcos o emprega doze vezes,
Mateus trezes vezes e Lucas apenas nove vezes. Significa dar plena adesão a
Jesus, deixando-se conduzir pelo seu Evangelho, aceitando-o como único programa
de vida. Como consequência, quem faz essa adesão se torna possuidor da vida
eterna, a qual não é uma vida para o além, como prêmio para quem praticou boas
obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de
acordo com o Evangelho. O evangelista faz questão de empregar o verbo possuir
no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a vida eterna
(em grego: ζωὴν αἰώνιον – zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de Jesus,
a qual nem a morte foi capaz de destruí-la. A eternidade dessa vida não
significa a duração, mas a qualidade: é a vida em abundância, que já começa
neste mundo; é uma vida tão autêntica, tão cheia de sentido, que nem a morte
destrui-la-á.
Mais uma vez se apresentando como pão da vida e alimento
perene (v. 48), Jesus põe em questão o maná comido pelos antepassados no
deserto, mostrando a ineficácia daquele alimento: «Os vossos pais comeram o
maná no deserto e, no entanto, morreram» (v. 49). Aqui, Jesus dá mais um
sinal de ruptura com aquela tradição ao falar de “vossos pais” ao invés de
“nossos pais”, pois ele também era judeu de origem. Ele quer se distanciar de
uma tradição ultrapassada, fechada em seus próprios conceitos e incapaz de
abrir-se ao novo. O apego aos “pais” encobria o rosto paterno de Deus. Essa
tradição impedia o povo de viver uma relação filial com Deus. Eles colocavam
personagens do passado no lugar do Pai, colocando Deus num trono imaginário
inacessível. Jesus quer que todos tenham Deus como único Pai; para isso, é
preciso sentir-se filhos e filhas dele. Seus interlocutores, pelo contrário,
sentiam-se clientes de Deus, no máximo servos, devido à manipulação da
religião. Na referência ao maná está implícita a referência à Lei. Assim como o
maná não evitou a morte dos antepassados, também a observância da Lei não
garante a vida em abundância. Mesmo assim, os judeus continuavam “devotos” do
maná, considerando-o como o único alimento descido do céu. Jesus se contrapõe a
essa mentalidade: está sendo dada a oportunidade de provarem um alimento
verdadeiramente descido do céu, que é ele mesmo, como disse: «Eis aqui o pão
que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá» (v. 50).
Apresentando-se como pão, Jesus garante a sua eficácia
como alimento e deixa ainda mais clara a oferta total de si para a vida do
mundo: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá
eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo»
(v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um povo específico e privilegiado
que, mesmo assim, murmurava constantemente. A oferta de Jesus é universal, não
é mais para a vida de um povo, mas para a vida do mundo. Toda a humanidade é
destinatária: é uma oferta universal e plena, porque é a inteireza do seu ser,
é carne e espírito, é sua vida e mensagem dadas plenamente. Aceitar essa oferta
é condição para viver eternamente. O evangelista usa a palavra carne (em grego:
σάρξ – sarx), um hebraísmo que exprime a
totalidade da pessoa, ao invés de corpo, que poderia ser facilmente
interpretado a partir da dicotomia grega corpo-espírito. É, portanto, pelo dom
da carne de Jesus que é dada vida ao mundo. Logo, é também na condição carnal
que o ser humano é chamado a acolher a salvação, quer dizer, na concretude da
existência terrena, mesmo marcada por contradições. Do pão enquanto palavra,
passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma perspetiva
ainda mais eucarística, mas não no sentido ritual, ainda, mas enquanto vida que
se doa. A expressão «carne dada para a vida do mundo» indica, acima de
tudo, a entrega de Jesus na cruz, consequência de seu amor infinito e sua
fidelidade ao Pai. Se foi na carne que ele veio ao mundo, enquanto Palavra
eterna, é também na carne que ele dá vida ao mundo.
Acolher Jesus como pão descido do céu é aceitá-lo como
único mediador e revelador do Pai. Recebê-lo como alimento perene é aceitar o
Evangelho como único programa de vida. A insuficiência e ineficácia do maná
está ficando cada vez mais clara no discurso de Jesus, assim como o pão
partilhado para a multidão no outro lado do mar. Com isso, se torna cada vez
mais claro que o único alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida
eterna é o próprio Jesus na inteireza do seu ser. Comê-lo é assimilar o Evangelho
com todas as consequências que dele emanam.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
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