Para a solenidade de todos os santos, a liturgia nos oferece a
versão mateana das bem-aventuranças (Mt 5,1-12), a parte introdutória do longo
discurso de Jesus na montanha (Mt 5 – 7). Esse é, sem dúvidas, o mais célebre
dos discursos de Jesus, no qual Ele apresenta seu programa de vida e as exigências
necessárias para os que desejam seguir os seus passos.
O texto de hoje é apenas a primeira parte do amplo discurso que, ao
longo dos séculos, tem encantado cristãos e não cristãos. É, sem dúvidas, uma
das mais belas páginas das Sagradas Escrituras e, mais que uma simples
introdução, é uma síntese de todo o programa de Jesus. Aqui, faz-se necessário
recordar o que afirmou o primeiro verdadeiro exegeta cristão da história,
Orígenes, que viveu entre 185 e 253 d.C., o qual afirmou que as bem-aventuranças
são o retrato de Jesus, ou seja, através delas Jesus disse quem Ele era e como
vivia. Com certeza Orígenes tinha razão.
É muito importante recorrermos às fontes e contextualizar o texto,
tendo em vista o risco de reduzirmos o sentido desta solenidade fazendo uma
simples apologia ao devocionismo que tanto tem se difundido nos últimos anos,
levando muitas pessoas refletirem menos sobre a fé que professam. Ora, falar de
santos, santas e santidade, deve ser, acima de tudo, refletir sobre o autêntico
seguimento de Jesus de Nazaré, e isso só é possível, quando temos clareza do
seu projeto de sociedade e programa de vida.
Certamente, a imagem apresentada em Apocalipse 7,2-14 contribuiu
muito para uma ideia de santidade distante das realidades terrenas, mas o
próprio cristianismo primitivo também pode nos ajudar a recuperar um sentido
mais real e justo sobre essa questão. Poderíamos, inclusive, recorrer à
mentalidade hebraica presente no Primeiro Testamento, mas a literatura do
cristianismo das origens é suficiente, principalmente os escritos de Paulo.
Quando Paulo, em suas cartas, manda recordações dos santos ou para
os santos, o faz referindo-se a pessoas concretas e vivas de suas comunidades. Quando
lidera a coleta em favor dos pobres de Jerusalém, ele refere-se a esses como
santos (cf. Rm 15,16.31; 1Cor 16,1). Questiona os Coríntios por levarem suas
disputas jurídicas aos tribunais civis e não aos santos da comunidade (cf. 1Cor
6,1). No cabeçalho da Segunda Coríntios, ele saúda os santos que se encontram
em toda a região (cf. 2Cor 1,1). Esses foram apenas alguns acenos à menção dos
cristãos vivos compreendidos como santos.
A Escritura, sobretudo nos Atos dos Apóstolos, atesta o fervor dos
primeiros cristãos e a disponibilidade que tinham para viver o que era exigido
pelo Evangelho. Infelizmente, com o passar do tempo, houve um distanciamento do
ideal evangélico no cristianismo. Daí que as bem-aventuranças passaram a ser
vistas como um ideal distante, praticamente inalcançável na vida terrena,
embora a história da Igreja esteja marcada por inúmeros homens e mulheres de
bem-aventurança indiscutível. Mas, o programa de vida de Jesus não foi
destinado apenas a alguns ou algumas, mas a todos e todas, por isso, precisamos
guiar a nossa reflexão nessa perspectiva.
Voltemo-nos, pois, para o nosso texto evangélico. Como se trata de
um texto de Mateus, é a partir desse evangelho específico que devemos situar
nossa reflexão. Até então, Jesus ainda não tinha sequer formado o grupo
completo dos Doze. Tinha chamado apenas quatro discípulos: Pedro, André, João e
Tiago (cf. Mt 4,18-22), mas já tinha iniciado sua atividade messiânica e
despertado o interesse das multidões (cf. Mt 4,23-25). Como não pretendia
enganar ninguém, preferiu, logo de início, deixar claro o seu projeto,
iniciando exatamente com a proclamação das bem-aventuranças, as quais revelam o
seu jeito de ser e como deve ser a vida dos discípulos, destinatários primeiros
do seu ensinamento, mesmo circundado pelas multidões (v. 1-2).
Como diz o texto, “vendo as multidões, Jesus subiu ao monte” (v.
1a). Aqui, há uma clara alusão a Moisés que subia ao monte Sinai para
comunicar-se com Deus, tendo recebido ali as tábuas da lei (cf. Ex. 19,3;
24,15.18). A montanha é, portanto, o lugar da oração, do encontro com Deus e da
sua revelação à humanidade. Aqui, Jesus revela-se Senhor e mestre. O gesto de
ensinar sentado e com os discípulos próximos a ele (v. 1-2), mostra a
autoridade de mestre, significa que seu ensinamento é sólido, consistente e
sério, embora ainda tenha um grupo muito pequeno de discípulos. Ele não
consegue esperar seu grupo crescer para dizer como quer que seus discípulos
sejam, por isso, apresenta logo ali o seu perfil.
O evangelista usa nove vezes o termo grego Maka,rioi – macarioi, cujo
significado é felizes, bem-aventurados ou benditos. Com isso, Jesus descreve
como devem ser seus discípulos. Na verdade, como todo discípulo deve imitar o
seu mestre, e como autêntico e verdadeiro que era, tudo o que Ele já vivia, o
propôs para o seu discipulado. O que, de fato, é exigido, é que sejam
bem-aventurados, felizes. Talvez um conceito equivocado de felicidade dificulte
uma compreensão mais sólida do que Ele apresenta. É importante recordar que as
bem-aventuranças não são sugestões, mas exigências radicais que devem ser
vividas em sua totalidade. Não se pode escolher uma ou outra. Só tem sentido e
valor quando vividas por completo, por isso é desafiante ser discípulo ou
discípula de Jesus.
A primeira bem-aventurança (v. 3) é um consolo
para quem já é “pobre em espírito” e um convite para que, os que ainda não são,
se tornem. De todas, é aquela que mais tem gerado controvérsias na
interpretação. A preferência de Jesus pelos pobres é inquestionável. No
entanto, alguns para suavizar a interpretação, outros para não se
comprometerem, afirmam que Jesus não está aqui se referindo à pobreza como
carência de bens, mas como um sentimento. É claro que essa interpretação é
absurda, sobretudo se tomamos a mensagem de Jesus em seu conjunto, e recordamos
que uma das coisas que Ele mais cobra de seus discípulos é o desapego e a
renúncia aos bens. Também não se trata de um convite à resignação. O pano de fundo
para essa bem-aventurança é a profecia de Sofonias (cf. Sf 3,11-13), quando
apresenta o ‘resto de Israel’ como um povo ‘pobre e humilde’ que buscará
refúgio no nome do Senhor. Portanto, os pobres em espírito são aqueles que
confiam em Deus, unindo à pobreza, a humildade, uma vez que, não basta ser
pobre, é necessário ser humilde para entrar na dinâmica do Reino. A eles, os
pobres em espírito, deve ser dado o Reino já agora, uma vez que a condição
deles não permite mais esperar por uma transformação futura. E, foi Jesus, por
excelência, um pobre no espírito, porque completou sua pobreza material com a
confiança no Espírito Santo e no Pai.
A segunda bem-aventurança (v. 4) também tem um
texto profético como pano de fundo: a profecia de Isaías que anuncia o ‘consolo
dos aflitos’ (cf. Is 61,2). Ser consolado, na linguagem bíblica, não é
simplesmente ser confortado ou ter a dor aliviada por alguns momentos, mas é
ter o sofrimento eliminado por completo. A não aceitação do projeto de Jesus
pelas estruturas sócio-políticas e religiosas causará aflições no seu
discipulado, mas resistindo, receberão a verdadeira consolação.
Aos aflitos, somam-se os mansos, a terceira
bem-aventurança (v. 5). O próprio Jesus se apresentará, posteriormente, como
manso e humilde de coração (cf. Mt 11,29). Aqui, Jesus alude aos israelitas que
foram deserdados injustamente de suas terras (cf. Sl 37,11), por isso, terão
como recompensa a herança da terra novamente. Também não é um convite à
passividade. É apenas um lembrete para que, diante das injustiças, a comunidade
dos discípulos tome as mesmas atitudes de Jesus.
Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca
para os discípulos, conforme Ele mesmo experimentara, a justiça como uma busca
incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão interpelante: ‘bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça’ (v. 6). Ora, a fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano e o deixam ansioso. Com isso, Ele ensina que, como o alimento e a água são essenciais para a vida, assim deve ser a busca pela justiça em seus discípulos, ou seja, deve fazer parte do dia-a-dia da comunidade e ser tão apreciada quanto o alimento cotidiano.
A misericórdia é tão importante na vida do
discípulo, a ponto de ser a condição para receber a misericórdia de Deus (v.
7). Assim é a quinta bem-aventurança. Ora, na Bíblia, a misericórdia é,
sobretudo, ação em favor dos necessitados. Não se trata de um simples
sentimento de piedade. É uma das principais características de Deus, por isso, é
indispensável na vida do discípulo, o qual deve estar sempre atento e solícito
às necessidades do próximo.
Com a sexta bem-aventurança (v. 8), Jesus se
contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica, os quais não
permitiam que as pessoas vissem o verdadeiro rosto de Deus. Por isso, diz que
bem-aventurados são ‘os puros de coração’, e não os que se submetem
constantemente aos ritos estéreis e vazios, os quais, ao invés de aproximar as
pessoas de Deus, causavam divisões e exclusões. A verdadeira pureza é aquela
interior, ou seja, do coração, porque permite ver os outros com os olhos de
Deus e, assim, dar a conhecer o próprio Deus.
Considerando que os
discípulos seriam imersos em situações de conflito, Jesus pede, com a sétima bem-aventurança
(V. 9), que sejam ‘promotores da paz’. É claro que paz a promovida pelo
discípulo de Jesus será sempre uma paz inquieta como foi a dele. Lutar pela paz
é tão imprescindível na vida do discípulo, a ponto de ser condição para ser
considerado filho de Deus. Se trata de algo muito profundo, considerando a
riqueza teológica da palavra hebraica ~Al)v'. – Shalom: paz como o bem-estar total do homem,
harmonia com Deus, consigo mesmo e com o próximo em todas as dimensões. É por
esse tipo de paz que o discípulo de Jesus deve lutar, ou seja, por uma vida
digna e íntegra para todos.
Com a oitava bem-aventurança (v. 10), Jesus
apresenta aquilo que vai comprovar se o discípulo está imitando-o ou não, ou
seja, se está vivendo ou não as bem-aventuranças: ‘ser perseguido por causa da
justiça’. O principal sinal de adesão plena ao Reino é ser perseguido! Por isso,
ser discípulo de Jesus é um desafio, porque a lógica do Reino contrapõe-se a
todo e qualquer sistema humano de gerenciamento da vida. Viver as
bem-aventuranças é abraçar um projeto de sociedade alternativa que,
inevitavelmente, entrará em coalisão com os sistemas dominantes. Obviamente, ao
invés de aplausos, os discípulos receberão perseguições, calúnias e injúrias,
completando assim a nona bem-aventurança (v. 11). E, diante de tudo isso, Jesus
ainda convida a alegrar-se e exultar (v. 12), na certeza de que a sua proposta
de vida é a única viável para a construção de um mundo justo, solidário e
fraterno, em contraposição a todos os sistemas humanos já experimentados.
É, portanto, olhando para o perfil que Jesus
apresenta de si e exige que seus discípulos o assimile, assemelhando-se a Ele,
que queremos celebrar todos os santos e santas, conhecidos e anônimos que,
independente de reconhecimento eclesiástico, viveram e vivem as
bem-aventuranças nas mais diversas realidades de outrora e de hoje!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
muito bom
ResponderExcluirGostei muito,maravilhoso 👍
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