sábado, setembro 13, 2025

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – JOÃO 3,13-17

 


Neste ano, a liturgia do vigésimo quarto domingo do tempo comum é substituída pela Festa da exaltação da Santa Cruz, cujo evangelho é Jo 3,13-17. Trata-se de uma das festas mais antigas da Igreja, cujas origens remontam aos primórdios da era constantiniana, quando, segundo a tradição, a cruz de Cristo foi descoberta por Helena, mãe do imperador Constantino, durante uma peregrinação à Jerusalém, por volta do ano 326. Logo após a suposta descoberta, o imperador mandou construir duas grandes basílicas em Jerusalém, nos lugares tradicionalmente identificados como locais da crucificação e do sepulcro de Jesus. Essas igrejas foram inauguradas nos dias treze e quatorze de setembro do ano 335. Assim nasceu a festa celebrada hoje. Tendo começado no Oriente, logo se espalhou pelo Ocidente e todo o mundo conhecido de então. Inicialmente, era considerada tão importante quanto a Páscoa, inclusive, a celebração costumava durar uma semana, sendo marcada por grandes procissões, expressando um aspecto altamente triunfalista. Por muitos séculos ela foi celebrada dessa maneira. Historicamente, o sucesso inicial da festa pode ser considerado positivo, pois ajudou a valorizar o sentido da cruz na vida cristã, embora, com o passar dos anos, tenha sido distorcido, devido ao excesso de devocionismo pouco reflexivo, que acabou transformando a cruz em símbolo de resignação e conformismo diante das situações de injustiças e sofrimentos.

No início do cristianismo, houve muita resistência à aceitação da cruz como símbolo e sinal de pertença a Jesus Cristo. Como se sabe, a cruz estava entre os instrumentos de execução e tortura mais temidos no império romano. Era usada para punir os piores criminosos, as pessoas que realmente representavam perigo para a ordem social, como os rebeldes, assaltantes e assassinos. A morte na cruz era lenta, humilhante e altamente dolorosa. À dor física, somavam-se a vergonha, a humilhação, uma vez que a execução na cruz era exposta, geralmente, acontecia em lugares altos, para que o maior número possível de pessoas pudesse ver e, assim, ficassem de sobreaviso sobre os riscos de cometer crimes e desafiar o sistema opressor. Tudo isso, obviamente, desencoraja muitas pessoas a aceitar Jesus como Messias e Senhor, afinal, a cruz era sinônimo de fracasso e, acima de tudo, de perigo. Logo, era difícil conceber que o Filho de Deus terminasse morto na cruz. Isso justifica a insistência dos autores do Novo Testamento em apresentar Jesus como o Filho de Deus que morreu na cruz, mas ressuscitou. Por isso, até os três primeiro séculos, os cristãos evitavam usar a cruz como símbolo, preferindo outras imagens como o peixe, o bom pastor e o cordeiro. O sucesso inicial da festa celebrada hoje ajudou na superação dessa visão. A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II ressignificou seu sentido, fazendo a passagem de um culto à cruz enquanto objeto à contemplação do mistério da cruz como instrumento de salvação, de modo que, mais do que uma exaltação da cruz, pode-se falar de uma exaltação na cruz, como sugere o evangelho do dia.

Da contextualização histórica da festa, passamos para o contexto narrativo do evangelho nela empregado. Trata-se de Jo 3,13-17, uma passagem localizada na primeira parte do Evangelho de João, chamada tradicionalmente de “livro dos sinais” (Jo 1–12). Considerando um contexto mais imediato, esse texto faz parte do diálogo entre Jesus e Nicodemos (Jo 3,1-21), que é o primeiro dos grandes diálogos do Quarto Evangelho. Os diálogos constituem uma das principais características do Evangelho de João, sendo um dos instrumentos privilegiados de revelação da identidade de Jesus. Naquela ocasião, Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da “Páscoa dos judeus” (Jo 2,13.23). Durante sua estadia na grande cidade, ele realizou muitos sinais, despertando, além de oposição nas autoridades, adesão ao seu nome e curiosidade em alguns, como Nicodemos, com quem desenvolveu um prolongado e rico diálogo (Jo 3,1-21). O evangelista descreve Nicodemos como um judeu importante, pertencente ao grupo dos fariseus (Jo 3,1), profundo conhecedor da Lei (Jo 7,50-52), e curioso pela novidade de Jesus. Sua curiosidade para conhecer melhor a mensagem de Jesus revela sinceridade e respeito, inclusive o reconhecimento de que Jesus “vem da parte de Deus” (Jo 3,2), o que muitos fariseus tinham dificuldade de reconhecer, conforme as informações fornecidas pelos quatro evangelhos.

A leitura atenta do encontro com o diálogo em seu conjunto (Jo 3,1-21) revela que Nicodemos não estava satisfeito com a religião oficial. Parece que a imagem do Deus pregado pela sua religião já não lhe convencia plenamente. Certamente, ele desejava uma profunda renovação, embora ainda não estivesse pronto para romper com o sistema e aderir ao projeto de Jesus. A simples curiosidade, no entanto, já é um passo importante para quem estava plenamente atrelado à estrutura religiosa da época, inclusive como uma das lideranças. Nicodemos aparecerá em mais duas ocasiões no Quarto Evangelho, e sempre tomando posições a favor de Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando ele tinha se apresentado como fonte de água-viva, em alusão ao Espírito Santo (7,37-52), e ajudando em seu sepultamento (19,39). Se já tinha interesse em conhecer Jesus pelo que ouvia a seu respeito, certamente o interesse aumentou ainda mais ao dialogar com ele. Como último aspecto a nível de introdução e contexto, recordamos as circunstâncias em que Nicodemos procurou Jesus: foi na “calada da noite” (Jo 3,2). Esse detalhe tem sido alvo de muitas tentativas de explicação pelos estudiosos. A explicação mais conhecida afirma que Nicodemos procurou Jesus à noite para não ser visto pelos seus colegas de doutrina, ou seja, os fariseus e os líderes religiosos de Jerusalém, uma vez que Jesus não era bem-visto por esse meio. De fato, para quem defendia a moral e os bons costumes na época, a companhia de Jesus era desaconselhada. Porém, é provável que o evangelista tivesse intenções mais teológicas do que cronológicas para registrar esse detalhe, o que não convém aprofundarmos aqui, já que não é componente do evangelho de hoje, mas apenas um elemento do seu contexto. A noite, como imagem das trevas, poderia representar, na perspectiva do evangelista, o mundo em que Nicodemos vivia, com a mentalidade religiosa vigente.

Feitas a devida contextualização, passemos então ao estudo do texto, o qual começa com a seguinte declaração de Jesus: «Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem» (v. 13). Sendo o mais enigmático dos quatro, o Evangelho de João é marcado por paradoxos, representados por antíteses como luz e trevas, vida e morte, carne e espírito. A esses, soma-se a referência aos movimentos de subida e descida e vice-versa, evidenciado no primeiro versículo da passagem lida neste domingo. Como “ninguém subiu ao céu”, ninguém pode falar das coisas de lá. Por céu compreende-se a pertença ao mundo de Deus, e Jesus, o Filho do Homem, é o único agente autorizado para falar dessa realidade, pois foi de lá que ele veio, enquanto o Verbo que se fez carne (Jo 1,14). No contexto da festa de hoje, essa afirmação se torna ainda mais relevante, pois, pelo mistério da cruz, sobretudo no Quarto Evangelho, Jesus concede à humanidade inteira o acesso ao mundo de Deus. Obviamente, não se trata de uma realidade física, mas espiritual, trata-se, antes de tudo, de uma vida de comunhão com ele. Ora, os fariseus, grupo ao qual pertencia Nicodemos, o interlocutor de Jesus, imaginavam ter acesso ao céu mediante a observação minuciosa da Lei de Moisés e, em resposta, Jesus diz que o acesso depende dele, o que desceu do céu. Somente ele conhece o caminho e, por isso, pode indicar para o mundo. Da cruz, Jesus retorna ao mundo do Pai, de onde veio; esse retorno se dá após ensinar a todas as pessoas o caminho, que é o amor incondicional e ilimitado, como ele amou.

Na continuação, vem apresentado um dado das Escrituras, aplicado por Jesus a si mesmo: «Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado» (v. 14). Ora, sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, afinal, era um fariseu de destaque, Jesus cita explicitamente um episódio do livro dos Números (Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu realizado por Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender como será a sua elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. Por sinal, essa é a primeira afirmação da elevação de Jesus no Evangelho de João acerca da sua elevação, e chama a atenção porque estamos ainda no início do livro. Se trata de um acontecimento tão indispensável para o seu plano salvífico, que ele começa a preparar a comunidade dos seus seguidores desde cedo. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com a sua comunidade para que aceite a cruz, pois, como consequência do amor, ela faz parte da vida conforme o programa de Jesus. Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável. Porém, Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário «Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna» (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula de fé, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.

Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna» (v. 16). Há estudiosos que consideram essa afirmação de Jesus o coração do Quarto Evangelho e de toda a teologia de tradição joanina (1Jo 4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos verbos mais importantes do respectivo Evangelho, a saber, os verbos amar (em grego: ἀγαπάω – agapáo), dar ou oferecer (em grego: δίδωμι – didomi). Por meio deles, o autor reforça a gratuidade do amor de Deus pelo mundo. É um Deus que só tem amor para oferecer ao mundo, e o faz de modo livro e gratuito, exatamente porque ama infinitamente. E o mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Com essa afirmação, Jesus toca numa ferida para os judeus mais devotos, pois declara o fim do exclusivismo de Israel como destinatário do amor e das promessas de Deus. Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação «Deus amou o mundo» é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom, a qualidade da sua oferta: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que «Deus deu o seu Filho» para a humanidade. Quer dizer que o mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe e crê, recebe a vida eterna. Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental empregado neste versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas principais do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes (vv. 15 e 16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé, crer significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a própria existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo, a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será destruída nem com a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador, cujo exemplo completo é Jesus de Nazaré.

O versículo seguinte reforça o anterior: «De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa exatamente julgar (em grego: κρίνω – krino). Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, nem sequer julga e, portanto, não condena ninguém. Pelo contrário, ele justifica, ao invés de julgar, tamanho o seu amor. Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai cheio de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor. O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. 

Celebrar a exaltação da Santa Cruz, portanto, é celebrar a exaltação do amor, da doação plena, da força humanizante que Deus ofereceu abundantemente ao mundo, com o dom do seu Filho. Como indicado na introdução, celebramos a exaltação na cruz, pois, apesar de marcada por gritos de dor, como Jesus gritou, são gritos de libertação.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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