Neste ano, a liturgia do vigésimo
quarto domingo do tempo comum é substituída pela Festa da exaltação da Santa
Cruz, cujo evangelho é Jo 3,13-17. Trata-se de uma das festas mais antigas da
Igreja, cujas origens remontam aos primórdios da era constantiniana, quando,
segundo a tradição, a cruz de Cristo foi descoberta por Helena, mãe do
imperador Constantino, durante uma peregrinação à Jerusalém, por volta do ano
326. Logo após a suposta descoberta, o imperador mandou construir duas grandes
basílicas em Jerusalém, nos lugares tradicionalmente identificados como locais
da crucificação e do sepulcro de Jesus. Essas igrejas foram inauguradas nos
dias treze e quatorze de setembro do ano 335. Assim nasceu a festa celebrada
hoje. Tendo começado no Oriente, logo se espalhou pelo Ocidente e todo o mundo
conhecido de então. Inicialmente, era considerada tão importante quanto a Páscoa,
inclusive, a celebração costumava durar uma semana, sendo marcada por grandes
procissões, expressando um aspecto altamente triunfalista. Por muitos séculos ela
foi celebrada dessa maneira. Historicamente, o sucesso inicial da festa pode
ser considerado positivo, pois ajudou a valorizar o sentido da cruz na vida
cristã, embora, com o passar dos anos, tenha sido distorcido, devido ao excesso
de devocionismo pouco reflexivo, que acabou transformando a cruz em símbolo de
resignação e conformismo diante das situações de injustiças e sofrimentos.
No início do cristianismo, houve
muita resistência à aceitação da cruz como símbolo e sinal de pertença a Jesus
Cristo. Como se sabe, a cruz estava entre os instrumentos de execução e tortura
mais temidos no império romano. Era usada para punir os piores criminosos, as
pessoas que realmente representavam perigo para a ordem social, como os
rebeldes, assaltantes e assassinos. A morte na cruz era lenta, humilhante e
altamente dolorosa. À dor física, somavam-se a vergonha, a humilhação, uma vez
que a execução na cruz era exposta, geralmente, acontecia em lugares altos,
para que o maior número possível de pessoas pudesse ver e, assim, ficassem de
sobreaviso sobre os riscos de cometer crimes e desafiar o sistema opressor. Tudo
isso, obviamente, desencoraja muitas pessoas a aceitar Jesus como Messias e
Senhor, afinal, a cruz era sinônimo de fracasso e, acima de tudo, de perigo.
Logo, era difícil conceber que o Filho de Deus terminasse morto na cruz. Isso
justifica a insistência dos autores do Novo Testamento em apresentar Jesus como
o Filho de Deus que morreu na cruz, mas ressuscitou. Por isso, até os três
primeiro séculos, os cristãos evitavam usar a cruz como símbolo, preferindo
outras imagens como o peixe, o bom pastor e o cordeiro. O sucesso inicial da
festa celebrada hoje ajudou na superação dessa visão. A reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II ressignificou seu sentido, fazendo a passagem de um culto
à cruz enquanto objeto à contemplação do mistério da cruz como instrumento de
salvação, de modo que, mais do que uma exaltação da cruz, pode-se falar de uma
exaltação na cruz, como sugere o evangelho do dia.
Da contextualização histórica da
festa, passamos para o contexto narrativo do evangelho nela empregado. Trata-se
de Jo 3,13-17, uma passagem localizada na primeira parte do Evangelho de João,
chamada tradicionalmente de “livro dos sinais” (Jo 1–12). Considerando um
contexto mais imediato, esse texto faz parte do diálogo entre Jesus e Nicodemos
(Jo 3,1-21), que é o primeiro dos grandes diálogos do Quarto Evangelho. Os
diálogos constituem uma das principais características do Evangelho de João,
sendo um dos instrumentos privilegiados de revelação da identidade de Jesus. Naquela
ocasião, Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da “Páscoa dos
judeus” (Jo 2,13.23). Durante sua estadia na grande cidade, ele realizou muitos
sinais, despertando, além de oposição nas autoridades, adesão ao seu nome e
curiosidade em alguns, como Nicodemos, com quem desenvolveu um prolongado e
rico diálogo (Jo 3,1-21). O evangelista
descreve Nicodemos como um judeu importante, pertencente ao grupo dos fariseus
(Jo 3,1), profundo conhecedor da Lei (Jo 7,50-52), e curioso pela novidade de
Jesus. Sua curiosidade para conhecer melhor a mensagem de Jesus revela
sinceridade e respeito, inclusive o reconhecimento de que Jesus “vem da parte
de Deus” (Jo 3,2), o que muitos fariseus tinham dificuldade de reconhecer,
conforme as informações fornecidas pelos quatro evangelhos.
A leitura
atenta do encontro com o diálogo em seu conjunto (Jo 3,1-21) revela que
Nicodemos não estava satisfeito com a religião oficial. Parece que a imagem do
Deus pregado pela sua religião já não lhe convencia plenamente. Certamente, ele
desejava uma profunda renovação, embora ainda não estivesse pronto para romper
com o sistema e aderir ao projeto de Jesus. A simples curiosidade, no entanto,
já é um passo importante para quem estava plenamente atrelado à estrutura
religiosa da época, inclusive como uma das lideranças. Nicodemos aparecerá em
mais duas ocasiões no Quarto Evangelho, e sempre tomando posições a favor de
Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando ele tinha se apresentado como
fonte de água-viva, em alusão ao Espírito Santo (7,37-52), e ajudando em seu
sepultamento (19,39). Se já tinha interesse em conhecer Jesus pelo que ouvia a
seu respeito, certamente o interesse aumentou ainda mais ao dialogar com ele. Como
último aspecto a nível de introdução e contexto, recordamos as circunstâncias
em que Nicodemos procurou Jesus: foi na “calada da noite” (Jo 3,2). Esse
detalhe tem sido alvo de muitas tentativas de explicação pelos estudiosos. A
explicação mais conhecida afirma que Nicodemos procurou Jesus à noite para não
ser visto pelos seus colegas de doutrina, ou seja, os fariseus e os líderes
religiosos de Jerusalém, uma vez que Jesus não era bem-visto por esse meio. De
fato, para quem defendia a moral e os bons costumes na época, a companhia de
Jesus era desaconselhada. Porém, é provável que o evangelista tivesse intenções
mais teológicas do que cronológicas para registrar esse detalhe, o que não convém
aprofundarmos aqui, já que não é componente do evangelho de hoje, mas apenas um
elemento do seu contexto. A noite, como imagem das trevas, poderia representar,
na perspectiva do evangelista, o mundo em que Nicodemos vivia, com a
mentalidade religiosa vigente.
Feitas a devida contextualização, passemos então ao estudo do texto, o qual começa com a
seguinte declaração de Jesus: «Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que
desceu do céu, o Filho do Homem» (v. 13). Sendo o mais enigmático dos
quatro, o Evangelho de João é marcado por paradoxos, representados por
antíteses como luz e trevas, vida e morte, carne e espírito. A esses, soma-se a
referência aos movimentos de subida e descida e vice-versa, evidenciado no
primeiro versículo da passagem lida neste domingo. Como “ninguém subiu ao céu”,
ninguém pode falar das coisas de lá. Por céu compreende-se a pertença ao mundo
de Deus, e Jesus, o Filho do Homem, é o único agente autorizado para falar
dessa realidade, pois foi de lá que ele veio, enquanto o Verbo que se fez carne
(Jo 1,14). No contexto da festa de hoje, essa afirmação se torna ainda mais
relevante, pois, pelo mistério da cruz, sobretudo no Quarto Evangelho, Jesus concede
à humanidade inteira o acesso ao mundo de Deus. Obviamente, não se trata de uma
realidade física, mas espiritual, trata-se, antes de tudo, de uma vida de
comunhão com ele. Ora, os fariseus, grupo ao qual pertencia Nicodemos, o interlocutor
de Jesus, imaginavam ter acesso ao céu mediante a observação minuciosa da Lei
de Moisés e, em resposta, Jesus diz que o acesso depende dele, o que desceu do
céu. Somente ele conhece o caminho e, por isso, pode indicar para o mundo. Da
cruz, Jesus retorna ao mundo do Pai, de onde veio; esse retorno se dá após
ensinar a todas as pessoas o caminho, que é o amor incondicional e ilimitado,
como ele amou.
Na continuação, vem apresentado um dado das Escrituras,
aplicado por Jesus a si mesmo: «Do mesmo modo como Moisés levantou a
serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado» (v.
14). Ora, sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, afinal, era um
fariseu de destaque, Jesus cita explicitamente um episódio do livro dos Números
(Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu realizado por
Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a
compreender como será a sua elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui
antecipado. Por sinal, essa é a primeira afirmação da elevação de Jesus no
Evangelho de João acerca da sua elevação, e chama a atenção porque estamos
ainda no início do livro. Se trata de um acontecimento tão indispensável para o
seu plano salvífico, que ele começa a preparar a comunidade dos seus seguidores
desde cedo. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na
verdade, é o próprio evangelista insistindo com a sua comunidade para que
aceite a cruz, pois, como consequência do amor, ela faz parte da vida conforme
o programa de Jesus. Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu
projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável.
Porém, Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as
últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser
levantado” se tornou necessário «Para que todos os que nele crerem
tenham a vida eterna» (v. 15). O importante é a doação do dom da vida
em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida
eterna” no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula
de fé, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.
Jesus apresenta Deus como aquele que ama
incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor
incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou
tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que
nele crer, mas tenha a vida eterna» (v. 16). Há estudiosos que
consideram essa afirmação de Jesus o coração do Quarto Evangelho e de toda a
teologia de tradição joanina (1Jo 4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos
verbos mais importantes do respectivo Evangelho, a saber, os verbos amar (em
grego: ἀγαπάω – agapáo), dar ou oferecer
(em grego: δίδωμι – didomi). Por meio deles, o autor reforça a gratuidade do amor de
Deus pelo mundo. É um Deus que só tem amor para oferecer ao mundo, e o faz de
modo livro e gratuito, exatamente porque ama infinitamente. E o mundo é o
destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Com essa
afirmação, Jesus toca numa ferida para os judeus mais devotos, pois declara o
fim do exclusivismo de Israel como destinatário do amor e das promessas de
Deus. Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a
ser um direito da humanidade inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro
mandamento da Lei: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as
coisas! A afirmação «Deus amou o mundo» é única em toda a
Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da
parte de Deus é o seu dom, a qualidade da sua oferta: o Filho unigênito doado
ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.
É importante recordar e jamais esquecer que «Deus
deu o seu Filho» para a humanidade. Quer dizer que o mundo inteiro é
convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe e crê, recebe a vida eterna.
Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental empregado neste
versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia
joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas
principais do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes
(vv. 15 e 16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé,
crer significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua
mensagem libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a
própria existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna,
não significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a
duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo,
a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no
futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se
torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de
Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder
destruí-la. E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será
destruída nem com a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a
sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser
encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador,
cujo exemplo completo é Jesus de Nazaré.
O versículo seguinte reforça o anterior: «De
fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo
seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o
Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não
veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a
respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais
apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a
língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do
julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa exatamente
julgar (em grego: κρίνω – krino).
Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem
antes julga. Como Deus só sabe amar, nem sequer julga e, portanto, não condena
ninguém. Pelo contrário, ele justifica, ao invés de julgar, tamanho o seu amor.
Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus
como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo
para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os
primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio
revelar: um Pai cheio de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o
próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas
convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a
juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas
salva, porque de quem é amor só pode sair amor. O mesmo Deus que doou
livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa
pode acolher ou não o seu Filho, Jesus.
Celebrar a exaltação da Santa Cruz, portanto, é celebrar
a exaltação do amor, da doação plena, da força humanizante que Deus ofereceu
abundantemente ao mundo, com o dom do seu Filho. Como indicado na introdução,
celebramos a exaltação na cruz, pois, apesar de marcada por gritos de dor, como
Jesus gritou, são gritos de libertação.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
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