Com a retomada do tempo comum,
retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como prescreve
a liturgia dominical do Ano C. Por tratar-se já do décimo segundo domingo, a
leitura do referido Evangelho está bastante avançada. O texto lido hoje – Lc
9,18-24 – encontra-se já no final da primeira grande seção narrativa da obra,
que corresponde ao ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50). É importante
considerar este dado para compreender adequadamente o episódio de hoje que,
embora curto, possui uma riqueza extraordinária, pois concentra elementos
importantes para a compreensão da identidade e missão de Jesus, bem como do seu
discipulado em todos os tempos. Trata-se de um episódio comum aos três
evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), embora cada um deles o apresente com
características próprias, que correspondem às respectivas intenções teológicas
e ao plano literário de cada obra. Hoje, particularmente, nos interessa o
contexto do episódio na obra de Lucas, como mostraremos a seguir.
O nono capítulo do Evangelho de
Lucas possui uma importância singular, pois marca a transição entre as duas
grandes seções narrativas da obra, que são, respectivamente, o ministério de
Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc
9,51–19,44). Este capítulo é iniciado com o envio missionário dos Doze, de
povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar (curar) as pessoas
(9,1-6). A repercussão da missão dos Doze foi tanta que chegou aos ouvidos de
Herodes, deixando-o confuso e também curioso sobre a identidade de Jesus (9,7-9).
O retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda
mais a multidão que acompanhava Jesus, culminando com o episódio da partilha
dos pães (9,10-17). O entusiasmo forte, tanto dos discípulos, pelo que tinham
feito na missão (cf. Lc 9,10), quando do povo que estava se beneficiado dos
milagres, foi um alerta para Jesus. Em todos os três sinóticos, este episódio
de hoje está relacionado à partilha dos pães, mas somente em Lucas possui
relação direta também com a missão dos doze. O texto pode ser dividido em três
pequenas unidades temáticas distintas, embora interligadas: a) a pergunta de
Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é a confissão
de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v. 22); as exigências
para o discipulado, que se tornam profecia da identidade cristã no mundo (vv.
23-24).
A situação criada desde envio dos
Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. E os momentos de reflexão
de Jesus, no Evangelho de Lucas, são sempre marcados pela oração, quando ele
expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Por isso, para o autor do
Terceiro Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos
pela oração (6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de
hoje, portanto, é um indicativo da importância que este episódio possui, pois
assim começa: «Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos
estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”» (v.
18). De início, é importante recordar uma primeira particularidade deste
episódio em Lucas, além da oração: ele não localiza precisamente o
acontecimento, como fazem Marcos e Mateus, que identificam a cena na região de
Cesareia de Filipe. Mais importante do que o lugar geográfico, para Lucas, é
que a situação favoreça o clima de oração. Como se sabe, a oração é o meio para
cultivar a intimidade com o Pai, por isso, é instrumento de humanização, pois,
quanto mais próximo de Deus estiver a pessoa, mais humana se torna. Isso torna
a atitude orante de Jesus paradigmática, expressando uma necessidade concreta
para a vida de seus discípulos em todos os tempos. De fato, para Jesus, as
relações com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é
intimidade com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e
transparente com os discípulos, seus amigos.
Como tinham sido enviados há
pouco tempo para anunciar o Reino de Deus – o projeto de vida de Jesus –, os
discípulos também ouviram as impressões do povo a seu respeito. Por isso, Jesus
quis saber qual a imagem que o povo tinha dele até então. É claro que a
preocupação de Jesus não era com sua popularidade, mas com a compreensão da sua
mensagem, a assimilação do seu projeto. Ora, até aquela ocasião, Jesus já tinha
feito muita coisa, tendo andado bastante pelas cidades e povoados da Galileia,
anunciando o Reino de Deus com palavras e gestos de libertação, humanizando
tantas pessoas e situações, mediante o seu amor. Era justo que ele quisesse
saber como estava sendo acolhido e compreendido. E as respostas não demonstram
fracasso, mas são insuficientes: «Eles responderam: “Uns dizem que és
João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos
profetas que ressuscitou”» (v. 19). Como se vê, essa resposta mostra
que, em geral, o povo tinha uma boa impressão sobre Jesus; o considerava um
grande profeta, e os profetas constituíam o que tinha surgido de mais autêntico
na história religiosa de Israel, dentre todas as figuras de mediação. Porém, aplicada
a Jesus, a imagem do profeta é insuficiente e até equivocada, pois ele é muito mais
do que profeta. Ora, tanto João Batista quanto Elias foram profetas
reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se no
deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas do seu tempo;
inclusive, acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era
suficiente para uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático
e intolerante, pregava a violência e o extermínio dos adversários (1Rs 18,40;
19,1). Colocar Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive, porque ele
não veio propor reformas, mas uma mudança radical de mentalidades e de
estruturas, na sociedade, começando pela religião.
Como os discípulos já tinham
feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais
aprofundada do que o povo a seu respeito. Por isso, «Jesus perguntou:
“E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “O Cristo de Deus”» (v.
20). Da resposta dos discípulos, Jesus saberia como tinha sido o anúncio deles,
enquanto estiveram em missão. Isso torna a questão ainda mais relevante. Pedro
responde em nome de todo o grupo; a sua resposta é coletiva, sintetiza a
opinião e a fé da comunidade. Que o povo conhecesse Jesus apenas
superficialmente, seria compreensível, mas dos discípulos esperava-se que o
conhecessem mais verdadeiramente, ou seja, de modo mais profundo. Formalmente,
a resposta de Pedro é correta, mas é suficiente também; Jesus é, de fato, o
Cristo, e veio de Deus; confessá-lo assim é reconhecê-lo como o messias
esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas do seu povo. O
messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro
nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso
da força, do poder e da violência. E Jesus não veio para restaurar a realeza em
Israel, mas para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um
povo apenas, mas a toda a humanidade. Contudo, é compreensível que Pedro e os
demais discípulos ainda estivessem condicionados à mentalidade antiga do seu
povo. A mudança de mentalidade, indispensável para compreender e acolher a mensagem
de Jesus, é um processo, aliás, um caminho. E ainda faltava muito a ser
percorrido.
Conhecendo a mentalidade dos
discípulos, «Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém» (v.
21). É importante reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado
de outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar, mas manda também calar.
A comunidade deve procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino
chegar a todas as pessoas e em todos os lugares; mais tarde, Jesus vai ordenar
que os discípulos deverão pregar até sobre os telhados (Lc 12,3), mas quando o
anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de glória e
poder, é necessário calar. O desejo de glória e poder estava implícito na
resposta de Pedro. Por isso, Jesus o proibiu de anunciá-lo daquela forma. A urgência
da evangelização, em qualquer época, não pode levar a comunidade a anunciar o
Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade, sem criar a devida
intimidade com ele. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência
libertadora da sua mensagem é mais danoso do que mesmo o silêncio. Talvez, essa
consciência seja um dos elementos de mais urgência que o evangelho de hoje
evidencia e, infelizmente, passa quase despercebida. Os instrumentos para o
anúncio têm se multiplicado cada vez mais, com o avanço da tecnologia e o
advento de novas demandas. Contudo, o mais importante no anúncio é a convicção
e o conhecimento da verdadeira identidade de Jesus de Nazaré. São muitos os
riscos de instrumentalização e distorção da sua mensagem. Muitas vezes, a
imagem de Jesus que é anunciada não corresponde à do Nazareno que morreu de
tanto amar. E amou lutando, humanizando, libertando.
Diante da compreensão ainda não
muito clara que os discípulos tinham da sua identidade messiânica, Jesus
acrescentou, a modo de esclarecimento: «O Filho do Homem deve sofrer
muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei,
deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia» (v. 22). Temos aqui uma
espécie de complemento e correção à resposta de Pedro. Com essa afirmação,
Jesus faz a sua primeira grande autorrevelação, deixando clara a especificidade
da sua messianidade. Com isso, Ele antecipa o seu destino dramático, fazendo o
primeiro dos três anúncios da paixão (9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios
são formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e
da própria religião, que era quem controlava a mentalidade do povo. Um messias
sofredor era inadmissível para a tradição. Por isso, Ele irá repetir bastante
este anúncio, pois não era fácil de ser assimilado. Ele deverá ser morto porque
levará a cumprimento o projeto do Pai. Obviamente, não era a vontade do Pai que
seu Filho fosse assassinado tão cruelmente como foi. Mas, a vontade de Deus é
que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do seu Filho.
A morte de Jesus na cruz, portanto, não é predestinação, mas consequência de
suas opções, marcadas sempre pela fidelidade aos desígnios do Pai que o enviou;
é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas, que
não aceitavam um messias tão cheio de amor e próximo das pessoas, sobretudo das
mais necessitadas. Mas o Pai reverte essa situação em salvação para a
humanidade, com a ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus
são as autoridades religiosas. Inclusive, os autores da violência que ele sofrerá
na paixão são claramente mencionados, são os grupos componentes do sinédrio, o
máximo órgão jurídico de Israel: anciãos, sacerdotes e doutores da Lei. Essas categorias
simbolizam o ter, o poder e o saber, tudo aquilo que foi prometido por satanás
no episódio das tentações, mas Jesus rejeitou (Lc 4,1-13).
Tendo esclarecido que não é um messias
conforme as expectativas do povo e nem mesmo dos seus discípulos, Jesus também esclarece
quais são as exigências básicas para o seu seguimento. Ora, Ele está terminando
o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para
Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuarem no seu seguimento, é
necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão
correndo, como seguidores de um messias ao revés. De fato, a messianidade
revelada por Jesus é todo contrário do que esperavam. Por isso, o
esclarecimento: «Então chamou a multidão com seus discípulos e disse:
“Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo,
tome sua cruz a cada dia, e siga-me”» (v. 23). Antes de tudo, Jesus
deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: «se alguém
me quer seguir»; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe. E o seguimento
exige rupturas. E a primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si
mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as
convicções pessoais que não estejam em sintonia com a mensagem libertadora do
Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser
deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal
escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo;
era a pena reservada aos considerados desordeiros, subversivos; com isso, Jesus
deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com
fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho
contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo, o que torna,
inevitavelmente, os seus autênticos discípulos em subversivos, pessoas
consideradas perigosas para o sistema. Também quanto ao tomar a cruz, o de Lucas
se destaca em relação aos demais evangelhos: somente nele se diz que a cruz
deve ser tomada a cada dia, ou seja, é uma realidade do cotidiano, não um
evento e muito menos um adorno; é a situação cotidiana de quem assume com
seriedade o seguimento de Jesus.
O último versículo é uma profecia
em forma de provérbio, na qual são reforçadas as exigências para o discipulado,
com suas consequências: «Pois quem quiser salvar a sua vida, vai
perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará» (v.
24). Há aqui um jogo de palavras, recurso retórico bastante usado por
pregadores itinerantes, e neste, especificamente, são contrapostos os verbos
salvar e perder à luz da lógica reversa da messianidade de Jesus. Já na época
da redação do Evangelho de Lucas, os cristãos eram considerados pessoas que
tinham perdido a vida, conforme a lógica do sistema vigente, devido às
renúncias que tinham feito e à disposição de abraçar a cruz como consequência
das opções assumidas. Abrir mão de uma mentalidade individualista, deixando de
lado projetos e ambições pessoais para viver a utopia do Reino, ou seja, aderir
a um projeto igualitário, com relações gratuitas e movidas pelo amor, era visto
como perda e loucura. Para Jesus, contudo, quem faz isso salva a sua vida, quer
dizer, dá sentido à existência. A salvação não é simplesmente a preservação ou
repouso eterno da alma, mas a vida e a mensagem libertadora de Jesus, o
salvador. Se salva, portanto, quem assimila essa mensagem e faz dela vida,
deixando-se humanizar por meio dela.
Somos convidados hoje, de modo
especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus,
para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as
estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O
seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e
com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser
distorcido.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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