sábado, junho 21, 2025

REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 9,18-24 (ANO C)

 


Com a retomada do tempo comum, retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como prescreve a liturgia dominical do Ano C. Por tratar-se já do décimo segundo domingo, a leitura do referido Evangelho está bastante avançada. O texto lido hoje – Lc 9,18-24 – encontra-se já no final da primeira grande seção narrativa da obra, que corresponde ao ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50). É importante considerar este dado para compreender adequadamente o episódio de hoje que, embora curto, possui uma riqueza extraordinária, pois concentra elementos importantes para a compreensão da identidade e missão de Jesus, bem como do seu discipulado em todos os tempos. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), embora cada um deles o apresente com características próprias, que correspondem às respectivas intenções teológicas e ao plano literário de cada obra. Hoje, particularmente, nos interessa o contexto do episódio na obra de Lucas, como mostraremos a seguir.

O nono capítulo do Evangelho de Lucas possui uma importância singular, pois marca a transição entre as duas grandes seções narrativas da obra, que são, respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51–19,44). Este capítulo é iniciado com o envio missionário dos Doze, de povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar (curar) as pessoas (9,1-6). A repercussão da missão dos Doze foi tanta que chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso e também curioso sobre a identidade de Jesus (9,7-9). O retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda mais a multidão que acompanhava Jesus, culminando com o episódio da partilha dos pães (9,10-17). O entusiasmo forte, tanto dos discípulos, pelo que tinham feito na missão (cf. Lc 9,10), quando do povo que estava se beneficiado dos milagres, foi um alerta para Jesus. Em todos os três sinóticos, este episódio de hoje está relacionado à partilha dos pães, mas somente em Lucas possui relação direta também com a missão dos doze. O texto pode ser dividido em três pequenas unidades temáticas distintas, embora interligadas: a) a pergunta de Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v. 22); as exigências para o discipulado, que se tornam profecia da identidade cristã no mundo (vv. 23-24).

A situação criada desde envio dos Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. E os momentos de reflexão de Jesus, no Evangelho de Lucas, são sempre marcados pela oração, quando ele expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Por isso, para o autor do Terceiro Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos pela oração (6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo da importância que este episódio possui, pois assim começa: «Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”»  (v. 18). De início, é importante recordar uma primeira particularidade deste episódio em Lucas, além da oração: ele não localiza precisamente o acontecimento, como fazem Marcos e Mateus, que identificam a cena na região de Cesareia de Filipe. Mais importante do que o lugar geográfico, para Lucas, é que a situação favoreça o clima de oração. Como se sabe, a oração é o meio para cultivar a intimidade com o Pai, por isso, é instrumento de humanização, pois, quanto mais próximo de Deus estiver a pessoa, mais humana se torna. Isso torna a atitude orante de Jesus paradigmática, expressando uma necessidade concreta para a vida de seus discípulos em todos os tempos. De fato, para Jesus, as relações com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com os discípulos, seus amigos.

Como tinham sido enviados há pouco tempo para anunciar o Reino de Deus – o projeto de vida de Jesus –, os discípulos também ouviram as impressões do povo a seu respeito. Por isso, Jesus quis saber qual a imagem que o povo tinha dele até então. É claro que a preocupação de Jesus não era com sua popularidade, mas com a compreensão da sua mensagem, a assimilação do seu projeto. Ora, até aquela ocasião, Jesus já tinha feito muita coisa, tendo andado bastante pelas cidades e povoados da Galileia, anunciando o Reino de Deus com palavras e gestos de libertação, humanizando tantas pessoas e situações, mediante o seu amor. Era justo que ele quisesse saber como estava sendo acolhido e compreendido. E as respostas não demonstram fracasso, mas são insuficientes: «Eles responderam: “Uns dizem que és João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que ressuscitou”» (v. 19). Como se vê, essa resposta mostra que, em geral, o povo tinha uma boa impressão sobre Jesus; o considerava um grande profeta, e os profetas constituíam o que tinha surgido de mais autêntico na história religiosa de Israel, dentre todas as figuras de mediação. Porém, aplicada a Jesus, a imagem do profeta é insuficiente e até equivocada, pois ele é muito mais do que profeta. Ora, tanto João Batista quanto Elias foram profetas reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se no deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas do seu tempo; inclusive, acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era suficiente para uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático e intolerante, pregava a violência e o extermínio dos adversários (1Rs 18,40; 19,1). Colocar Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive, porque ele não veio propor reformas, mas uma mudança radical de mentalidades e de estruturas, na sociedade, começando pela religião.

Como os discípulos já tinham feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais aprofundada do que o povo a seu respeito. Por isso, «Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “O Cristo de Deus”» (v. 20). Da resposta dos discípulos, Jesus saberia como tinha sido o anúncio deles, enquanto estiveram em missão. Isso torna a questão ainda mais relevante. Pedro responde em nome de todo o grupo; a sua resposta é coletiva, sintetiza a opinião e a fé da comunidade. Que o povo conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria compreensível, mas dos discípulos esperava-se que o conhecessem mais verdadeiramente, ou seja, de modo mais profundo. Formalmente, a resposta de Pedro é correta, mas é suficiente também; Jesus é, de fato, o Cristo, e veio de Deus; confessá-lo assim é reconhecê-lo como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas do seu povo. O messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso da força, do poder e da violência. E Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um povo apenas, mas a toda a humanidade. Contudo, é compreensível que Pedro e os demais discípulos ainda estivessem condicionados à mentalidade antiga do seu povo. A mudança de mentalidade, indispensável para compreender e acolher a mensagem de Jesus, é um processo, aliás, um caminho. E ainda faltava muito a ser percorrido.

Conhecendo a mentalidade dos discípulos, «Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém» (v. 21). É importante reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar, mas manda também calar. A comunidade deve procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas e em todos os lugares; mais tarde, Jesus vai ordenar que os discípulos deverão pregar até sobre os telhados (Lc 12,3), mas quando o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de glória e poder, é necessário calar. O desejo de glória e poder estava implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus o proibiu de anunciá-lo daquela forma. A urgência da evangelização, em qualquer época, não pode levar a comunidade a anunciar o Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade, sem criar a devida intimidade com ele. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da sua mensagem é mais danoso do que mesmo o silêncio. Talvez, essa consciência seja um dos elementos de mais urgência que o evangelho de hoje evidencia e, infelizmente, passa quase despercebida. Os instrumentos para o anúncio têm se multiplicado cada vez mais, com o avanço da tecnologia e o advento de novas demandas. Contudo, o mais importante no anúncio é a convicção e o conhecimento da verdadeira identidade de Jesus de Nazaré. São muitos os riscos de instrumentalização e distorção da sua mensagem. Muitas vezes, a imagem de Jesus que é anunciada não corresponde à do Nazareno que morreu de tanto amar. E amou lutando, humanizando, libertando.

Diante da compreensão ainda não muito clara que os discípulos tinham da sua identidade messiânica, Jesus acrescentou, a modo de esclarecimento: «O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia» (v. 22). Temos aqui uma espécie de complemento e correção à resposta de Pedro. Com essa afirmação, Jesus faz a sua primeira grande autorrevelação, deixando clara a especificidade da sua messianidade. Com isso, Ele antecipa o seu destino dramático, fazendo o primeiro dos três anúncios da paixão (9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da própria religião, que era quem controlava a mentalidade do povo. Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Por isso, Ele irá repetir bastante este anúncio, pois não era fácil de ser assimilado. Ele deverá ser morto porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Obviamente, não era a vontade do Pai que seu Filho fosse assassinado tão cruelmente como foi. Mas, a vontade de Deus é que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto, não é predestinação, mas consequência de suas opções, marcadas sempre pela fidelidade aos desígnios do Pai que o enviou; é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas, que não aceitavam um messias tão cheio de amor e próximo das pessoas, sobretudo das mais necessitadas. Mas o Pai reverte essa situação em salvação para a humanidade, com a ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as autoridades religiosas. Inclusive, os autores da violência que ele sofrerá na paixão são claramente mencionados, são os grupos componentes do sinédrio, o máximo órgão jurídico de Israel: anciãos, sacerdotes e doutores da Lei. Essas categorias simbolizam o ter, o poder e o saber, tudo aquilo que foi prometido por satanás no episódio das tentações, mas Jesus rejeitou (Lc 4,1-13).

Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo e nem mesmo dos seus discípulos, Jesus também esclarece quais são as exigências básicas para o seu seguimento. Ora, Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuarem no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como seguidores de um messias ao revés. De fato, a messianidade revelada por Jesus é todo contrário do que esperavam. Por isso, o esclarecimento: «Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me”» (v. 23). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: «se alguém me quer seguir»; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe. E o seguimento exige rupturas. E a primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estejam em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; era a pena reservada aos considerados desordeiros, subversivos; com isso, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo, o que torna, inevitavelmente, os seus autênticos discípulos em subversivos, pessoas consideradas perigosas para o sistema. Também quanto ao tomar a cruz, o de Lucas se destaca em relação aos demais evangelhos: somente nele se diz que a cruz deve ser tomada a cada dia, ou seja, é uma realidade do cotidiano, não um evento e muito menos um adorno; é a situação cotidiana de quem assume com seriedade o seguimento de Jesus.

O último versículo é uma profecia em forma de provérbio, na qual são reforçadas as exigências para o discipulado, com suas consequências: «Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará» (v. 24). Há aqui um jogo de palavras, recurso retórico bastante usado por pregadores itinerantes, e neste, especificamente, são contrapostos os verbos salvar e perder à luz da lógica reversa da messianidade de Jesus. Já na época da redação do Evangelho de Lucas, os cristãos eram considerados pessoas que tinham perdido a vida, conforme a lógica do sistema vigente, devido às renúncias que tinham feito e à disposição de abraçar a cruz como consequência das opções assumidas. Abrir mão de uma mentalidade individualista, deixando de lado projetos e ambições pessoais para viver a utopia do Reino, ou seja, aderir a um projeto igualitário, com relações gratuitas e movidas pelo amor, era visto como perda e loucura. Para Jesus, contudo, quem faz isso salva a sua vida, quer dizer, dá sentido à existência. A salvação não é simplesmente a preservação ou repouso eterno da alma, mas a vida e a mensagem libertadora de Jesus, o salvador. Se salva, portanto, quem assimila essa mensagem e faz dela vida, deixando-se humanizar por meio dela.

Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser distorcido.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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