No
primeiro domingo depois de Pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da
Santíssima Trindade. Os textos bíblicos empregados nesta solenidade se alternam
conforme a dinâmica do ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo
litúrgico C, é Jo 16,12-15. Ao contrário das solenidades pascais, instituídas
desde os primeiros séculos do cristianismo, essa festa já foi introduzida no
calendário litúrgico em um período mais tardio. Em alguns países, começou a ser
celebrada ainda por volta do séc. oitavo, mas só foi instituída oficialmente
como festa universal pelo papa João XII, já no ano de 1334, como resposta a
alguns movimentos heréticos que negavam a divindade de Jesus e/ou do Espírito
Santo. Nela, recordamos o mistério da comunhão de amor que une o Pai, o Filho e
o Espírito Santo, a Trindade Santa, em cujo nome somos batizados, batizadas e,
consequentemente, salvos e salvas. É muito significativo que esta solenidade
seja celebrada logo no primeiro domingo após Pentecostes. Como se sabe, em
Pentecostes acontece o verdadeiro nascimento da Igreja. Desse modo, a
Solenidade da Santíssima Trindade vem indicar que toda a ação da Igreja é
trinitária, a começar pelo batismo, que se celebra em nome do Pai, e do Filho e
do Espírito Santo. Portanto, é em nome da Santíssima Trindade que ingressamos e
participamos da comunidade cristã. Isso faz da comunidade o lugar privilegiado
de comunhão com o Deus que é também comunidade. Como sempre, a nossa reflexão
será pautada exclusivamente a partir do evangelho, sem levar em consideração as
afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade.
O
contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo
em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da
Páscoa. Como já afirmamos em outras ocasiões, pois durante quase todo o tempo
pascal o evangelho dos domingos foi tirado desse mesmo contexto, a ceia no
Quarto Evangelho não significa apenas o consumo de alimentos, nem a vivência de
um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é
autorrevelação de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Por isso,
conforme o respectivo evangelho, foi na ceia que Jesus apresentou o seu
“testamento”, como é convencionalmente chamado o seu longo discurso de
despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A centralidade da ceia em
João já é evidenciada pelo amplo espaço narrativo que ocupa: são cinco
capítulos (Jo 13 –17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que
corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o
lava-pés (13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas
interrupções dos discípulos (13,36-38; 14,5.8.22). Jesus sabia do que estava
para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também
imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta
clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era
inevitável para as circunstâncias. Por isso Jesus procurou tranquilizá-los em
diversos momentos (14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso,
Jesus prometeu enviar o Espírito Santo quando retornasse para o mundo do Pai
(14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permaneceriam
sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizaria no meio
deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa do Espírito Santo.
Durante
o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, ou seja,
o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme
Ele disse nesse mesmo discurso: «já não vos chamo servos, porque o servo não
sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de
meu Pai vos dei a conhecer» (Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar
no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos. E
dos amigos, ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo do evangelho de
hoje parece contradizer a afirmação acima, que ele já disse tudo, pois, de
repente, ele diz: «Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois
capazes de as compreender agora» (v. 12). Ora, Jesus já disse tudo; não há
novas coisas para dizer ou ensinar. Logo, aqui, ele não se refere a novos
ensinamentos, mas à capacidade de compreensão dos discípulos, que não tinham
assimilado tudo o que ouviram dele.
Muita
coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos
discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a cruz e
ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender,
empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em
grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto, seria: “não sois
capazes de suportar agora”. Antes da experiência da ressurreição, e sem o dom
maior do Ressuscitado, que é o Espírito Santo, os discípulos não teriam forças
para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo
porque essa mensagem compreende a passagem pela cruz, como consequência de um
amor incondicional. Inclusive, alguns acontecimentos durante o processo de
Jesus demonstram a incapacidade dos discípulos de suportar a sua mensagem com
suas consequências; a traição de Judas e a tríplice negação de Pedro atestam
isso.
Para
compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, principalmente a cruz, os
discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo
e do comodismo. Por cruz não se compreende apenas a crucifixão sofrida uma vez
no calvário, mas o conjunto da obra. Em toda a sua vida, Jesus viveu um
crucificar-se contínuo. Cada atitude de rejeição sofrida, desde os primeiros
momentos do seu ministério, já apontava para a cruz como desfecho. Diante
disso, conhecendo seus discípulos, ele sabia que não estavam ainda preparados
para suportar tudo o que ele estava suportando. Por isso, para que pudessem
continuar sua missão com fidelidade, ele garante que receberão a força
necessária, o Espírito Santo, para sustentá-los e conduzi-los: «Quando,
porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele
não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas
futuras vos anunciará» (v. 13). Ora, a Verdade é o próprio Jesus, como Ele
mesmo se autointitulara antes: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida»
(Jo 14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai,
tendo já passado pela cruz e ressurreição, realidade que só pode ser assimilada
por quem se deixa conduzir pelo Espírito; significa o “conjunto da obra”: da
preexistência do Verbo (Jo 1,1) à encarnação (Jo 1,14), passando pela cruz, até
o retorno ao mundo do Pai.
A
função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a
Verdade em pessoa. O Espírito não falará por si mesmo, será a voz do Pai e do
Filho no coração das pessoas e na vida da Igreja. Transmitirá ao mundo a
comunhão de amor que envolve o Pai e o Filho, como força de humanização para a
humanidade inteira. E o Espírito é o próprio amor que une o Pai e o Filho;
mediante seu sopro, esse amor irradia-se sobre o mundo, fecundando-o de vida ,
e vida em abundância. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas
revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da
mensagem de Jesus. A comunidade cristã – a Igreja – sempre encontrará situações
novas e surpreendentes ao longo da história, não previstas por Jesus e seu
pequeno grupo de discípulos, durante os aproximados três anos de ministério. Ao
longo da história, a comunidade cristã necessita do dom do Espírito Santo para
discernir e aplicar o ensinamento de Jesus, que já disse tudo, mas preciso ser
compreendido de modo novo, a cada dia, diante das novas realidades que surgem
continuamente. Independentemente da época, a comunidade deverá interpretar tais
situações à luz de tudo o que Jesus ensinou. E só é possível fazer isso
deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Por isso, guiada pelo Espírito
Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que
seja a situação e a época histórica.
Continuando
a explicação sobre os efeitos do Espírito Santo para a vida da comunidade,
Jesus afirma: «Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo
anunciará» (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para
compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai
fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a
comunidade em conformidade com o Evangelho. Aqui, cabe destacar um aspecto
importante da teologia do Quarto Evangelho. Ora, ao contrário dos sinóticos,
que preveem uma vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, João segue outra
perspectiva. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele
mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito. À
medida em que a comunidade se deixa conduzir pelo Espírito Santo, ela põe em
prática o programa de Jesus, cuja síntese é o novo mandamento do amor (Jo
13,34). Fazendo assim ela revela Jesus presente no mundo. Fazer isso é
glorificá-lo. Portanto, o efeito “glorificante” do Espírito Santo em relação a
Jesus confere séria responsabilidade à comunidade.
A
promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza
a comunhão de Jesus com o Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso,
disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu» (v. 15). O Pai é a
fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado
e incondicional, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (Jo 10,30), tudo
o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe
também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, de fato, um eco trinitário
bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à
comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito
recebeu do Pai. Por isso, pode-se dizer que os Três são Um. Acolhendo, o
Espírito, a comunidade vive o que Jesus ensinou e, assim, revela ao mundo o
rosto de um Pai que é todo amor.
Portanto,
a presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também
presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus
viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa
comunhão profunda com o Pai e o Filho. O resultado da acolhida a essa comunhão
é a humanização do mundo.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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