sábado, junho 14, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 16,12-15 (ANO C)



No primeiro domingo depois de Pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Os textos bíblicos empregados nesta solenidade se alternam conforme a dinâmica do ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, é Jo 16,12-15. Ao contrário das solenidades pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa festa já foi introduzida no calendário litúrgico em um período mais tardio. Em alguns países, começou a ser celebrada ainda por volta do séc. oitavo, mas só foi instituída oficialmente como festa universal pelo papa João XII, já no ano de 1334, como resposta a alguns movimentos heréticos que negavam a divindade de Jesus e/ou do Espírito Santo. Nela, recordamos o mistério da comunhão de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Trindade Santa, em cujo nome somos batizados, batizadas e, consequentemente, salvos e salvas. É muito significativo que esta solenidade seja celebrada logo no primeiro domingo após Pentecostes. Como se sabe, em Pentecostes acontece o verdadeiro nascimento da Igreja. Desse modo, a Solenidade da Santíssima Trindade vem indicar que toda a ação da Igreja é trinitária, a começar pelo batismo, que se celebra em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Portanto, é em nome da Santíssima Trindade que ingressamos e participamos da comunidade cristã. Isso faz da comunidade o lugar privilegiado de comunhão com o Deus que é também comunidade. Como sempre, a nossa reflexão será pautada exclusivamente a partir do evangelho, sem levar em consideração as afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade.

O contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da Páscoa. Como já afirmamos em outras ocasiões, pois durante quase todo o tempo pascal o evangelho dos domingos foi tirado desse mesmo contexto, a ceia no Quarto Evangelho não significa apenas o consumo de alimentos, nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é autorrevelação de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Por isso, conforme o respectivo evangelho, foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é convencionalmente chamado o seu longo discurso de despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A centralidade da ceia em João já é evidenciada pelo amplo espaço narrativo que ocupa: são cinco capítulos (Jo 13 –17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (13,36-38; 14,5.8.22). Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para as circunstâncias. Por isso Jesus procurou tranquilizá-los em diversos momentos (14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo quando retornasse para o mundo do Pai (14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permaneceriam sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizaria no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa do Espírito Santo.

Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, ou seja, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele disse nesse mesmo discurso: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer» (Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos. E dos amigos, ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo do evangelho de hoje parece contradizer a afirmação acima, que ele já disse tudo, pois, de repente, ele diz: «Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora» (v. 12). Ora, Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer ou ensinar. Logo, aqui, ele não se refere a novos ensinamentos, mas à capacidade de compreensão dos discípulos, que não tinham assimilado tudo o que ouviram dele.

Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a cruz e ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto, seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da experiência da ressurreição, e sem o dom maior do Ressuscitado, que é o Espírito Santo, os discípulos não teriam forças para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa mensagem compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional. Inclusive, alguns acontecimentos durante o processo de Jesus demonstram a incapacidade dos discípulos de suportar a sua mensagem com suas consequências; a traição de Judas e a tríplice negação de Pedro atestam isso.

Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, principalmente a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo. Por cruz não se compreende apenas a crucifixão sofrida uma vez no calvário, mas o conjunto da obra. Em toda a sua vida, Jesus viveu um crucificar-se contínuo. Cada atitude de rejeição sofrida, desde os primeiros momentos do seu ministério, já apontava para a cruz como desfecho. Diante disso, conhecendo seus discípulos, ele sabia que não estavam ainda preparados para suportar tudo o que ele estava suportando. Por isso, para que pudessem continuar sua missão com fidelidade, ele garante que receberão a força necessária, o Espírito Santo, para sustentá-los e conduzi-los: «Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará» (v. 13). Ora, a Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se autointitulara antes: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, tendo já passado pela cruz e ressurreição, realidade que só pode ser assimilada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; significa o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (Jo 1,1) à encarnação (Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno ao mundo do Pai.

A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. O Espírito não falará por si mesmo, será a voz do Pai e do Filho no coração das pessoas e na vida da Igreja. Transmitirá ao mundo a comunhão de amor que envolve o Pai e o Filho, como força de humanização para a humanidade inteira. E o Espírito é o próprio amor que une o Pai e o Filho; mediante seu sopro, esse amor irradia-se sobre o mundo, fecundando-o de vida , e vida em abundância. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – a Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história, não previstas por Jesus e seu pequeno grupo de discípulos, durante os aproximados três anos de ministério. Ao longo da história, a comunidade cristã necessita do dom do Espírito Santo para discernir e aplicar o ensinamento de Jesus, que já disse tudo, mas preciso ser compreendido de modo novo, a cada dia, diante das novas realidades que surgem continuamente. Independentemente da época, a comunidade deverá interpretar tais situações à luz de tudo o que Jesus ensinou. E só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Por isso, guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica.

Continuando a explicação sobre os efeitos do Espírito Santo para a vida da comunidade, Jesus afirma: «Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará» (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Aqui, cabe destacar um aspecto importante da teologia do Quarto Evangelho. Ora, ao contrário dos sinóticos, que preveem uma vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, João segue outra perspectiva. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito. À medida em que a comunidade se deixa conduzir pelo Espírito Santo, ela põe em prática o programa de Jesus, cuja síntese é o novo mandamento do amor (Jo 13,34). Fazendo assim ela revela Jesus presente no mundo. Fazer isso é glorificá-lo. Portanto, o efeito “glorificante” do Espírito Santo em relação a Jesus confere séria responsabilidade à comunidade.

A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a comunhão de Jesus com o Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu» (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado e incondicional, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, de fato, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai. Por isso, pode-se dizer que os Três são Um. Acolhendo, o Espírito, a comunidade vive o que Jesus ensinou e, assim, revela ao mundo o rosto de um Pai que é todo amor.

Portanto, a presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho. O resultado da acolhida a essa comunhão é a humanização do mundo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

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