Neste
ano, a liturgia do vigésimo oitavo domingo do tempo comum é substituto pela Solenidade
da Bem-aventurada Virgem Maria da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil, devido
à coincidência com o dia doze de outubro. O evangelho desta solenidade é sempre
o mesmo: Jo 2,1-11. Trata-se do episódio conhecido como as “bodas de Caná”, um
relato exclusivo de João, colocado logo no início do seu Evangelho, como marco inaugural
da missão de Jesus, quando ele realiza o primeiro sinal, tendo a sua mãe como
testemunha privilegiada, além da presença dos discípulos. De todos os
evangelhos, o de João é aquele que melhor introduz a vida pública. E o faz por
meio de sequência narrativa denominada pelos estudiosos de “semana inaugural”
(Jo 1,19–2,11). Essa semana começa com o envio de uma comitiva pelas
autoridades religiosas de Jerusalém para fiscalizar a atividade de João, o
batizador (Jo 1,19-28), e concluída com o episódio das bodas de Caná, texto
empregado na liturgia de hoje. Sem dúvidas, esse episódio é um dos mais populares
de toda a Bíblia. E deve ser sempre bem contextualizado, sobretudo quando
empregado num festa mariana. Por isso, começamos a reflexão com a devida
contextualização.
Embora
simples do ponto de vista narrativo, pois trata-se de uma história com trama,
cenário e personagens bem definidos, o texto apresenta uma grande complexidade
teológica. Por isso, preferiu-se, ao longo dos séculos, uma interpretação quase
literal, limitada a fundamentar uma suposta intercessão de Maria e, assim,
fomentar a devoção mariana, sem explorar a riqueza teológica empregada pelo
evangelista. Por sinal, o nome de Maria Sequer aparece no texto. A pessoa que
interage com Jesus é designada apenas como sua mãe, por tratar-se de uma figura
representativa ou personalidade corporativa. Tem sido grande, portanto, o
esforço da exegese das últimas décadas para restituir ao texto o seu valor
cristológico, praticamente ofuscado pela leitura devocionista aplicada ao longo
dos séculos. O primeiro passo para isso é situar o texto no seu devido contexto,
como já acenado acima. Ora, o evangelista João introduz a vida pública de Jesus
com uma série de episódios distribuídos ao longo de uma semana, chamada pelos
estudiosos de “semana inaugural”, como acenado anteriormente. E o ponto alto
dessa semana é exatamente o episódio das bodas de Caná, que funciona como
introdução e porta de entrada para todo o Evangelho. Tudo o que será
desenvolvido ao longo do Quarto Evangelho, portanto, será desdobramento desse
episódio. Inclusive, esse é o primeiro episódio que tem Jesus como o real
protagonista. Até então, os protagonistas tinham sido João e alguns discípulos
– André, que era discípulo de João, seu irmão Simão Pedro, Filipe e Natanael.
O texto
começa com um dado importante, infelizmente, omitido pela tradução litúrgica: a
expressão “No terceiro dia”, substituída pela genérica e desnecessária fórmula
de introdução “Naquele tempo”. Embora já se trate do dia conclusivo da semana,
o evangelista omite alguns dias de propósito, para que este episódio se realize
no “terceiro dia”. Ora, o último episódio narrado tinha sido o encontro de
Jesus com Filipe e Natanael (Jo 1,43-51), que correspondia ao quarto dia da
semana; as bodas de Caná, portanto, acontecem no “terceiro dia” após esse
episódio. Mais do que um dado cronológico, a expressão “terceiro dia” é um
indicativo teológico: significa uma manifestação especial de Deus, uma
intervenção divina. De imediato, esta expressão leva o leitor a pensar na
ressurreição de Jesus, o maior dos fatos acontecidos no “terceiro dia”,
conforme o conjunto das Escrituras. No entanto, há diversos episódios
importantes da Bíblia que também aconteceram no “terceiro dia”. De fato, diz a
Bíblia que foi no “terceiro dia” que Abraão subiu à montanha para sacrificar
Isaac, provando a sua fé (Gn 22,4), e foi no “terceiro dia” que Deus manifestou
a sua glória no Sinai e entregou a Lei a Moisés (Ex 19,11ss). O maior de todos,
como acenado anteriormente, obviamente, é a ressurreição de Jesus, a
intervenção definitiva de Deus. Ora, ao apresentar o primeiro sinal de Jesus ao
“terceiro dia”, João sinaliza que toda a sua vida será manifestação e presença de
Deus na história, cujo ápice será a ressurreição. Portanto, “terceiro dia” é
uma expressão teológica que indica o agir de Deus. Tudo isso ajuda a
compreender a importância do episódio das bodas de Caná para o conjunto do
Quarto Evangelho.
Eis,
então, que no “terceiro dia”: «houve
um casamento em Caná da Galileia. A Mãe de Jesus estava presente» (v. 1). As festas de casamento, na
cultura semita, eram esperadas com muita ansiedade. Era a festa dos sonhos;
normalmente, duravam uma semana, mas a depender das condições dos noivos,
poderia se estender por até duas semanas. Em Israel, Além do seu sentido
social, o matrimônio servia como símbolo da relação entre Deus e o seu povo,
desde os tempos do profeta Oséias (século VIII a.C.). Com essa festa, portanto,
o evangelista quer mostrar a situação da aliança, como o povo de Israel estava
se relacionando com o seu Deus, e a necessidade urgente de uma intervenção, com
uma verdadeira mudança de rumo. Como se vê, a Mãe de Jesus não é mencionada
pelo seu nome próprio nesse episódio, porque ela é uma personalidade
corporativa, quer dizer, representa uma coletividade, ou seja, uma comunidade,
e não apenas a pessoa individual de Maria, como já na introdução. Quando os
profetas denunciavam as injustiças e a corrupção reinantes em Israel,
mencionavam também um “resto” fiel que veria a realização das promessas de
Deus. Portanto, a Mãe de Jesus é, nesse relato, a imagem do resto fiel de
Israel que nunca se distanciou de Deus. Por isso, ela já “estava presente” no
casamento, porque fazia parte daquela comunidade.
Ao
contrário da Mãe que já “estava presente”, o evangelista diz que «Jesus e os discípulos foram
convidados para o casamento» (v.
2). Embora sutilmente, o evangelista faz uma distinção: Jesus e os discípulos
foram à festa como convidados, mas não faziam parte. Ao longo de todo o seu
Evangelho, João mostrará como Israel não aceitou Jesus, tratando-o como um
estranho e até como inimigo, inclusive no prólogo ele já tinha antecipado: «Veio
para os seus, mas os seus não o acolheram» (Jo 1,11). Porém, para conhecer
as reais necessidades e problemas de um povo, é necessário estar inserido e
fazer parte da realidade; tampouco basta conhecer as necessidades e os
problemas; é preciso tomar iniciativa e buscar soluções, como fez a Mãe: «Como o vinho veio a faltar, a Mãe
de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”» (v. 3). A Mãe de Jesus, como imagem do
resto fiel de Israel, é a mais legítima conhecedora das carências e falhas na
relação de seu povo com Deus, por isso, ela constata uma triste realidade: a
falta de vinho. É importante recordar, como mostra claramente o texto, que ela
não faz um pedido a Jesus, como insinuam as interpretações mais devocionistas.
Ela constata uma situação e faz uma denúncia: a falta de vinho nessa festa de
casamento é, na verdade, a falta de amor e de alegria na antiga aliança. A Mãe
constata que Israel falhou em sua relação com Deus e, por isso, a aliança
fracassou. O vinho era essencial numa festa e, na Bíblia, é sinal de alegria,
amor e felicidade.
A Mãe de
Jesus é a primeira a perceber a esterilidade e a superficialidade da relação de
Israel com Deus. Ora, o povo de Israel imaginava que entrava em comunhão com
Deus através de sacrifícios, ritos de purificação, jejuns e outros ritos,
independentemente da prática da justiça e da conduta ética, sem qualquer
compromisso nas relações com o próximo. Praticava-se a religião do mérito com
muitas ofertas, sacrifícios e pouco amor. Foi isso que a Mãe de Jesus constatou
ao lhe dizer que não havia mais vinho na festa. Não havia mais amor e alegria
na maneira do povo relacionar-se com Deus. Ela percebeu também que somente
Jesus poderia contornar aquela situação, por isso lhe comunicou a carência. Ela
sabia que a proposta de vida que Jesus veio oferecer ao mundo, fundamentada no
amor, era a única saída para Israel reencontrar-se consigo mesmo e com Deus, e
continua sendo, para toda a humanidade. Como a Mãe, nesse episódio, representa
toda a comunidade do resto fiel de Israel, a sua relação com Jesus carrega um certo
formalismo, como se vê na resposta de Jesus: «Jesus
respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”» (v. 4). Jesus não a chama de Mãe, mas
apenas de mulher, e esclarece que não depende somente dele para contornar
aquela situação; de fato, ao dizer que a sua hora ainda não chegou, ele
confessa depender do Pai, sobretudo, pois foi aquele que o enviou. Na dinâmica
do Quarto Evangelho, a hora de Jesus é preparada e aguardada com muita
expectativa. Definitivamente, ela chegará na cruz. Mas, assim como a cruz não
foi um ato isolado, e sim consequência de uma vida inteiramente doada, também a
“hora” será construída paulatinamente, à medida em que serão encontradas
situações necessitadas de transformação.
Mesmo
sem receber uma resposta positiva, a Mãe confia na providência, como modelo de
crente. Conhecedora da situação, ela vê como urgente a intervenção de Deus,
através de Jesus; por isso, ordenou aos que estavam servindo: «Fazei o que ele vos disser» (v. 5). Ora, a antiga aliança foi
concluída com uma resposta solene do povo a Moisés: «Sim, nós faremos tudo o que Iahweh
disse!» (Ex 24,7). Porém, a
história mostra que Israel falhou e não fez a vontade de Deus, ou seja, não fez
o que “Iahweh disse”. Logo, a antiga aliança fracassou exatamente porque o povo
não cumpriu essa promessa, e a Mãe de Jesus sabia disso; por isso a
recomendação para fazer o que ele disser, de agora em diante, mediante Jesus, o
revelador de Deus, por excelência. Com esta ordem – Fazei o que ele vos disser
– a Mãe de Jesus reconhece não ser a dona da mensagem. De fato, ela reconhece
que não tem o que dizer a não ser indicar a Boa Nova de Jesus como único
caminho de vida. Implicitamente, ela confessa que não pode fazer nada. Não se
trata de uma deficiência ou fraqueza dela; reconhecer que não tem o que dizer e
nem o que fazer é, na verdade, a maior virtude da Mãe de Jesus. Essa deve ser a
postura de todos os discípulos e discípulas em todos os tempos: apontar para o
que Jesus diz, pois só ele tem palavras de vida, como também reconhecerá Pedro,
mais tarde (Jo 6,68). Nesse caso, a Mãe se antecipa. Quando Jesus ainda não
tinha manifestado qualquer sinal de glória e poder, ela acreditou que ele
poderia fazer algo. Por isso, ela é modelo de crente e discípula.
A partir
da constatação da Mãe e da sua ordem aos que estavam servindo, o evangelista
prossegue denunciando ainda mais a esterilidade da religião de Israel: «Estavam seis talhas de pedra
colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas
cabiam mais ou menos cem litros» (v.
6). Essas talhas – jarros, potes – de pedra simbolizam a Lei; estavam vazias
porque a Lei tinha chegado ao seu limite; através delas, os judeus faziam ritos
de purificação, mas não se encontravam verdadeiramente com Deus. De fato, a
expressão «a purificação que
os judeus costumam fazer» indica
toda a situação de carência em que Israel se encontrava. A necessidade de
purificar-se indica que eles não se sentiam plenamente em comunhão com Deus,
não bebiam do seu amor, que é o que realmente purifica o ser humano. A relação
que a religião da Lei proporcionava era superficial e momentânea, não gerava
laços de comunhão. A grande capacidade das talhas – cerca de cem litros cada
uma – indica ainda mais a profundidade daquela decadência religiosa. Era
necessária muita água para a purificação, e era uma purificação apenas
exterior, não alcançava o coração. E mesmo assim as talhas estavam vazias. Isso
quer dizer que nem mesmo aquela relação superficial estava garantida. Criava-se
um abismo entre a religião ritualista e o Deus amoroso, que é Criador e Pai. A
constatação desse abismo ficará mais evidente no episódio seguinte, quando o
evangelista vai narrar a denúncia de Jesus ao templo de Jerusalém, com a
expulsão dos cambistas e vendedores (Jo 2,13-22). Naquela ocasião, ao invés de
purificar o templo, como apontam algumas interpretações, Jesus propõe a
destruição completa.
A
continuação do episódio ressalta o quanto Jesus se solidariza com seu povo e
intervém, após a constatação da Mãe. Ele percebe que nem tudo está perdido. Na
figura da Mãe, ele vê um sinal de esperança no seu povo; por isso, toma a
iniciativa, como conta o evangelista: «Jesus
disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a
boca» (v. 7). Aqui, “Os que
estavam servindo” (em grego: διάκονοι - diáconoi)
são prefiguração da comunidade ideal de discípulos e discípulas que devem agir
conforme “tudo o que Jesus disser”; são esses que devem preencher o vazio de
amor em Israel e, posteriormente, em toda a humanidade, enchendo as talhas até
a boca, quer dizer, servindo e amando sem medidas. O “encher as talhas até a
boca” prefigura o amor até o fim de Jesus, que o evangelista vai recordar ao
introduzir o lava-pés (Jo 13,1ss). Trata-se de um amor ilimitado, cuja prova é a
doação da própria vida. E Jesus dá mais uma ordem: «“Agora tirai e levai ao
mestre-sala”. E eles levaram» (v.
8). O mestre-sala era o mestre de cerimônias, responsável pela organização e
coordenação da festa; era ele quem deveria vigiar e ficar atento se estava
faltando alguma coisa. Porém, negligenciou completamente o seu papel, não
percebeu que o vinho tinha acabado. Nesse episódio, ele representa os anciãos e
sacerdotes – a classe dirigente de Israel – que tinham se distanciado de suas
responsabilidades, não conheciam mais as reais necessidades do povo, estavam
alheios à vida cotidiana das pessoas.
Distante
da realidade, o mestre-sala não sabia sequer que o vinho tinha acabado, menos
ainda de onde tinha surgido o vinho novo e bom: «O mestre-sala experimentou a água
que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que
estavam servindo sabiam, pois era eles que tinham tirado a água» (v. 9). Enquanto isso, os que estavam
servindo, sabiam de tudo, pois fizeram o que Jesus ordenou, conforme aconselhou
a Mãe. Isso mostra, mais uma vez, que eles e a Mãe são mesmo prefiguração da
nova comunidade; a Mãe é o resto de Israel que encontra a nova humanidade
disposta a pôr em prática as palavras de Jesus. Quanto ao mestre-sala, mesmo
sem conhecer a origem do vinho novo, ele ficou surpreso com o sabor: «O mestre-sala chamou então o noivo
e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados
já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor
até agora!”»(v. 10). Aqui, o evangelista ironiza e denuncia o
distanciamento dos chefes de Israel em relação ao cotidiano das pessoas. Apesar
de desconhecer a origem, o mestre-sala reconhece a qualidade do vinho, e se
expressa até com surpresa, certamente por estar provando vinho bom pela
primeira vez, tendo em vista que, enquanto representação das autoridades
religiosas de Israel, nunca tinha experimentado vinho de verdade, mas apenas a
água parada das talhas. O que ele tomava antes, imaginando ser vinho, não
passava de água, pois sua relação com Deus não era movida pelo amor, e sim pelo
medo. É por isso que ele se surpreende. Mais adiante, pela surpresa introduzida
por Jesus no modo de se relacionar com Deus, as autoridades religiosas, aqui
simbolizadas pelo mestre-sala, tramarão a sua morte. Acostumadas à água das
talhas, elas não suportarão o vinho novo e abundante de Jesus.
Pela
primeira vez no relato, o evangelista faz referência ao noivo, quem deveria ser
o verdadeiro protagonista da festa. Esse noivo é o próprio Deus; a missão de
Jesus, fornecendo amor em abundância, representado pelo vinho novo, é reatar os
laços entre o Deus, o noivo-esposo, e a humanidade inteira, a nova
noiva-esposa. Como esse episódio é a verdadeira porta de entrada para todo o
Evangelho de João, ele conclui-se afirmando que «este foi o início dos
sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e
seus discípulos creram nele» (v.
11). Um sinal, como sabemos, não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma
realidade muito mais profunda. O sinal da mudança da água em vinho preconiza
muitas transformações que Jesus irá fazer e propor ao longo de todo o
evangelho. A principal transformação, a primeira e mais necessária, diz
respeito à maneira de relacionar-se com Deus. De uma relação servil e
ritualista, ele nos convida a uma relação de amor, cuja imagem mais visível e
clara é a do matrimônio, pois pressupõe um amor recíproco, com liberdade e
confiança. O vinho novo, de qualidade superior, representa essa nova relação. É
nisso que a sua glória se manifesta, e o que fortalece a fé.
Para ser
autenticamente discípulo e discípula é necessário ser como a Mãe e os
servidores, ao mesmo tempo: perceber as reais necessidades do próximo, tomar
iniciativas concretas e fazer tudo o que Jesus disser. A abundância do vinho,
imagem do amor, depende unicamente da disposição de fazer o que Jesus disser. E
fazer o que Jesus disser é o único caminho para o cristianismo recuperar sua
originalidade e, consequentemente, sua força transformadora. Por isso, a
recomendação da Mãe é sempre atual. E a Mãe sempre aparece em função do filho,
o único que tem palavras de vida.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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