sábado, novembro 29, 2025

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 24,37-44 (ANO A)

 


Neste domingo – o primeiro do advento – a Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a percorrer o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde anúncio do seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento, iniciado hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O termo advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”; possui o mesmo significado do termo grego parusia (παρουσία). Fazia parte do vocabulário das religiões pagãs no império romano, sendo usado com frequência para referir-se às supostas visitas das divindades aos seus respectivos templos e, no âmbito civil, era usado para designar as visitas de funcionários ilustres e dos imperadores às cidades e províncias do império. Por volta do século IV, o cristianismo absorveu a palavra advento, passando a utilizá-la no contexto do Natal, a visita de Deus ao mundo, por excelência, uma vez que já estava consolidado o uso do termo grego “parusia” para designar a segunda vinda de Cristo. Como o próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivo de esperanças e expectativas, e essa é uma das características principais do tempo do advento. E a esperança suscitada com esse tempo gira em torno da construção de um mundo novo, mais humanizado, no qual devem reinar a justiça, o amor e a paz.

Com o início do novo ciclo litúrgico, neste ano, iniciamos também a leitura do Evangelho de Mateus, por tratar-se do ano litúrgico A, porém, não do início, mas do seu final, exatamente do discurso escatológico. Por isso, o texto proposto para hoje é Mt 24,37-44. Como se sabe, o discurso escatológico está presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), porém é mais amplo em Mateus, uma vez que é esse evangelista quem faz questão de apresentar o ensinamento de Jesus organizado em forma de discursos mais amplos. O discurso escatológico trata das realidades últimas e finais da história, funcionando como introdução às narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus, na estrutura dos evangelhos mencionados. À primeira vista, parece paradoxal que a preparação para o Natal seja iniciada com um discurso que precede o relato da morte de Jesus e que fala do final da história. Porém, é necessário ver o advento como uma oportunidade de preparação para a vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda uma presença permanente, ao invés de alimentar uma expectativa futurista e preparar para apenas uma data ou evento. E, embora use imagens para falar das realidades últimas, o objetivo do discurso escatológico é ajudar a comunidade a viver o hoje como se já fosse o futuro, alimentando a esperança e estimulando o empenho de todos pela transformação do mundo já agora, com a superação das injustiças, da violência e do ódio. Por isso, mais do que falar de uma vinda, é mais oportuno recordar a necessidade de acolher uma presença que já está inserida no mundo, no coração da história, mas precisa ser acolhida e experimentada na vida de cada pessoa e sempre como novidade.

O primeiro passo para uma compreensão mais adequada do texto é colocá-lo no seu devido contexto, como faremos aqui. Ora, como já adiantamos, trata-se de um trecho do discurso escatológico de Jesus. A nível de contexto literário, ou seja, considerando o texto no conjunto do Evangelho de Mateus, deve-se recordar que esse discurso nasceu como resposta à pergunta dos discípulos diante da declaração de Jesus sobre a destruição do templo de Jerusalém. Ora, quando Jesus afirmou que daquela faraônica construção «não restaria pedra sobre pedra» (Mt 24,2), seus discípulos, certamente escandalizados, lhe perguntaram “como” e “quando” tudo isso aconteceria (Mt 24,3). O amplo discurso escatológico é, portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta. A nível de contexto histórico e teológico, no entanto, esse discurso nasceu como resposta do evangelista à situação de perseguição vivida por suas comunidades, as quais atravessavam um período de intenso conflito com a sinagoga. Ora, perseguidos pelas autoridades romanas e pelo judaísmo oficial, os cristãos sentiam-se sufocados, desanimados porque não viam o Reino de Deus ser instaurado; sentiam-se quase sem forças para suportar o sofrimento e o desânimo. Por isso, com esse discurso, o evangelista os convidava à resistência e à perseverança, alimentando a esperança de um mundo novo e estimulando-os ao empenha na sua construção. De fato, a situação das comunidades da Palestina, nos anos 80 do primeiro século, era bastante adversa, e a tendência ao desânimo na vivência da mensagem de Jesus era forte. E Mateus, o evangelista que mais conhecia aquela realidade, foi quem mais desenvolveu o discurso escatológico, com o intuito de renovar a esperança e perseverança, inclusive, combatendo o medo causado por pregadores oportunistas que já existiam naquela época.

Voltando à pergunta dos discípulos sobre “quando e como” aconteceria a grande transformação do mundo, cujo primeiro grande sinal seria a destruição do templo de Jerusalém, é importante recordar que Jesus responde com bastante cuidado. Ele emprega uma linguagem altamente simbólica, típica do gênero apocalíptico, como era comum no seu tempo, e convida os interlocutores de todos os tempos a olhar para a história e observar o tempo presente. À história, se olha a partir da Escritura, ao tempo presente se olha a partir do cotidiano, da vida das pessoas mais simples, como o agricultor e a dona de casa. Em relação à dimensão temporal, ao seja, ao “quando”, disse Jesus: «Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu e nem o Filho, mas somente o Pai» (Mt 24,36). Essa confissão de ignorância do Filho parece estranha, uma vez que ele mesmo já tinha afirmado sua intimidade com o Pai, mostrando que tinham tudo em comum: «Tudo me foi entregue por meu Pai» (Mt 11,27a). A afirmação de não conhecimento do momento exato da manifestação definitiva de Deus na história é, portanto, um alerta para a comunidade não se deixar levar por falsos anúncios de muitos supostos destinatários de visões e aparições, como existem até os dias de hoje e, talvez, até com mais intensidade. Quanto ao “como” da manifestação, Jesus também não apresenta muitos detalhes, embora seja menos ambíguo do que na resposta ao “quando”; inclusive, disse que haveria perseguição aos seus seguidores, e que muitos pregadores aproveitariam a ocasião para causar medo nas pessoas, o que exige bastante vigilância e cuidado para não se deixar enganar por essas pessoas (Mt 24,4-14). É, portanto, nesse contexto que o evangelho de hoje foi construído e transmitido na comunidade de Mateus e pensado também para as comunidades de todos os tempos e lugares.

É muito claro o interesse de Jesus em ponderar as expectativas e curiosidade dos discípulos. Na verdade, ele se preocupava bastante com tais expectativas, pois refletiam uma mentalidade incompatível com seu projeto de Reino. Por isso, ele ensina que, muito mais importante do que procurar descrever uma realidade desconhecida é estar preparado para acolher a novidade da vinda do Filho do Homem, como ele mesmo se autodefine, ao referir-se à sua segunda vinda. E, a melhor forma de preparar-se para tal evento é olhar com atenção para a história e perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus cita o exemplo do tempo de Noé para apresentar a imprevisibilidade da sua vinda: «A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Pois nos dias antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca» (vv. 37-38). Assim, ele mostra que a única coisa a ser feita é prevenir-se a partir do cotidiano, com discernimento e responsabilidade. Por isso, diz que “nos dias antes do dilúvio” (v. 38a), todos levavam uma vida normal, aparentemente, e muitos foram surpreendidos. Com isso, ele ensina que é necessário “normalizar” a vida a partir dos valores do Evangelho. Quer dizer, o ensinamento de Jesus deve ser regra e não exceção. Por regra, aqui, não se deve entender normas ou preceitos, mas o que deve ser prioridade e essencial, como o amor, a solidariedade, a justiça, e a paz, meios indispensáveis para a humanização do mundo.

O dilúvio (em grego: κατακλισμός – kataklismós) é apresentado como exemplo de como Deus pode surpreender a humanidade e como essa costuma não se prevenir para uma questão tão fundamental quanto a própria relação com Deus. Ao afirmar que «todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento» (v. 38b), ele quer dizer que se fazia o que era normal e consumia-se todas as energias em coisas efêmeras, embora necessárias. As atividades de “comer e beber” representam o cotidiano, as coisas que sustentam a vida em sua rotina e normalidade, bem como o dar-se em casamento, meio pelo qual tal cotidiano é reproduzido. São coisas essenciais, indispensáveis, bastante valorizadas nos livros proféticos e sapienciais da Bíblia Hebraica. Aqui, contudo, Jesus quer chamar a atenção para a comunidade não se contentar com a normalidade das coisas, pois foi por causa disso que muitos se perderam na história. Por isso, Noé é apresentado como exemplo de prudência, aquele que percebeu os sinais dos tempos, pois são os sinais pelos quais Deus se comunica com a humanidade. Devido à sua prudência, «Noé entrou na arca» (v. 38c), enquanto os outros «nada perceberam, até que veio o dilúvio e arrastou a todos» (v. 39a). Mais do que um alerta, esse exemplo é uma advertência para a responsabilidade. Ora, considerando que o discurso escatológico é direcionado principalmente aos discípulos que viviam situação de perseguição e desilusão com os rumos da história, portanto, é inadmissível que esses não se preocupem em perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus não lhes dá respostas prontas, mas convida-os a, inseridos no mundo, perceberem como Deus age na história.

De um exemplo do passado, Jesus parte para o presente e percebe que também no seu tempo as coisas estavam acontecendo da mesma forma, ou seja, as atividades do cotidiano continuavam distraindo as pessoas. É claro que não se pode ignorar o cotidiano; pelo contrário, deve-se vivê-lo bem, com intensidade, e o trabalho, como é mostrado nos dois exemplos seguintes, é uma dimensão indispensável para se viver bem o cotidiano; é um direito de todos e um meio essencial para a promoção da dignidade humano. Mas isso exige responsabilidade, o que passa pela busca de sentido para a vida, tanto em nível pessoal quanto comunitário. Por isso, ele cita duas atividades típicas do seu tempo, uma para o homem e outra para a mulher: o trabalho no campo e a atividade doméstica, respectivamente: «Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada» (vv. 40-41). Ao afirmar que um(a) será levado(a) e outro(a) deixado(a), Jesus não está antecipando a condenação e nem a salvação de ninguém, mas está lamentando que, novamente, a humanidade está desperdiçando a oportunidade de renovar-se, já que nem todos vivem as mesmas situações com a intensidade e a responsabilidade devidas. É lamentável que milhões de pessoas não tenham acesso ao trabalho digno. É igualmente lamentável que tantas pessoas, embora tralhando, não façam do trabalho um instrumento favorável à edificação do Reino de Deus.

Ora, o Reino de Deus, cuja irrupção na história corresponde, neste caso, à manifestação do Filho do Homem, não é excludente, mas é a própria humanidade que o rejeita e resiste a inserir-se nele. Enquanto alguns estão se esforçando para entrar nele, outros simplesmente o ignoram e, por isso, ficarão de fora. As atividades agrária e doméstica nesse contexto representam também o fechamento da humanidade a uma mentalidade antiga. Quem contentar-se somente em fazer estas coisas, sem preocupar-se com nada além disso, obviamente não está interessado no Reino, embora sejam atividades indispensáveis que não podem ser ignoradas, como igualmente não podem ser absolutizadas. Aos discípulos e discípulas de Jesus, é necessária uma abertura de horizonte, e com urgência. Estar atento à vinda do Filho do Homem é estar disposto a lutar e trabalhar pela instauração do Reino, e isso não se faz sem uma mudança profunda de mentalidade. Na verdade, o Filho do Homem já veio; o discípulo e a discípula são desafiados, em todos os tempos, a reconhecer a presença dele e, assim, dar um novo sentido ao seu cotidiano, sobretudo, transformando-o, tornando-o mais humano, justo e fraterno. Por isso, é importante fazer bem-feitas as atividades do dia-a-dia, sem fechar-se nelas. Logo, quem trabalha no campo que o faça visando a construção do Reino, da mesma forma quem exerce a atividade doméstica e qualquer que seja o trabalho. A instauração do Reino exige o esforço responsável e a esperança ativa de todas as pessoas.

O último exemplo usado para alertar os discípulos sobre a imprevisibilidade da vinda do Filho do Homem é aquele, tão conhecido, do dono da casa que não sabe a que hora pode ser surpreendido por um ladrão: «Compreendei bem isso: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada» (v. 43). Essa imagem tornou-se clássica entre os pregadores e escritores do cristianismo nascente (2Ts 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15), como sinônimo de advertência para manter um espírito de vigilância na vida cotidiana, tendo em vista a imprevisibilidade da manifestação do Senhor e a construção contínua do seu Reino. Infelizmente, essa imagem ajudou a criar um certo medo e angústia entre os primeiros cristãos, levando-os até a distorcerem o sentido da vigilância, que corresponde à corresponsabilidade de tornar, cotidianamente, o mundo melhor. Muitos pregadores, ao longo da história, tem se apropriado desta imagem para provocarem terror nas pessoas, inclusive, levando muitas pessoas a colocar a própria saúde em risco, pressionando-as a sacrificar o sono com longas vigílias de oração, repetitivas e sem sentido algum. A verdadeira vigilância se faz no coração. Ora, o que importa é o convite feito aos discípulos para não desanimarem um único instante, como a exortação do último versículo: «Por isso, ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá» (v. 44). Essa vinda coincide com a destruição da ordem opressora vigente, ou seja, o fim do velho mundo, e o estabelecimento do Reino de Deus, por isso, a vigilância é fundamental, pois esse processo exigirá muito empenho de todos os cristãos.

O convite feito por Jesus no Evangelho de hoje é, portanto, que vivamos em estado constante de preparação para o encontro do Senhor, uma vez que ele já veio e precisa apenas ser reconhecido e acolhido. Por isso, é preciso fazer do cotidiano uma constante preparação, ou melhor, preparar-se no cotidiano. Longe de ser uma mensagem de medo, o Evangelho é mensagem de salvação e boa-nova para todos. A “Boa Nova” de hoje é que, sem alarde algum, somos chamados a realizar nossas tarefas cotidianas já na presença dele, tendo em vista que já veio, para que o fazer cotidiano já seja direcionado à instauração do Reino de Deus, com a superação de todas as injustiças e violências que continuam ofuscando a presença do Senhor que já é “Deus conosco”, expressão que orienta o Evangelho de Mateus do começo ao fim (Mt 1,23; 18,20; 28,20).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, novembro 22, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – LUCAS 23,35-43 (ANO C)


A liturgia do trigésimo quarto domingo do tempo comum – o último do ano litúrgico – é celebrada sob o título de “Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo”. As leituras desta festa variam conforme o ciclo litúrgico. Por ocasião do ciclo litúrgico C, o evangelho lido neste ano é Lc 23,35-43, texto que retrata uma das cenas do quadro narrativo da crucifixão de Jesus, revelando o quanto o seu reinado destoa de todos os sistemas de poder experimentados no mundo, ao longo da história. Por isso, a princípio, podemos dizer que o título desta festa pode se tornar até perigoso, uma vez que a tendência natural é imaginar Jesus como um rei semelhante aos reis deste mundo e atribuir-lhe trono, cetro, coroa e poder, como normalmente vem representado em diversas imagens, distorcendo a sua principal característica: o amor intenso e a misericórdia infinita, destinados a toda a humanidade, com clara opção preferencial pelos pobres e todas as categorias de pessoas marginalizadas. De fato, se concebermos Jesus Cristo, Rei do universo, como um homem ou forte, potente, sentado em um trono ornado de ouro, com cetro na mão, ditando normas, julgando e ordenando uma imensidão de serviçais, guerreando, vencendo e subjugando inimigos, estamos imaginando o rei-messias esperado pelos judeus do seu tempo, e rejeitando Jesus de Nazaré, o servo de todos, aquele que veio para servir e não para ser servido. Infelizmente, boa parte do cristianismo acabou caricaturando a realeza de Jesus, atribuindo-lhe os traços de rei que ele mesmo negou possuir.

Mesmo concentrando a nossa reflexão no texto evangélico proposto – Lc 23,35-43 – é oportuno e necessário fazermos uma pequena contextualização histórica sobre a instituição desta solenidade. Trata-se de uma festa relativamente nova, considerando que a maioria das festas da Igreja encontram suas raízes na antiguidade cristã. Esta solenidade foi instituída somente no ano de 1925, pelo papa Pio XI. Aquele era um momento conturbado para a Europa e todo o mundo: a primeira guerra mundial tinha acabado fazia pouco tempo e já se desenhava o cenário da segunda; a ganância pelo poder com as consequências drásticas que desse derivam estavam em efervescência, mais do que nunca. Diversos regimes totalitários se espalhavam pelo mundo. Na época, já estavam consolidados o fascismo na Itália, o socialismo na União Soviética (Rússia), e o nazismo estava em gestação na Alemanha. Também em Portugal e Espanha estavam sendo gerados projetos ditatoriais, consolidados na década de 30. Havia, portanto, muita gente buscando poderes absolutos, querendo ser “senhor do mundo”. Foi nesse contexto que o papa Pio XI instituiu, com muita sabedoria, a solenidade de Cristo Rei, como um lembrete e advertência para aqueles que almejavam o senhorio da história e o domínio do mundo.

Uma vez instituída e consolidada, essa festa não deixa de trazer certos perigos em sua interpretação, como acenamos na introdução. O problema se dá na concepção e representação que se tem feito da realeza de Jesus. Combater os reinos deste mundo para implantar o Reino de Deus não é uma simples substituição na detenção do poder, mas uma mudança radical na forma de conceber o Reino. Assim como Jesus não pretendeu ocupar o lugar de César (o imperador romano), jamais pretenderia também ocupar o lugar de Mussolini, Stálin, Hitler ou qualquer outro dirigente totalitário, como os que ameaçam os regimes democráticos na atualidade. A proposta de reinado (ou Reino) de Jesus é totalmente incompatível com as experiências de poder até hoje experimentadas pela humanidade. Jesus não propõe apenas um mundo diferente deste que tem proporcionado os detentores de poder, mas um mundo totalmente oposto, com relações completamente novas, capazes de gerar paz, justiça e fraternidade. Enfim, ele propõe um mundo novo e exige a colaboração dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos na sua construção. E a exigência básica consiste em viver radicalmente o amor.

Feitas as devidas considerações a nível de contexto histórico da festa, olhemos então para o texto bíblico, o qual descreve Jesus crucificado e a reação de algumas categorias sociais diante dele. Ora, como ele não possuía nenhum traço visível de realeza e messianidade, a maioria das reações eram de desprezo e ridicularização. O cenário da cena é o chamado lugar da Caveira (Lc 23,33) ou gólgota. Essa denominação foi dada ao local por dois motivos: primeiro, porque havia uma grande quantidade de crânios humanos expostos, pois era o lugar oficial das execuções do império romano na Palestina; segundo, porque a própria estrutura rochosa do local recordava uma caveira, de acordo com historiadores, exegetas e arqueólogos. A cena descrita é comum aos quatro evangelhos, sendo que Lucas enriquece seu relato com algumas peculiaridades, como veremos a seguir. Infelizmente, a liturgia apresenta o texto incompleto, omitindo a primeira parte do primeiro versículo, contendo a seguinte afirmação: «O povo permanecia lá olhando» (v. 35a). Essa pequena omissão compromete uma compreensão mais adequada do episódio, considerando a linha teológica de Lucas. Ele atribui um papel de neutralidade ao povo, ao dizer que “estava lá, olhando”, mas não participou do ato violento contra Jesus, nem foi conivente. O povo teve uma posição neutra, mais por impotência do que por conivência. É intenção do evangelista comprometer apenas os grupos que interagem diretamente com Jesus, insultando-o: os chefes (v. 35), os soldados (v. 36) e os malfeitores crucificados com ele (vv. 39-40).

Assim começa o texto proposto pela liturgia: «Os chefes zombavam de Jesus, dizendo: “a outros salvou. Salve a si mesmo se, de fato, é o Cristo de Deus, o escolhido”» (v. 35). Obviamente, os chefes aqui, são as autoridades religiosas e políticas da época, principalmente os sacerdotes e anciãos, responsáveis diretos pela condenação e morte de Jesus. Unindo essa atitude dos chefes à parte neutra, a presença do povo, Lucas opõe os líderes aos liderados, enfatizando que, por causa da atitude dos chefes, o povo inocente e impotente acaba sofrendo graves consequências. Contudo, ele não deixa de fazer uma sutil crítica à passividade do povo: quando esse se cala, os chefes ficam mais à vontade para cometerem arbitrariedades. Quando o povo apenas assiste passivamente, os opressores se tornam ainda mais cruéis. O teor da zombaria, não apenas dos chefes, mas de todos os grupos que zombam de Jesus, é praticamente o mesmo das tentações do diabo, no início do ministério (Lc 4,1-13): zombam ou o tentam exigindo uma demonstração de força ou poder. Com isso, o evangelista ensina que os primeiros aliados do diabo são os detentores de poder e quem se alinha a eles. Também quem condiciona a fé a sinais e milagres segue a mesma linha. O sinal exigido, como demonstração de força, é a salvação para ele mesmo, pois ninguém entende alguém que salva os outros e deixa de salvar a si próprio. E com Jesus é assim: ele prefere salvar os outros, todo o seu ministério foi difundir salvação, fazendo o bem por onde passou, restituindo dignidade, restaurando vidas, promovendo a humanização do mundo. Contudo, com visão limitada e distorcida, os algozes de Jesus concebem a salvação apenas como evitar a morte física.

O segundo grupo, formado pelos soldados, representa todo o aparato militar romano, responsável por silenciar qualquer voz que soasse subversiva. Eram os soldados, inclusive, os responsáveis diretos pela execução da pena. O insulto deles é semelhante ao dos chefes, pois estavam a serviço deles, embora tenha uma conotação mais política: «Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!”» (vv. 36-37). Além do insulto com palavras, os soldados o insultam também fisicamente. Se o vinho, na tradição bíblica simboliza o amor, o vinagre é a negação do amor, representa o ódio. O oferecimento do vinagre da parte dos soldados, aqui, portanto, significa a falta de amor e de um mínimo de compaixão. E é da falta de amor que é gerada toda forma de violência e abuso de poder. Como eram soldados romanos, não tinham conhecimento teológico suficiente, por isso, não zombavam de Jesus como Cristo (Messias), mas apenas como rei dos judeus, ou seja, o consideravam apenas um subversivo político, e não um blasfemo, como interpretavam as autoridades religiosas. Enfim, tinham por base apenas a declaração irônica, colocada sobre a cruz: «Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus» (v. 38). A inscrição posta sobre a cruz fazia parte do rito de execução dos rebeldes, pelo império romano. Além de matar, o império fazia questão de dizer o motivo pelo qual estava matando, para servir de exemplo e intimidar futuros “agitadores”. No caso de Jesus, o motivo principal foi ser declarado rei, um título forjado pelos adversários para provocar a sua condenação. O escárnio dos soldados é também um modo de questionar até que ponto ele era rei, pois parecia não agir em proveito próprio, ao contrário do que fazem os reis deste mundo. Para eles, é inconcebível um rei que não exerça o poder em proveito próprio.

O terceiro grupo que interage com Jesus no momento do seu suplício é composto por companheiros de destino, ou seja, pessoas que também receberam a pena máxima da cruz, provavelmente por acusação de crime de subversão, perturbação da ordem estabelecida ou de assassinato, já que a cruz era pena para uma vasta tipologia de crimes, de quase todos considerados muito graves. De fato, a cruz era o pior suplício de condenação no império romano; era a pena reservada aos que ameaçavam a “pax romana”, tanto por agitação social quanto por assassinato. Somente pessoas consideradas extremamente perigosas recebiam esta pena, como era Jesus para os poderes da época. Segundo a tradição sinótica, “dois malfeitores foram crucificados com Jesus” (Mt 27,38; Mc 15,27; Lc 23,32). Deste dado em comum com os demais evangelhos, Lucas dá uma cara própria ao seu texto, tornando o seu relato muito mais rico teologicamente, passando a utilizar a técnica retórica do paralelismo antitético, que predominou na construção de toda a sua narrativa: a apresentação paralela de dois personagens com atitudes opostas. Ele fez isso com Zacarias e Maria, ao receberem os respectivos anúncios (Lc 1,5-38), entre Marta e Maria (Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso (Lc 15,11-32), entre o pobre Lázaro e o rico avarento (Lc 16,19-31), entre o fariseu e o publicano (Lc 18,9-14), e agora repete o mesmo recurso ao contrapor as posturas dos dois malfeitores (bandidos) crucificados com Jesus. Com essa  técnica, ele visa persuadir o leitor a tomar partido por um dos lados contrapostos.

Eis a maneira como Lucas contrapõe claramente os dois condenados junto a Jesus: «Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”. Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação?”» (vv. 39-40). Aqui, é importante fazer um esclarecimento semântico: para os malfeitores crucificados com Jesus, Lucas não usa um termo equivalente a ladrão, como fazem Mateus e Marcos, mas um termo com significado ainda mais negativo: delinquente, criminoso, o bandido de um modo geral (em grego: κακούργος – kakúrgos). É claro que também os ladrões eram punidos pelo império, mas não necessariamente com a pena máxima, como a cruz, a depender do valor do que haviam roubado. Isso quer dizer que Jesus e seus “colegas” de cruz foram considerados mais perigosos do que ladrões e assaltantes comuns. Cada um dos malfeitores interpretou os acontecimentos de maneira diferente. Enquanto um deles se deixa levar pela ideologia dominante, repetindo o insulto dos chefes e dos soldados, o outro tem uma percepção diferente: reconhece suas culpas e a inocência de Jesus: «para nós é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal» (v. 41). É das palavras de um dos malfeitores manifestando uma confissão de culpa que o texto passa a ser exclusivo de Lucas. A confissão de culpa é o primeiro passo de um processo de conversão. Ora, sendo o evangelista que melhor apresenta os traços misericordiosos de Deus em Jesus, Lucas mostra essa característica divina e humana também no calvário, ao acolher a súplica de misericórdia de um dos malfeitores crucificados com Jesus. É um detalhe próprio de Lucas e muito significativo para a sua teologia, funcionando como síntese. O malfeitor confessa publicamente sua culpa, ao considerar justa a pena recebida, a cruz. Isso o habilita a receber o perdão sem medidas, embora a misericórdia oferecida por Jesus é sempre incondicional, pois seu amor é sem medidas.

O malfeitor arrependido – já podemos chamá-lo assim! – sentiu que, finalmente, encontrou alguém com quem pudesse contar, que olhasse para sua miséria, criando assim uma relação íntima com Jesus, a ponto de chamá-lo pelo nome, sem qualquer traço de formalismo: «Jesus, lembra-te de mim quando entrardes em teu reino» (v. 42). Na tradição bíblica, chamar alguém pelo nome é sinal de intimidade, é conhecer o outro e tê-lo como uma pessoa próxima, um amigo. Assim, finalmente alguém percebeu a verdadeira natureza da realeza de Jesus: um rei tão diferente dos reis deste mundo, a ponto de não necessitar de nenhum título de honra para dirigir-se a Ele, basta chamá-lo pelo nome e ele responde. Assim, o malfeitor arrependido torna-se modelo de convertido para o evangelista Lucas. Ora, a maioria dos interlocutores de Jesus ao longo do evangelho lhe dirigiam a palavra com o título de mestre ou senhor, incluindo os discípulos. Ninguém tinha se sentido tão íntimo, tão amigo e companheiro de Jesus como este bandido. Ao reconhecer a inocência de Jesus, o malfeitor convertido denuncia a injustiça e opressão do império, que condena pessoas inocentes. O malfeitor se torna, assim, o primeiro e único advogado de Jesus durante todo o processo. Os discípulos se distanciaram todos, Pedro até o negou. Somente um bandido, um criminoso confesso teve coragem de advogar a favor de Jesus. Além da intimidade criada entre o malfeitor e Jesus, merece atenção o conteúdo da súplica: «lembra-te de mim» é uma fórmula de oração usada pelos pobres, agonizantes e perseguidos na tradição bíblica do Antigo Testamento (Sl 89,48; 106,4; Jr 15,15). É uma súplica de confiança. O malfeitor convertido foi o único a compreender que o Reino de Jesus não é desse mundo, pois sabia ele que, como condenado, jamais teria espaço em um reino desse mundo, por isso, pediu que Jesus se recordasse dele no seu reino. Portanto, o malfeitor elevou uma súplica de confiança e mostrou capacidade para compreender que um reino diferente dos reinos desse mundo é possível e, finalmente ele tinha encontrado, pois estava diante de um rei que não salva a si mesmo mas salva os outros!

E, àquele que reconhece a verdadeira natureza da sua realeza, Jesus a manifesta plenamente: «Em verdade, te digo, hoje estarás comigo no paraíso» (v. 43). Essa é a única vez que aparece a palavra paraíso (em grego: παραδείσω – paradeísso) nos evangelhos. A origem do termo é persa, e significa jardim, um lugar com todas as condições para a vida em abundância; correspondente ao projeto originário da criação. Daí, a reviravolta: o lugar que Deus ofereceu à humanidade na criação, antes do pecado entrar no mundo, Jesus oferece a um pecador extremo. Outro pormenor importante da teologia lucana é que a salvação se realiza já no hoje da história, afastando a ideia de um futurismo incerto e utópico. De fato, o termo hoje (em grego σήμερον – semeron), é muito relevante para Lucas: aos pobres pastores é anunciado que “nasceu hoje um salvador” (Lc 2,11), na sinagoga de Nazaré, Jesus diz que “as escrituras se cumpriram hoje” (Lc 4,21); a Zaqueu Jesus diz que quer “permanecer hoje na sua casa” e que “hoje a salvação entrou nessa casa” (Lc 19,5.9), e é “hoje” que ele quer estar com um bandido convertido no paraíso, o lugar pensado por Deus como morada da humanidade, antes do pecado entrar no mundo. Estar junto significa viver em comunhão profunda. Ao ser condenado à cruz, assim como o próprio Jesus, aquele malfeitor foi descartado da sociedade, tratado como escória, deveria ser eliminado, como indica a morte na cruz; ao prometer estar com ele no paraíso, Jesus ratifica a sua missão de ter vindo ao mundo para buscar e salvar o que estava perdido (Lc 19,10).

Portanto, é com urgência que o Reino de Deus é apresentado no Evangelho de Lucas. Infelizmente, nem todos o reconhecem e o acolhem. Na verdade, somente os pecadores, pobres e humilhados demonstram, no decorrer do evangelho, capacidade para tal reconhecimento. Para esses, a salvação não pode ser adiada, é necessário que aconteça logo hoje, agora. Uma vez que a realeza de Jesus se revela na cruz, no ápice da humilhação, fica difícil reconhecê-la, de modo que, até hoje, continua sendo mal compreendida e ensinada. O triunfalismo real alimentado por séculos pela tradição judaica acabou sendo disseminado também entre muitos cristãos que insistem em adorar um Cristo Rei com insígnias reais que jamais Ele aceitaria. E foi, exatamente na cruz onde sua realeza se manifestou tão claramente ao deixar de salvar a si para salvar a um pecador visto como caso perdido, e à humanidade inteira.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 15, 2025

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 21,5-19 (ANO C)

 


Após dois domingos seguidos de interrupção, por ocasião da comemoração dos fiéis defuntos e da solenidade de dedicação da basílica de São João de Latrão, retoma-se a liturgia dos domingos do tempo comum, celebrando-se hoje o Trigésimo Terceiro, que já é o penúltimo do ano litúrgico. Com isso, retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, igualmente interrompida. Como se sabe, a reta final do ano litúrgico é sempre marcada pela leitura de textos do gênero literário apocalíptico, como acontece neste domingo. O evangelho proposto para este dia é tirado do discurso escatológico de Jesus no Evangelho de Lucas – Lc 21,5-19. Por tratar-se de um texto bastante longo, não comentaremos versículo por versículo. Procuraremos colher a mensagem central do texto, embora seja necessário destacar e aprofundar alguns versículos específicos, conforme a importância que ocupam no desenvolvimento do discurso. Recordamos que o discurso escatológico de Jesus está presente nos três evangelhos sinóticos (Mt 24–25; Mc 13,1-37; Lc 23,5-38). A versão de Lucas parece ser a mais sóbria, provavelmente porque ele já tinha antecipado alguns elementos típicos desse discurso na ampla catequese do caminho para Jerusalém, principalmente quando mostrava Jesus insistindo com o tema da oração associado ao da vigilância (Lc 12,35-59; 17,20–18,8) E a vigilância é um dos temas predominantes do discurso escatológico. O contexto narrativo deste discurso é o ministério de Jesus em Jerusalém, após um longo caminho, desde a Galileia até a entrada na grande cidade.

Ainda a nível de contexto, é importante fazer algumas considerações sobre o gênero literário ao qual pertence o evangelho de hoje e todo o discurso escatológico. Trata-se do gênero “apocalíptico”, adjetivo derivado do substantivo “apocalipse” (em grego: ἀποκάλυψις – apocalýpsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”. O gênero apocalíptico é bastante empregado na Bíblia, nos dois testamentos, mas tem sido muito distorcido ao longo da história, passando a ser tratado como sinônimo de catástrofes e desastres, causando medo nas pessoas, quando, na verdade, comporta uma linguagem usada pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência às comunidades destinatárias. Logo, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. Já o adjetivo “escatológico”, esse deriva da palavra grega “éskaton” (ἔσχατον), que significa fim, diz respeito às realidades últimas. Porém, ao falar de fim, os evangelistas pensam em dois sentidos: fim como supressão de tudo o que impede a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.

A mensagem do evangelho de hoje aponta para os dois sentidos: é preciso dar fim a um mundo injusto, tendo como finalidade o surgimento de um mundo novo, plenamente humanizado pelo amor. Infelizmente, a maioria das interpretações têm estimulado uma concepção de fim enquanto extermínio, marcado por uma sequência de catástrofes, o que termina inculcando medo nas pessoas e levando-as a um fundamentalismo extremo. Na verdade, Jesus está anunciando a transição entre os dois reinos ou dois mundos: o mundo vigente, marcado por violência, ódio, injustiças, e o Reino de Deus, no qual prevalecerá o amor e a justiça, com igualdade e vida abundante, marcado pela plena humanização. Por isso, não se trata de um mundo para o além, apenas, mas de criar neste mundo as condições necessárias para o projeto de Deus se realizar já aqui, com justiça, igualdade e fraternidade. Obviamente, pelos contrastes abissais entre os dois mundos, a transição deverá ser marcada por inevitáveis conflitos, tendo em vista que o advento do Reino de Deus pressupõe a superação de todas as forças e mecanismos que o obstaculizam. Por isso, Jesus previne e encoraja os seus discípulos para a inevitável tensão no período de transição e os consequentes perigos. E os discípulos não devem sossegar enquanto não vivenciarem essa transformação que, mesmo sendo dom de Deus, depende do empenho e da colaboração de todos os homens e mulheres que derem adesão ao programa de Jesus.

Feitas as devidas considerações sobre o contexto, olhemos então para o complexo texto que nos é proposto. A cena transcorre nas dependências do templo de Jerusalém, ambiente de decepção para Jesus, considerando que, de “casa de oração”, fora transformado em “covil de ladrões”, conforme ele denunciou anteriormente (Lc 19,45-46). Em Marcos e Mateus, no entanto, esta cena está situada no monte das Oliveiras (Mc13,3; Mt 24,3). Ao situá-la no próprio templo, Lucas enfatiza ainda mais a oposição de Jesus à instituição religiosa vigente, mostrando que era urgente que ela fosse abolida, ou seja, destruída. Eis o texto: «Algumas pessoas comentavam a respeito do Templo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votivas» (v. 5). Ora, o Templo de Jerusalém era uma construção magnífica, uma obra faraônica, considerado uma das maravilhas do mundo na época, por isso, chamava a atenção de todas as pessoas que o viam, e podia ser visto de longe, devido à sua alta localização. Como estava na semana da Páscoa, conforme o contexto narrativo do evangelho, aquele ambiente já estava bastante movimentado, com a presença de muitos peregrinos de diversas partes do mundo. Muitos desses peregrinos, provavelmente, estavam lá pela primeira vez. Por isso, a admiração de alguns, que poderiam ser discípulos de Jesus, inclusive. De fato, em Marcos e Mateus são os discípulos mesmos que expressam tal admiração (Mc 13,1; Mt 24,1).

O templo de Jerusalém foi construído, destruído e reconstruído mais de uma vez. Na época de Jesus, estava de pé a construção de Herodes, considerada pelos historiadores como a mais luxuosa de todas, superando até a primeira construção, que tinha sido obra de Salomão. Além de símbolo da identidade de Israel, para os judeus, o templo representava a certeza da presença de Deus no meio deles. Por isso, era o maior motivo do orgulho nacional deles. Quem passava por Jerusalém se admirava com a beleza e o esplendor do templo, por isso, eram muito comuns os elogios como esse dos interlocutores de Jesus. Por sua vez, Jesus via o templo sob outra perspectiva. Ele sabia que o principal entrave para o advento do mundo novo que ele almejava – o Reino de Deus – era exatamente a manipulação religiosa com todas as injustiças que dela derivavam, como a conivência e até conluio com o sistema político e econômico. E era isso o que acontecia em Israel. O esplendor do templo era consequência direta da exploração ideológica e econômica. Além dos altos impostos cobrados pelo império romano, o povo era obrigado a pagar taxas também ao templo. “As belas pedras” que o enfeitavam eram consequência de grande exploração, inclusive das pessoas mais necessitadas, como as viúvas pobres (Lc 21,1-4). E, além dos adornos do templo, a exploração e manipulação religiosa mantinha também todos os privilégios das classes dirigentes de Israel, como os sacerdotes. Por isso, o templo de Jerusalém, para Jesus, era a primeira instituição a ser destruída, para aparecerem os primeiros sinais do mundo novo. Daí, a sua resposta objetiva e clara: «não restará pedra sobre pedra» (v. 6b). Com essa expressão, ele externa seu total descontentamento com aquela instituição, dizendo que não há nada a se aproveitar dela: deve ser exterminada o quanto antes. Com toda certeza, o anúncio da destruição do templo revela a necessidade de uma nova concepção de culto e de relação com Deus.

É claro que o anúncio da destruição do templo causou espanto e desconforto nos interlocutores de Jesus. Para quem usufruía daquela estrutura, esse anúncio significava ameaça e perda de privilégios; para quem era vítima da estrutura, significava esperança de libertação. Para os judeus mais devotos, era uma grande blasfêmia, pois, sendo o templo a morada de Deus na terra, sua destruição significava o distanciamento de Deus. Para Jesus, pode ter sido uma causa a mais para a sua iminente condenação à morte na cruz. Por isso, os questionamentos dos seus interlocutores são compreensíveis e inevitáveis: «Quando acontecerá isso? Qual o sinal de que estas coisas estão para acontecer?» (v. 7). A perguntas desse gênero, Jesus responde com muita cautela e precisão, embora não diga quando, pois não é competência sua, nem se trata de algo relevante. O que ele pede, na verdade, é que seus discípulos não se apavorem com os acontecimentos que refletem os antigos sinais do fim dos tempos, preditos ao longo da história de Israel pelos profetas: guerras, revoluções e catástrofes naturais, como terremotos e pestes (vv. 9, 10, 11). A estes fenômenos e acontecimentos, ele aponta outro perigo, mais grave, até: a manipulação de seu nome por falsos pregadores e espertalhões que predizem, sem fundamentação alguma, o final dos tempos e apresentam-se como conhecedores das realidades futuras: «Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome dizendo: “Sou eu!” e ainda: “O tempo está próximo”. Não sigais essa gente» (v. 8). Como se vê, ele pede para a comunidade não se deixar enganar por esse tipo de gente que continua presente nos tempos atuais, talvez até com mais astúcia. E essa é a primeira advertência de Jesus: é preciso ter cuidado com as pessoas que usam o seu nome, apresentando-se como ele mesmo ou como seus mensageiros mais autorizados! As pessoas mais perigosas, para Jesus, são aquelas que provocam medo nas pessoas em seu nome, são aquelas que se apresentam como seus representantes, para fazer o mal, para explorar os outros e distorcer sua mensagem.

Na sequência, Jesus chama ainda mais a atenção dos seus discípulos para as consequências da fidelidade ao seu projeto de construção de um mundo novo: uma sociedade alternativa baseada em novos valores e princípios. Obviamente, o advento de um mundo novo requer a superação de um mundo antigo, o que exige a substituição dos valores tradicionais, cultivados pela sociedade e a religião do tempo de Jesus, pelos valores que compõem o seu Evangelho. Eis porque os conflitos se tornam inevitáveis: quem aceitar o Evangelho com seus valores, rejeitará os princípios da antiga ordem estabelecida, mantida pela aparelhagem ideológica da religião e do estado. Tais consequências culminam com as perseguições nos mais diversos âmbitos: religioso, político e até familiar. Quanto às perseguições, que muitos viam como o fim dos tempos, Jesus as apresenta como meios que conduzirão o mundo ao seu verdadeiro fim (finalidade): são sinais de que o Reino de Deus se aproxima. De fato, a fidelidade de seus discípulos será medida pela reação de três instituições a eles: a religião, o poder político e a família. Por isso, Jesus diz que os seguidores do seu Evangelho serão perseguidos e entregues às sinagogas (v. 12), prova de que sua mensagem desmascarava a religião institucional de seu tempo; serão conduzidos diante de reis e governadores (v. 12), sinal da oposição radical entre o Reino de Deus e os poderes políticos vigentes; e serão entregues e mortos até mesmo pelos próprios familiares (v. 16), o sinal de que até mesmo a instituição familiar tradicional é abalada pela mensagem renovadora e libertadora de Jesus.

Diante de uma proposta tão exigente e ousada, Jesus faz um forte apelo à fidelidade e à perseverança dos seus discípulos, encorajando-os a não desanimarem diante das adversidades. Antes de tudo, Ele garante que, quando estas coisas começarem a acontecer, os discípulos terão a oportunidade de dar testemunho da fé nele (v. 13). Ora, testemunho, em grego “martyrion” (μαρτύριον), significa testemunhar e assumir as consequências desse testemunho, dando a vida se for preciso, como Jesus mesmo prevê (v. 16b). Ele aconselha os discípulos também a confiarem plenamente nele, sem preocupações com o que dizer e o jeito de se defenderem diante das perseguições (vv. 14-15). Basta confiar e testemunhar. E é inevitável que, testemunhando Jesus, os discípulos estarão alimentando o ódio daqueles que querem permanecer ligados às antigas instituições e fechados à novidade do Evangelho. Porém, Jesus garante que o mais importante – a vida – será preservada em sua plenitude: «não perdereis um só fio de cabelo de vossa cabeça» (v. 18). Ora, o fio de cabelo significava a menor parte da vida de uma pessoa na mentalidade hebraica; assim, Jesus diz que a vida do discípulo e discípula que perseverar no testemunho corajoso do seu Evangelho será ganha em sua totalidade e abundância. Por isso, a palavra-chave de todo o texto é “perseverança”, embora a tradução litúrgica a tenha substituído pela expressão “permanecendo firmes” (v. 19). Mas, “perseverança” (em grego: ὑπομονῇ - hipomonê), além de traduzir mais adequadamente o termo grego, expressa melhor a atitude que Jesus espera dos discípulos: uma espera com esperança e luta, que não comporta comodismo, nem desânimo; uma espera com disposição e esforço, transformando a pessoa que espera em agente de transformação e libertação.

É, portanto, urgente e necessário conceber a adesão ao ensinamento de Jesus como ruptura com as estruturas e instituições tradicionais para, de fato, testemunhar, de modo livre e novo, os valores que seu Evangelho comporta. É urgente que abracemos seu projeto de mundo novo, caracterizado por novas relações em todos os âmbitos da vida, motivadas única e exclusivamente pelo amor, deixando para trás todas as experiências ultrapassadas, mesmo que usem o nome de Deus, como usava o esplêndido templo de Jerusalém, o qual não merecia outro destino, senão a destruição completa. Por isso, temos a certeza de que Jesus pregava o fim de um mundo antigo insustentável, tendo como finalidade a construção de um mundo novo, humanizado baseado nos valores do seu Evangelho. E, recordando a jornada mundial dos pobres, instituída pelo Papa Francisco, é importante que o primeiro fruto da transformação desejada por Jesus seja um mundo inclusivo, justo e fraterno.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 08, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA DEDICAÇÃO DA BASÍLICA DE SÃO JOÃO DE LATRÃO (CATEDRAL DE ROMA) – JOÃO 2,13-22

 


Neste ano, a liturgia do trigésimo segundo domingo do Tempo Comum é substituída pela Solenidade da Dedicação da Basílica de São João de Latrão, a catedral de Roma. A precedência sobre o domingo expressa a importância desta solenidade para toda a Igreja. De fato, a Basílica de São João de Latrão, em Roma, é a igreja “mãe de todas as igrejas”. É a verdadeira catedral da Diocese de Roma, cujo bispo é o papa. Foi consagrada no ano 324, pelo Papa São Silvestre I, sendo dedicada inicialmente ao Santo Salvador. Alguns séculos mais tarde, sua dedicação estendeu-se também aos santos de nome João: o Batista e o Evangelista, dando origem ao título atual. Latrão – Laterano em italiano e latim – é o nome da família proprietária do terreno onde a igreja foi construída. Como em todas as dioceses a igreja catedral constitui o verdadeiro centro de unidade, assim é a Basílica de São João do Latrão para o mundo inteiro. Isso faz desta solenidade um sinal forte da comunhão universal da Igreja. Com ela, recordamos que vivemos uma só fé e uma só esperança, unidos pelo mesmo amor. Paradoxalmente, o evangelho escolhido para esta solenidade é Jo 2,13-22, o relato do episódio em que Jesus expulsa os vendedores e cambistas do templo de Jerusalém. Na ocasião, ele decreta a abolição dos templos de pedra, propondo à humanidade uma nova maneira de relacionar-se com Deus, cujo modelo é a sua própria relação com o Pai, marcada pelo amor e a comunhão plena.

Alguns elementos do contexto são essenciais para uma boa compreensão do texto. De início, recordamos que esse é um dos poucos episódios da vida de Jesus narrado pelos quatro evangelistas. Não resta dúvidas de que esse dado atesta a importância do episódio e a alta probabilidade de corresponder a um fato real da vida de Jesus, o que não o isenta de ser revestido de elementos simbólicos pelos evangelistas, conforme as necessidades catequéticas de suas respectivas comunidades. Chama a atenção a localização do episódio no Quarto Evangelho: logo no começo do livro e, por conseguinte, no início do ministério de Jesus, enquanto nos sinóticos aparece já na parte final, na chamada “última semana”, vivida em Jerusalém (Mt 21,12-16; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46). Ora, João apresenta Jesus participando de três festas de Páscoa, em Jerusalém, enquanto nos sinóticos registra-se apenas uma participação, na qual ele fora condenado e morto. O motivo da antecipação em João se deve ao caráter programático da cena: se trata do episódio que melhor descreve a proposta de ruptura de Jesus com as instituições de Israel. Essa ruptura é essencial para a inauguração de um novo tempo, com um jeito novo de relacionar-se com Deus. E o inteiro ministério de Jesus será uma demonstração desse novo relacionamento.

A nível de contexto, o mais importante, porém, é associar este episódio ao relato que lhe precede no Evangelho: as bodas de Caná (Jo 2,1-12). A transformação da água em vinho, ali, representou a passagem da Lei para o amor, da letra para o Espírito, antecipando a substituição da antiga pela nova aliança. E assim como não combina «vinho novo em odres velhos» (Mt 9,14-17; Mc 2,18-22; Lc 5,33-39), também não combina aliança nova e culto antigo. Por isso, após inaugurar a nova aliança, Jesus parte para instaurar um novo culto, e isso exigia a supressão do antigo em sua máxima expressão visível: o magnífico templo de Jerusalém. Foi por causa dessa relação que João transferiu esse episódio para o início do ministério de Jesus, adequando as tradições recebidas às suas intenções teológicas e catequéticas, as quais refletem a necessidade da sua comunidade. Portanto, conforme a dinâmica narrativa e teológica do Evangelho de João, o texto de hoje é o complemento das bodas de Caná. Aquele culto mercantilizado e separado da vida não permitia que se sentisse o sabor do novo vinho: o amor do Pai manifestado no Filho. Logo, as bodas de Caná e o episódio lido hoje constituem a introdução e síntese de todo o programa de Jesus, que visa estabelecer uma nova maneira de relacionamento entre Deus e a humanidade.

Olhemos, então para o texto, começando do primeiro versículo: «Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém» (v. 13).  Com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista já faz uma importante advertência: aquela Páscoa já não pertencia mais a Deus, tinha perdido a sua sacralidade; era uma Páscoa dos homens, era apenas uma festa religiosa, na qual Deus já não era mais o centro. É importante recordar que, ao longo do seu Evangelho, João usa o termo “judeus” para designar a hierarquia religiosa, e não o povo judeu em si, ao qual pertencia Jesus e as primeiras gerações de seus seguidores e seguidoras. Com isso ele diz que a classe dirigente da religião sediada no templo tinha se apoderado do que é de Deus e, portanto, a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus deveria distanciar-se daquela instituição. A Páscoa do Senhor tinha sido desvirtuada, transformada em Páscoa dos sacerdotes, dos comerciantes e cambistas. Logo, não era mais de Deus, e o evangelista adverte a sua comunidade e os leitores de todos os tempos. Subir a Jerusalém significa o deslocamento feito pelas pessoas até lá, sobretudo para quem ia da Galileia, como Jesus. É também uma referência à localização da cidade na região montanhosa da Judeia.

Ao chegar em Jerusalém, Jesus se enfurece porque no espaço considerado mais sagrado de Israel – o templo –, ele não encontrou o que deveria encontrar: «No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados» (v. 14). Ora, o que deveria ser encontrado no templo era pessoas de coração sincero, adoradores e adoradoras de Deus. Nesse versículo está o retrato de uma religião degenerada, transformada em mercado. Os animais mencionados, bois, ovelhas e pombas, eram comercializados no recinto sagrado para serem oferecidos em sacrifícios pelos pecados do povo, que a própria religião determinava. A variedade de animais, de bois a pombas, quer dizer que nenhuma classe social escapava, ou seja, ricos e pobres, aproximando-se do templo, eram praticamente obrigados a compactuar com o sistema, comprando animais para oferecer em sacrifício. Geralmente, esses animais pertenciam às famílias dos próprios sacerdotes que constituíam a aristocracia da época. A presença dos cambistas evidencia, ainda mais, o completo desvirtuamento do templo: o sistema econômico funcionava sob as bênçãos da religião; banco e altar conviviam em harmonia no mesmo lugar. O templo possuía um verdadeiro sistema econômico, com moeda própria e as ofertas em dinheiro só eram aceitas nessa moeda. Por isso, quem levava a moeda do império romano ou moedas estrangeiras deveria fazer o câmbio na entrada, certamente pagando altas taxas. Por isso havia cambistas lá.

A situação encontrada por Jesus no templo era inaceitável. Por isso, sua atitude foi bastante dura: «Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas» (v. 15). João é o evangelista que mais enfatiza a postura furiosa de Jesus; somente ele faz referência ao chicote de cordas, um dos elementos mais significativos da cena. Mais do que a descrição de um gesto, o evangelista quer evidenciar a postura e o sentimento de Jesus diante de uma religião exploradora. A comercialização do sagrado, independentemente da época e do lugar, deixa Jesus enfurecido, inconformado. Com esse gesto ele propõe que toda estrutura de exploração deve ser desestabilizada, destruída, ainda mais quando essa se apoia no nome de Deus. Esse gesto se configura também como uma ação simbólica típica dos profetas do Antigo Testamento. Quando as palavras não eram suficientes, eles cumpriam gestos e ações, tanto para anunciar quanto para denunciar. Porém, em relação ao culto, os profetas ousaram denunciar com palavras (Is 1,10-20; Am 5,21-23), enquanto Jesus foi muito além, passando das palavras à ação. A crítica ao culto mercantilizado sempre foi uma das principais causas dos profetas. E Jesus assume essa linha, ao cumprir esse gesto.

Das categorias de vendedores, o evangelista faz questão de destacar uma delas: «E disse aos que vendiam pombas: “Tirai isso daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!”»  (v. 16). O evangelista não mostra Jesus dirigindo a palavra aos outros vendedores, mas apenas cumprindo o gesto. Aos vendedores de pombas ele repreende também verbalmente, dando-lhes uma ordem. Ora, as pombas eram a matéria do sacrifício que os pobres ofereciam; por isso, a ordem é severa “tirai isso daqui!”. Como em qualquer sistema injusto, eram os pobres os mais afetados pela exploração. Quem comprava as ovelhas e bois eram os peregrinos mais abastados; também eles eram explorados, mas Jesus tem mais urgência em combater a exploração dos pobres. Por isso, os primeiros comerciantes denunciados diretamente foram aqueles que vendiam para os pobres. Custava para Jesus ver a casa do Pai transformada em comércio e, consequentemente, Deus transformado em mercadoria. Diante disso, os pobres terminavam sendo as verdadeiras vítimas sacrificadas, pois eram eles os mais explorados. Por isso, a solução ali não seria purificar o templo, mas suprimi-lo, acabar completamente com aquele sistema injusto e explorador.

A motivação para Jesus agir dessa forma é muito clara: o zelo pela casa do Pai: «Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: “O zelo por tua casa me consumirá”» (v. 17). O que é recordado pelos discípulos, segundo o evangelista, é uma citação do Salmo 69,10. De fato, toda a ação de Jesus em seu ministério, e mais ainda na perspectiva de João, será motivada pelo incansável zelo pelas coisas do Pai, sobretudo pelo ser humano que tinha sua dignidade roubada por um sistema tão injusto e explorador como tinha se tornado o templo de Jerusalém. O “zelo pela casa” significa muito mais do que uma preocupação cultual ou apego a uma construção. É zelo pela habitação de Deus, que os judeus queriam delimitar à estrutura do templo, mas Jesus sabia muito bem onde Deus realmente estava. Esse zelo que o consume expressa, acima de tudo, o seu amor pelo ser humano, morada privilegiada de Deus. Ele foi tão “consumido” por esse zelo, a ponto de ter sido condenado por isso. De fato, o processo que será movido contra ele pelas autoridades políticas e religiosas da época, será consequência de suas opções radicais em favor daquilo que o Pai deseja: amor, justiça, fraternidade, dignidade, misericórdia e paz para todo o gênero humano. Para Jesus, a verdadeira casa de Deus é a pessoa humana. E toda vez que uma pessoa é injustiçada e explorada a casa de Deus está sendo profanada.

Diante do que estavam vendo, e inconformados com aquilo, «os judeus perguntaram a Jesus: “Que sinal nos mostras para agir assim?”» (v.18). Aqui novamente a expressão “os judeus” significa os dirigentes, os quais não aceitavam ser questionados, pois isso implicava em perda de credibilidade e de privilégios. Ainda quando o questionador era um simples galileu, como Jesus, sem nenhum sinal distintivo de messianidade. Os judeus pediam sinais, ou seja, credenciais que autorizassem Jesus a agir daquela maneira. Jesus poderia reivindicar a seu favor o pensamento de tantos profetas que ao longo da história já tinham identificado aquele culto como obstáculo para o encontro com o Pai (Is 1,10-20). Mas preferiu falar do futuro, das realidades novas que estavam para ser inauguradas: a supressão definitiva daquele falso culto, o qual estava com os dias contados, e sua ressurreição como instauração definitiva do novo culto, verdadeiro e sincero: «Destruí este Templo, e em três dias eu o levantarei» (v. 19). Obviamente, as pessoas que ouviram essa declaração se admiraram, sem compreender. Até mesmo os discípulos só compreenderam após a ressurreição (v. 22). Os judeus, inconformados com tudo o que estavam vendo, ainda questionaram o sentido da declaração de Jesus: «Os judeus disseram: “Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?”» (v. 20). Como se percebe, o pensamento deles é todo voltado para o que é material, por isso não compreendiam o gesto nem as palavras de Jesus, como, aliás, faziam questão de demonstrar a incompreensão e oposição aos gestos e palavras de Jesus ao longo de todo o seu ministério.

Além da mentalidade fechada, a incompreensão das autoridades dos judeus em relação à desproporcionalidade entre os mais de quarenta anos de construção do templo e a proposta de Jesus de levantá-lo em três dias expressa um dos recursos literários mais caros ao evangelista João: o mal-entendido. Contudo, todos os recursos retórico-literários empregados nos evangelhos estão a serviço da mensagem teológica e espiritual dos respectivos textos. O mal-entendido mostra que os interlocutores de Jesus compreendem suas palavras ao pé da letra, por isso ficaram perplexos, enquanto ele quis revelar uma realidade espiritual mais profunda, como explica o evangelista, na sequência: «Mas Jesus estava falando do Templo do seu corpo» (v. 21). O questionamento foi feito pelos judeus, mas a incompreensão naquele momento estava também nos discípulos, embora esses não tivessem coragem de questioná-lo. Eles só compreenderam as palavras de Jesus após a ressurreição: «Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele» (v. 22). O mistério pascal ilumina os acontecimentos, dando vida nova. A Páscoa de Jesus faz o que era velho tornar-se novo, inclusive suas palavras. É, portanto, à luz do mistério pascal que devem ser lidos todos os escritos do Novo Testamento.

O culto autêntico, compatível com a nova aliança celebrada no amor, já não necessita de templos de pedras, mas apenas de corações sinceros que busquem e adorem a Deus em espírito e em verdade, como Jesus dirá posteriormente, no encontro com a mulher samaritana (Jo 4,23). Aquele templo de pedras, imponente e faraônico, ao invés de aproximar, distanciava as pessoas de Deus; por isso, deveria ser destruído. Enquanto isso, um templo novo e definitivo estava para ser inaugurado, graças à ressurreição de Jesus (vv. 21-22), como vitória definitiva da vida sobre a morte. Com isso, a vida em plenitude, o culto por excelência agradável a Deus, se torna acessível a toda a humanidade, sem mais a necessidade de sangue de animais e ofertas, mas a partir do coração de cada um. Os sinais e gestos proféticos de Jesus chamavam a atenção, obviamente, afinal muitos em Israel esperavam por um Messias corajoso para reformar a religião e a vida social do país. 

O evangelho de hoje, portanto, nos convida a uma profunda revisão de nossas práticas religiosas. Ele denuncia toda forma de instrumentalização do sagrado e nos chama a construir uma Igreja que seja verdadeiramente casa do Pai, onde todos se sintam acolhidos e respeitados. Jesus não veio apenas para corrigir abusos, mas para inaugurar uma nova forma de se relacionar com Deus, baseada no amor, na liberdade e na verdade. É preciso conciliar a recordação de uma igreja templo tão importante para o mundo cristão com a reflexão sobre o fazer-se templo do Senhor.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, novembro 01, 2025

REFLEXÃO PARA A COMEMORAÇÃO DE TODOS OS FIÉIS DEFUNTOS – LUCAS 12,35-40


Neste ano, a liturgia do trigésimo primeiro domingo do Tempo Comum é substituída pela comemoração de todos os fiéis defuntos, devido à coincidência do dia dois de novembro com o domingo equivalente. A oração pelos fiéis defuntos constitui uma prática antiga na vida da Igreja, pois está diretamente relacionada à esperança na vida eterna, cujo fundamento é a ressurreição de Jesus Cristo, princípio fundante da fé cristã. Trata-se, portanto, de uma prática que remonta às origens do cristianismo, com fortes raízes em várias correntes do judaísmo, como atesta a Bíblia em seus dois testamentos. A tradição desta celebração um dia após a comemoração de todos os santos surgiu na França, precisamente na Abadia de Cluny, no ano 998 e, logo após a aprovação oficial pela Igreja, espalhou-se rapidamente por toda a Europa e o mundo. O motivo principal desta celebração é a esperança, como recordam as leituras empregadas. Por sinal, a liturgia oferece várias opções de textos bíblicos para compor a liturgia da Palavra deste dia, independentemente do ciclo litúrgico vigente. Para a nossa reflexão, optamos por Lc 12,35-40, devido ao maior uso dele nas comunidades do Brasil, neste ano, como indicado nos subsídios da CNBB.

O contexto da passagem escolhida – Lc 12,35-40 – é a ampla seção do caminho de Jesus para Jerusalém, acompanhado de seus discípulos (Lc 9,51–19,28). Faz parte de uma subseção na qual Jesus adverte seus discípulos acerca das exigências que o seu seguimento comporta (Lc 12,22-53). De tais exigências, o evangelho de hoje ressalta a necessidade da vigilância e a responsabilidade enquanto se vigia. A princípio, chega a ser surpreendente a localização desse tipo de ensinamento ainda no início do caminho para Jerusalém, pois se trata de um tema escatológico, mais apropriado para a fase final do ministério de Jesus em Jerusalém, já próximo à sua morte, como fazem Marcos e Mateus, ao inserir parábolas tematicamente próximas (Mc 13,32-37; Mt 24,42-51). Somente no Evangelho de Lucas esse tema é proposto de modo tão antecipado. Na verdade, ao propor esse tipo de ensinamento logo na etapa do caminho, o evangelista Lucas indica a importância do tema e a necessidade de mantê-lo em evidência no dia a dia da comunidade, ensinando que a vigilância não é uma atitude a se tomar no final da vida, e sim durante toda a existência. A vida cristã exige que se pratique a vigilância e se prepare cotidianamente para o encontro definitivo com o Senhor.

Feita a devida contextualização, olhamos para o texto, partindo do primeiro versículo, no qual vem expresso o seguinte imperativo: «Que os vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas» (v. 35). O emprego do modo imperativo indica a importância e a urgência do que está sendo ensinado. Logo, se trata de uma exigência indispensável na vida cristã. Obviamente, o ensinamento se dá por meio de uma linguagem simbólica, com o emprego de imagens muito acessíveis aos ouvintes de Jesus e aos primeiros destinatários do Evangelho de Lucas. Mediante essa expressão, o evangelista descreve a atitude de quem se encontra em estado de serviço, antes de tudo. E a disponibilidade de servir é a primeira atitude que se espera de uma pessoa cristã. Ora, a vestimenta básica da época era a túnica; essa não facilitava o serviço, pois atrapalhava o movimento. A expressão “os rins cingidos” quer dizer estar com a túnica levantada até a cintura, posição dos rins, presa ao cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que as pessoas ficavam enquanto trabalhavam ou viajavam. Significa estar pronto para caminhar e servir. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo tempo serviçal. Seus discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das “lâmpadas acesas”; mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido” que Jesus lavou os pés dos discípulos na última ceia (Jo 13,4-5). Também os hebreus celebraram a primeira Páscoa assim: «E comereis assim: com a cintura cingida, as sandálias nos pés» (Ex 12,11a). Diante disso, percebe-se uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a comunidade a manter-se constantemente em espiritualidade pascal. Isso se confirma pela continuação do ensinamento, no qual se diz que quando o senhor voltar da festa de casamento fará os servos sentarem-se à mesa, e ele mesmo os servirá (v. 37). Trata-se de uma atitude surpreendente para quem é senhor.

O ensinamento continua com mais um imperativo, no qual a linguagem simbólica é empregada de modo ainda mais intenso: «Sede como homens que estão esperando seu Senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater» (v. 36). Na Bíblia, a imagem da festa de casamento é sempre representativa da relação entre Deus e a humanidade, levada à plenitude por Jesus. Nesta passagem específica, ela significa todo o mistério pascal – paixão, morte, ressurreição e ascensão de Jesus. É, portanto, dessa festa que os homens – a humanidade – devem esperar a volta de seu senhor. A volta, aqui, portanto, é a parusia (παρουσία), termo grego empregado pelo cristianismo para descrever e sintetizar o retorno definitivo do Senhor Jesus, cujo momento preciso – dia e hora – é absolutamente desconhecido. E a necessidade da vigilância permanente se dá exatamente porque ninguém sabe o dia e nem a hora em que o Senhor vai voltar. A maneira de esperar a sua volta, conforme sua mensagem e sua vida, é vivendo à sua maneira, sobretudo no jeito de amar. Não há prática devocional que substitua o amor enquanto credencial para o encontro definitivo com o Senhor. Enquanto se espera, portanto, é necessário que, todos os dias, se abra a porta para ele, que bate continuamente, apresentando-se com diversas características, sendo que a mais típica e própria dele é a pessoa necessitada. Somos vigilantes quando, humanizados por seu amor, nos tornamos instrumento de humanização para o próximo, o mundo. Fazer isso é abrir a porta para ele. Por sinal, a porta não aparece explicitamente no texto em grego, a língua original do Evangelho. Certamente, para o ouvinte e leitor não se confundir, imaginando a porta física de uma casa. O que se deve abrir, portanto, é o coração, para o Senhor entrar e morar na vida da pessoa. Para isso, não é necessário esperar um momento imprevisível e desconhecido, pois todos os dias ele bate em nosso coração, desejando entrar e morar. Entrando, ele transforma, renova a pessoa.

Na continuidade, o ensinamento se torna ainda mais surpreendente, com uma pequena parábola, na qual se descreve o comportamento do Senhor para com os servos encontrados acordados em seu retorno: «Felizes os empregados que o Senhor encontrar acordados quando chegar. Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá» (v. 37). São declaradas bem-aventuradas as pessoas que fazem a vigilância permanente, como ensinado por Jesus, o que se dá mediante o amor e serviço. A pessoa que ama o próximo e serve, por amor, está sempre com o coração aberto para o Senhor entrar. Quem vive assim estará sempre acordada para o encontro com o Senhor, mesmo quando morre. O sono que impede o encontro com o Senhor, portanto, não é o sono físico, mas a falta de amor, de empatia, é a indisposição de acolher e servir. Com essa pequena parábola, o evangelista reforça suas convicções de que um novo mundo está em construção, desde o anúncio do nascimento de Jesus, com a exaltação dos pequenos e humildes, proclamada no Magnificat (Lc 1,46-55) e reforçada por tudo o que Jesus ensinou, até aqui, sobretudo nas bem-aventuranças e maldições (Lc 6,20-26). Ao longo da história, o agir de Deus sempre contradisse a lógica humana, como se reforça aqui. Por sinal, o termo traduzido por “empregados” na versão litúrgica significa servos ou escravos (em grego: δοῦλοι – duloi), imagem do que há de mais baixo na estratificação social dos tempos de Jesus. E foi assim que Maria de Nazaré se autodeclarou, ao dar o seu sim ao projeto de Deus. Aqui, o evangelista ensina que os servos, os últimos, são servidos pessoalmente pelo Senhor. A imagem de um Senhor que serve é mesmo surpreendente. Trata-se de uma das mais belas imagens que Jesus aplica a Deus e a si mesmo: um senhor, grande proprietário que, ao invés de exigir serviço de seus servos, abaixa-se para servi-los. Somente Jesus, sendo Senhor, fez-se servo (Lc 22,27).

As diversas possibilidades de hora em que o Senhor poderá voltar e encontrar seus servos acordados reforçam a importância da vigilância, que consiste em assumir a verdadeira condição de servo: «E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar!» (v. 38). Obviamente, não se trata de uma exigência para as pessoas renunciarem ao pouco tempo disponível que têm para dormir, num mundo tão dominado pela lógica do capital, no qual a classe trabalhadora vive sufocada diante de uma jornada de trabalho desumana e contrária ao Evangelho. O sono é uma necessidade fisiológica vital, fundamental para a saúde e o bem-estar da pessoa. Certamente, não é do agrado de Deus quando as pessoas são forçadas a deixar de dormir, seja por excesso de trabalho, seja por devoção exagerada. O que o Senhor quer encontrar, a qualquer hora, é corações cheios de amor e, ao mesmo tempo, abertos para receber o amor que ele oferece a todas as pessoas, indistintamente. Toda hora é hora de amar e sentir-se amado. Quem, a todo instante, ama, é feliz, é agradável a Deus e dele não se separa, nem mesmo com a morte.

Os versículos conclusivos constituem mais uma pequena parábola (vv. 39-40), que visa apenas reforçar a necessidade da vigilância, através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura exatamente surpreender o dono da casa. Com isso, temos novamente uma imagem surpreendente, justamente quando se adverte a comunidade cristã a não se deixar surpreender com a volta do Senhor. Essa é a única vez, em toda a Bíblia, que Deus é apresentado como um ladrão, embora o “Dia do Senhor” seja apresentado com essa mesma imagem em outros contextos e gêneros literários (1Ts 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3). A falta de conhecimento do dia e da hora da vinda do Senhor deve ser motivo para a comunidade não desviar o foco por um único instante; isso quer dizer que os discípulos não podem, em momento algum, deixar de viver o programa de Jesus, ou seja, o Evangelho do Reino.

Tendo em vista os limites da vida neste humano, é necessário carregá-la de sentido, e o modo adequado de fazer isso é viver conforme a justiça e o amor, depositando toda a confiança em Deus e em seu infinito amor. Para isso, é necessário manter o coração pronto para acolhê-lo continuamente. Ao recordar os entes queridos que já partiram, somos chamados a refletir sobre os limites da nossa existência neste mundo e a necessidade de preenchê-la de sentido. E isso depende essencialmente da maneira de relacionar-se com Deus, deixando-se humanizar pelo seu amor. Por isso, sejamos vigilantes como pede o Senhor, amando e deixando-nos amar por ele.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 11,2-11 (ANO A)

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