Neste décimo quinto domingo do
tempo comum, a liturgia continua a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas,
como é característico do ano litúrgico C. O texto proposto para este dia – Lc
10,25-37 – está localizado ainda no início da longa seção do caminho de Jesus
para Jerusalém, e compreende uma das passagens mais bonitas, profundas e
conhecidas de todo o Novo Testamento. Trata-se da famosa parábola do “bom
samaritano” ou do “samaritano compassivo”, com o diálogo introdutório entre um
mestre da Lei e Jesus. Como se sabe, o caminho no Evangelho de Lucas possui uma
importância ímpar, em comparação aos outros evangelhos. Não é apenas um
percurso físico e geográfico, mas é, acima de tudo, um itinerário formativo, no
qual Jesus apresenta as exigências essenciais do seu discipulado e apresenta os
principais elementos do seu programa. Por sinal, o caminho é a seção narrativa
mais original de Lucas, é onde ele apresenta mais material exclusivo seu, ou
seja, passagens que não existem em outros evangelhos. E a parábola do bom
samaritano, lida hoje, é uma dessas. Por sinal, ela pode ser considerada uma
síntese de todo o Evangelho de Lucas. Juntamente com a parábola do “pai
misericordioso”, também chamada de parábola do “filho pródigo” (Lc 15,11-32), essa
do samaritano bom ou compassivo constituem a melhor justificativa para a
aplicação do título de “evangelho da misericórdia” ao evangelho lucana.
Esta
parábola é um daqueles episódios em que Jesus esbanja misericórdia, o que é
muito comum no Evangelho de Lucas. Ela está entre as mais conhecidas de todo
Novo Testamento. Na verdade, é a segunda mais lida e estudada, desde os
primeiros séculos, ficando atrás apenas daquela do filho pródigo, que ocupa o
primeiro lugar. Para compreendê-la bem é importante considerar o seu contexto
que, em parte, já foi apresentado anteriormente, e as circunstâncias que
levaram Jesus a contá-la. Ainda sobre o caminho, vale ressaltar a abertura de
Jesus: enquanto caminha, ele interage com as pessoas, escuta e responde às
inquietações dos diversos interlocutores que encontra. Por isso, o caminho de
Jesus constitui também um paradigma para a Igreja, na perspectiva de Lucas; é
antecipação da “Igreja em saída”, que será ainda mais ressaltada em Atos dos
Apóstolos, o segundo volume da sua obra. A parábola do bom samaritano surge
como resposta de Jesus ao questionamento de um mestre da Lei. Essa observação
também é importante, pois as parábolas de Jesus, em geral, mas sobretudo em
Lucas, não surgem do nada, e sim das situações concretas, a partir das
interpelações dos seus interlocutores. Nesse caso específico, a parábola
ilustra a resposta de Jesus a um mestre da Lei que, embora fosse um grande
conhecedor das Escrituras, lhe faltava a vivência do essencial, que é o amor ao
próximo, por meio do qual se demonstra adesão aos propósitos de Deus.
O texto
começa dizendo que «um mestre da Lei se levantou e, para tentar Jesus,
fez-lhe uma pergunta» (v 25a). De imediato, se percebe o quanto Jesus
era acessível. Enquanto caminhava, qualquer pessoa poderia dirigir-se a ele,
tanto pessoas bem-intencionadas quanto mal-intencionadas. O mestre da Lei era
um estudioso autorizado pela religião para interpretar as Sagradas Escrituras
do judaísmo, que compreende todo o Antigo Testamento, sendo que a Lei – a Torá (Pentateuco)
– é a parte principal. Lucas não esconde as intenções do mestre da Lei: tentar
Jesus, ou seja, colocá-lo à prova. Obviamente, o mestre da Lei não pretendia
tirar uma dúvida teórica com Jesus, mas procurar, em sua resposta, um motivo
para acusá-lo de desvio de doutrina, quer dizer, de herege. Por isso, Lucas
emprega aqui o mesmo verbo usado no episódio das tentações (em grego: ἐκπειράζω = ekpeirazô;
Lc 4,1-13), cujo significado é tentar; pôr alguém à prova. Esse indicativo é
importante porque já confere um caráter diabólico às intenções do mestre da
Lei, pois, tentar Jesus, pondo-o à prova é a atitude de satanás, conforme a
linguagem bíblica e lucana, principalmente. É a
postura de quem não aceita o Deus acolhedor e misericordioso que Jesus veio
mostrar ao mundo. Após apresentar a intenção e a
atitude do mestre da Lei, que era tentar Jesus, perguntando, temos, então, o
conteúdo da pergunta: «Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida
eterna?» (v. 25b). Se trata de uma pergunta muito profunda e bem
elaborada, própria de um bom conhecedor da Escritura, como, de fato ele era, ao
mesmo tempo em que apresenta uma lacuna: a preocupação excessiva com a vida
eterna, sem demonstrar interesse pela vida presente e concreta do cotidiano.
Como era
próprio da cultura dos rabinos responder a uma pergunta com outra pergunta,
Jesus também assim o faz, e responde perguntando exatamente o que a Lei dizia a
propósito da observação do interlocutor: «O que está escrito na Lei,
como lês?» (v. 26). E, como bom conhecedor, o mestre da Lei responde
prontamente com duas citações da Escritura (Dt 6,5; Lv 19,18): «Amarás
o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua
força e com toda a tua inteligência; e ao teu próximo como a ti mesmo!» (v.
27). Esta resposta é própria de quem examinava a Lei dia e noite, como era
próprio do seu ofício. De certo modo, esse mestre da Lei se destacava entre os
demais membros de sua categoria que também entrarão em contato com Jesus,
fazendo perguntas. Ele sabe o que é fundamental na Lei. No entanto, a
continuidade do diálogo revela a sua exterioridade e superficialidade.
Teoricamente, seu conhecimento era perfeito, tanto que o próprio Jesus
reconheceu: «Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás» (v.
28). Mas, sua tentativa de justificar-se demonstra o quanto era limitada sua
vivência religiosa, descomprometida; ele conhecia o ensinamento, mas parecia
não o praticar, como se percebe pela sua pergunta a Jesus: «Ele, porém,
querendo justificar-se, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?”» (v.
29). Ora, ao querer justificar-se, o mestre da Lei praticamente reconhece que
seu conhecimento era apenas teórico, pois nem sequer sabia quem era seu
próximo; na verdade, ele não sabia fazer-se próximo. Ele conhecia todas as
passagens da Escritura, era um intérprete oficial e, no entanto, não sabia quem
era seu próximo porque não se aproximava das pessoas com suas necessidades reais
e dramas existenciais. Vivia fechado em seu mundo.
Daí,
percebendo a malícia do mestre da Lei, e ao mesmo tempo, o vazio de sentido
naquela religião estéril em que ele vivia, Jesus aproveita a oportunidade para
apresentar um dos seus mais célebres ensinamentos, contando a parábola do bom samaritano,
como resposta. Aqui, ele revela toda a sua habilidade pedagógica. Das situações
concretas da vida, Jesus sabia tirar os seus ensinamentos mais profundos e
propô-los, desconstruindo as ideias ultrapassadas e excludentes que permeavam a
mentalidade da maioria de seus interlocutores, sobretudo os fariseus e mestres
da Lei, que não se apresentavam apenas como interlocutores, mas como ferrenhos
adversários. A parábola contada a esse mestre da Lei não visa apenas fazer-lhe
um esclarecimento teórico; quer provocar-lhe a todo um processo de revisão de
conceitos, inclusive, a uma nova leitura da história de Israel, uma vez que a
apresentação de um samaritano bom leva o interlocutor a revisar importantes
acontecimentos históricos, como veremos ao longo da explicação. Ao contar a parábola,
portanto, Jesus propõe um caminho de humanização, como, aliás, ele faz em todos
os seus ensinamentos. Porém, nesse o aspecto humanizador se torna mais
evidente, pois a misericórdia-compaixão é apresentada como fonte, o que faz
desta parábola uma miniatura de toda a sua mensagem.
Eis então
a parábola: «certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de
assaltantes» (v. 30a). Ora, embora a distância entre as duas cidades
não fosse tão grande, era aproximadamente 30 km, havia grandes obstáculos
naquele caminho. A começar pelo desnível entre as duas cidades. Enquanto
Jerusalém estava a mais de 700 metros acima do nível do mar, Jericó estava a
aproximadamente 300 metros abaixo do nível do mar. Além disso, tinha de
atravessar o deserto de Judá. Era uma estrada tão perigosa, que não se
recomendava percorrê-la sozinho, mas sempre em grupo, considerando tanto os
obstáculos da natureza quanto o perigo dos assaltantes. Logo, com esse primeiro
dado Jesus não apresenta nenhuma novidade, uma vez que eram comuns os assaltos
naquela estrada. Portanto, de início, a história contada parece não despertar
curiosidade alguma; é no desenvolvimento que as novidades aparecem. Na
descrição do assalto, Jesus acrescenta detalhes, enfatizando que os
assaltantes, além de espancar o homem, levaram tudo e o deixaram “quase morto”
(v. 30b). Claro que há, nisso tudo, uma clara intenção teológico-literária de
Lucas visando supervalorizar a atitude do samaritano e contrapô-la à
indiferença do sacerdote e do levita. Por isso, na continuidade, Ele diz: «Por
acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho» (v. 31a);
provavelmente, estava voltando de Jerusalém, após uma semana inteira de serviço
no templo, conforme a distribuição das classes sacerdotais durante o ano
litúrgico judaico. Portanto, estava em seu grau máximo de pureza. Por
isso, «quando viu o homem, seguiu adiante pelo outro lado» (v.
30b), exatamente porque o contato com um homem quase morto o tornaria impuro
também, conforme determinava a Lei. E a Lei estava acima da vida para a
religião judaica do tempo de Jesus. O sacerdote cumpre rigorosamente a Lei,
assim como o mestre interlocutor de Jesus tinha dificuldade em reconhecer quem
é o seu próximo porque vivia uma religiosidade meramente ritualista e vazia de
amor.
A mesma
indiferença do sacerdote é repetida por um levita, que era uma espécie de
“sacristão”, o auxiliar dos sacerdotes no serviço litúrgico do templo. Diz o
texto que ele «chegou ao lugar, viu o homem e seguiu pelo outro lado» (v.
32). Como bom “sacristão”, o levita não poderia ter outro exemplo a seguir
senão o do sacerdote, por isso, imita seus gestos, inclusive a indiferença
diante do sofrimento do outro. Como provavelmente também voltava do serviço
litúrgico, não queria contaminar-se com um quase morto, certamente
ensanguentado do espancamento. Temos assim, com a descrição das atitudes do
sacerdote e do levita, uma forte chamada de atenção de Jesus: a religião que
provoca distanciamento e preconceitos entre as pessoas é perigosa. Quando a
religião não ajuda a tornar as pessoas melhores, mais sensíveis aos sofrimentos
e necessidades do próximo, quando ela não funciona como meio de humanização, ela
não faz bem. O “outro lado” escolhido pelo sacerdote e o levita representa toda
indiferença que a religião pode provocar no ser humano. E Jesus denuncia esse
tipo de religião. Ora, a religião só tem sentido quando serve para quebrar
barreiras, superar preconceitos, aproximando as pessoas, estimulando a
solidariedade e o amor.
A denúncia
de Jesus ao mestre da lei e seu modo de viver a religião chega ao ápice quando
ele diz, na parábola, que «um samaritano que estava viajando, chegou
perto dele, viu e sentiu compaixão» (v. 33). Ora, os samaritanos eram
mal vistos pelos judeus; havia uma rivalidade que durava vários séculos, entre
eles. Quando a Assíria conquistou Samaria,
a capital do Reino do Norte, em 722 a.C., deportou a população local e trouxe
povos estrangeiros para habitar na cidade (2 Rs 17,24-28). Os novos habitantes
levaram seus costumes e tradições religiosas, o que levou a Samaria a ser
conhecida como terra de sincretismo, de heresias e povo impuro. É essa a origem
histórica da relação conflituosa. Inclusive, quando os judeus retornaram do
exílio e começaram a reconstruir o tempo e a cidade de Jerusalém, mesmo em meio
às dificuldades, rejeitaram a ajuda oferecida pelos samaritanos, como atesta o
livro histórico de Esdras (Es 4,3). A maior ofensa que um judeu
poderia receber era ser chamado de samaritano. Era o mesmo que dizer herege,
pecador, impuro... alguém da pior qualidade possível. Inclusive, o próprio
Jesus com seus discípulos tinham sido rejeitados pelos samaritanos no início do
caminho (Lc 9,53), e agora ele apresenta um samaritano como alguém que age como
Deus.
Ver e ter
compaixão são atitudes próprias de Deus, o mesmo que viu a miséria do seu povo
no Egito e desceu para libertá-lo (Ex 3,7ss). E, ironicamente, os homens que
pareciam conhecer a Deus, o sacerdote e o levita, não conheciam os seus
sentimentos, mas um infiel aos olhos da religião agiu à maneira de Deus. Aqui
está o auge da contundente e irônica denúncia de Jesus. Inclusive, o verbo
empregado nesta parábola para expressar a compaixão do samaritano é usado
somente três vezes no Evangelho de Lucas: aqui (v. 33), no episódio do filho morto
da viúva de Naim (7,13) e na parábola do pai misericordioso ou filho pródigo
(15,20). Trata-se do verbo grego “splanknizomai” (σπλαγχνίζομαι), que expressa
o amor que sai do mais profundo do ser, as vísceras ou o útero, o que é mas
íntimo que o próprio coração, conforme a mentalidade semita. Esse verbo possui
um significado tão profundo, que chega a ser impossível expressá-lo com
palavras. Exprime um agir que, depois de Deus, somente um pai ou uma mãe
poderiam demonstrar, agindo e amando. Para amar de modo tão profundo, com
misericórdia e compaixão, é necessário aproximar-se e ver a situação do outro, abaixando-se
totalmente até tocar as feridas, como fez o samaritano. Por isso, misericórdia ou
compaixão não é um sentimento, mas modo de agir, que corresponde à maneira de
Deus.
O
sacerdote e o levita viram o estado miserável em que se encontrava o homem, mas
foram para o outro lado do caminho. O samaritano viu, sentiu compaixão e
aproximou-se. Duas atitudes completamente opostas. A compaixão do samaritano
fez com que ele se aproximasse e cuidasse do homem, como diz o texto: «Aproximou-se
dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o
homem em seu próprio animal e levou-o a uma pensão, onde cuidou dele» (v.
34). Ao todo, entre os versículos 33 a 35, são empregados mais de dez
verbos de ação para descrever a atitude do samaritano. Assim, Jesus contrapõe a
omissão dos praticantes da religião à ação movida de compaixão da parte daquele
que era considerado herege, denunciando ainda mais o mestre da Lei. Por isso,
pode-se dizer que esta é a parábola de Jesus que contém mais dados
autobiográficos: o agir do samaritano se assemelha ao seu, que veio para estar
com os pecadores, com as pessoas sofridas, excluídas e marginalizadas. Uma vez
que a parábola foi contada como resposta à pergunta «E quem é o meu
próximo?» (v. 29), Jesus devolve novamente uma pergunta ao mestre,
pedindo dele um posicionamento: «Na tua opinião qual dos três foi o
próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?» (v. 36). Da
pergunta de Jesus emerge um dado muito importante: o próximo não é, o próximo
se faz. Ora, para os judeus, o próximo era o parente, o companheiro de religião
e, no máximo, o estrangeiro radicado entre eles. Portanto, era uma categoria estática,
pré-definida. Jesus diz, com a parábola e a pergunta final que o próximo se
faz, ou seja, são as circunstâncias que tornam alguém próximo do outro. Deve-se
fazer próximo de toda pessoa, com predileção pelas marginalizadas, feridas,
como fez o samaritano.
A resposta
do mestre à pergunta de Jesus é correta, embora ele mesmo não a aceite: «Aquele
que usou de misericórdia para com ele» (v. 37a) foi o próximo. Dois
aspectos chamam a atenção nessa resposta: primeiro, o mestre evita mencionar “o
samaritano”, o que para ele era uma espécie de palavrão, por isso, diz apenas
“aquele”, quer dizer que aquele mestre da Lei, judeu fiel, continuava fechado
em sua mentalidade mesquinha e cheio de rancor; segundo, o uso da misericórdia
que é atribuído somente a Deus em todo o Antigo Testamento e apenas a Jesus no
Novo, é agora atribuído também a um homem, e da pior qualidade possível, conforme
a mentalidade judaica da época. E isto é muito significativo. A única vez em
que se atribui a um homem o uso da misericórdia é aqui. E não se atribui a um
homem da religião, mas a um herege. Essa é uma das grandes novidades de Jesus e
de Lucas em seu Evangelho. De todos os envolvidos na parábola, o único que foi
considerado um exemplo e parecido com Deus foi um homem que a religião
condenava. Ao mestre da lei, Jesus aconselha: «Vai e faze a mesma coisa» (v.
37), ou seja, pede que seja como um samaritano, um excluído e tratado como
herege, mas que se deixe mover pela compaixão. Este convite, imperativo, é
dirigido a todo ouvinte e leitor da obra de Lucas, em todos os tempos. Fazer a
mesma coisa que o samaritano é fazer-se próximo das pessoas mais necessitadas,
as pessoas feridas e marginalizadas.
Com isso,
Jesus convida o mestre da Lei e a todas as pessoas, de ontem e de hoje, a
romper todas as barreiras impostas pela religião e perceber que o amor a Deus e
ao próximo são inseparáveis. É preciso fazer-se próximo, à medida em que se
caminha e vê as situações que necessitam de cuidado e atenção. Por isso, o
samaritano é imagem do Deus de Jesus e paradigma para os cristãos e cristãs de
todos os tempos.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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