Celebramos, neste domingo, a
festa do Batismo do Senhor, concluindo o tempo do natal. O evangelho proposto é
Lc 3,15-16.21-22. O batismo, conforme
relatam os evangelhos, é um dos episódios da vida de Jesus que os estudiosos
mais consideram como um fato histórico, um evento real. Contribui para isso o
fato de ser um dos poucos acontecimentos presente nos quatro evangelhos
(explicitamente em Mateus: 3,13-17, Marcos: 1,9-11, e Lucas: 3,21-22; e
implicitamente em João: 1,19-34). Além da pluralidade literária, o que mais se tem
levado em conta ao aceitar o batismo de Jesus como um fato histórico são os
problemas de interpretação desse evento desde a Igreja primitiva. Se não se
tratasse de um evento concreto e importante da vida de Jesus, certamente os
evangelistas teriam evitado tratá-lo em seus respectivos escritos. Quais são
esses problemas? Ora, o batismo poderia levar as pessoas, inclusive muitos
teólogos, a imaginar que Jesus fosse também necessitado de conversão, como os
pecadores, e um homem inferior a João; essas interpretações aconteceram, de
fato, desde os primórdios, inclusive na comunidade do evangelista Lucas, a
primeira destinatária do evangelho de hoje.
O fato de estar presente nos
quatro evangelhos – de modo explícito nos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e
implícito em João – não significa que os evangelistas narraram o batismo de
modo igual; cada um narrou à sua maneira, conforme as informações recebidas de
suas fontes e as necessidades de suas respectivas comunidades. A pregação de
João estava gozando de um grande êxito (cf. Lc 3,1-14); ele pregava um batismo
de conversão (cf. v. 3) e proponha um jeito novo de viver, incentivando o povo
a produzir frutos (cf. v. 8), já que a religião judaica se encontrava em plena
esterilidade, com a decadência ética, moral e espiritual dos dirigentes do
templo de Jerusalém. A mensagem de João foi além do esperado: até mesmo
cobradores de impostos e soldados, pessoas abomináveis para o judaísmo da
época, se interessaram pela sua mensagem (cf. vv. 12-14). A pregação de João,
portanto, sinalizava que um novo tempo estava surgindo.
O povo vivia sufocado pela
dupla exploração: do império romano e do templo de Jerusalém; Roma cobrava
impostos em excesso e o templo exigia ofertas e dízimos também em excesso, em
nome de Deus. Por isso, a expectativa pela vinda do messias libertador
aumentava cada vez mais. Dessa expectativa do povo, muitos se aproveitavam, se
passando pelo messias, para roubar e explorar ainda mais. Por isso, as dúvidas
em relação a João. O povo já estava certo de que ele era, realmente, um enviado
de Deus, imaginando até que já fosse o messias, como inicia o evangelho de
hoje: “O povo estava na expectativa e todos se perguntavam no seu íntimo se
João não seria o Messias” (v. 15). Porém, João tinha plena consciência do
seu papel e da sua missão. De acordo com o evangelista, ele mesmo tratou de
esclarecer que não era o messias: “Por isso, João declarou a todos: Eu vos
batizo com água, mas virá aquele que é mais forte do que. Eu não sou digno de
desamarrar a correia de suas sandálias. Eles vos batizará no Espírito Santo e
no fogo” (v. 16). Esse esclarecimento era muito necessário, tanto
para os ouvintes diretos da pregação, quanto para a comunidade do evangelista e
os futuros leitores de sua obra, como nós; o próprio Lucas registra, em seu
outro livro (os Atos dos Apóstolos) que, mesmo quando João não era mais
confundido com o messias, o seu batismo continuava sendo realizado como se
fosse o batismo cristão, pois as pessoas não compreendiam a diferença, e isso
gerava confusão em algumas comunidades, como em Éfeso, por exemplo (cf. At
19,1-7). Por isso, a necessidade de fazer a distinção, usando algumas imagens.
Na distinção entre o seu
batismo e o que Jesus iria inaugurar depois, João esclarece a natureza do seu:
batiza com água, como um sinal externo de purificação e penitência; a água não
penetra no íntimo da pessoa; embora importante, permanece na exterioridade. Por
isso, é necessário que venha “aquele que é mais forte” para batizar “no
Espírito Santo e no fogo”; assim, o batismo de Jesus, praticado pelos
comunidades cristãs, inclusive a do evangelista, terá uma outra dimensão. “No
Espírito Santo” significa que esse batismo penetra no íntimo da pessoa e
realmente transforma, como o efeito do fogo. Embora o fogo seja também um
elemento externo, usado nos ritos cristãos posteriores (junto com a água),
possui uma força transformadora mais forte que a água. Se ambos os batismos
permanecessem no plano simbólico, o de Jesus ainda seria superior, considerando
o efeito visível do fogo. A verdadeira distinção entre os dois batismos, no
entanto, está no conferimento do Espírito Santo, e esse só pode ser conferido
por Aquele no qual o Espírito Santo realmente desceu, como mostra a sequência
do texto de hoje.
Com
a expressão “Eu não sou digno de desamarrar a correia de suas
sandálias”, João está fazendo alusão a Israel (e a humanidade inteira) como a esposa e Jesus como
o noivo que vem ao seu encontro; por isso, além de um gesto de humildade, por
reconhecer o seu papel, a expressão também contém um alto teor teológico. Aqui,
ele cita a lei judaica do levirato: o gesto de tirar a sandália era um rito que
significava apropriar-se do direito de tomar a mulher viúva como esposa, para
lhe dar descendência (cf. Dt 25,5-10; Rt 3,5-11). Ora, quando uma mulher ficava
viúva sem filhos, um de seus cunhados ou outra pessoa do clã, conforme a ordem
de idade, tinha o dever e o direito de tomá-la como esposa, para gerar
descendência com ela; em caso de recusa ou de negociação, a passagem desse
direito para um outro cunhado ou pessoa próxima, era feita com o rito do
“descalçamento”: o novo pretendente desamarrava as sandálias do titular,
assumindo o direito de casar-se com aquela mulher. Assim, João deixa claro que
não é ele o esposo, porque essa missão não lhe compete. O direito de fecundar
Israel é exclusivo de Jesus, para tornar novamente fértil aquela esposa
explorada e tornada estéril, como uma viúva, pela elite sacerdotal de Jerusalém
e pelo poder romano.
Infelizmente, a liturgia de
hoje salta alguns versículos (vv. 17-20), privando-nos de uma informação
importante para compreender o batismo de Jesus no contexto da catequese de
Lucas: a prisão de João Batista (cf. vv. 19-20). Para combater equívocos e
confusões a respeito dos papéis de João e Jesus, e os efeitos de seus
respectivos batismos, Lucas faz questão de tirar João de cena para poder
colocar Jesus em evidência; por isso, antes de apresentar Jesus indo ao
batismo, ele diz que João foi preso; os discípulos de João continuaram
batizando, mesmo após a sua prisão. A obra toda de Lucas (Evangelho e Atos dos
Apóstolos) tem as características de uma peça de teatro com as cenas e os personagens
bem delimitados. Nessa engrenagem, ele nunca coloca Jesus e João na mesma cena,
exceto na visitação, quando ambos ainda estavam nos ventres de suas respectivas
mães, Maria e Isabel (cf. Lc 1,39-56); tudo isso para deixar claro à sua
comunidade que, embora contemporâneos, eles fazem parte de tempos diferentes no
conjunto da história da salvação, como afirmará mais na frente: “A lei e os
profetas até João! Daí em diante, é anunciada a Boa Nova do Reino de Deus”
(Lc 16,16). Tudo isso reflete o cuidado do evangelista com a catequese da sua
comunidade, para não confundir João com Jesus. João é um personagem da antiga aliança, embora faça parte do processo de transição para a nova aliança. Em outras palavras, para Lucas, ele ainda faz parte do Antigo Testamento, como o último representante da lei e dos profetas.
Na continuação do texto temos a
confirmação do batismo de Jesus: “Quando todo o povo estava sendo batizado,
Jesus também recebeu o batismo. E, enquanto rezava, o céu se abriu” (v.
21). É importante a forma como passa essa informação: Jesus está junto com o
povo, não se separa. O povo estava lá por necessidade de conversão e de sentido
para a vida; Jesus não tinha necessidade disso. No entanto, por solidariedade,
ele se junta a esse povo; com isso, o evangelista antecipa a dinâmica da
atuação de Jesus: ele não pregará de púlpitos ou tronos, mas no meio do povo,
olhando no rosto das pessoas, tocando nas suas chagas, abraçando, dando a mão aos necessitados;
seu ministério será acessível a todos e todas. Um dos traços característicos de
Jesus apresentado por Lucas é a sua assiduidade na oração, desde o batismo até
a cruz (cf. Lc 22,46). Nesse intervalo, entre o batismo e a cruz, são
frequentes e significativos os momentos em que Lucas apresenta Jesus em oração:
enquanto cura (cf. 5,16), antes de escolher os doze apóstolos (cf. 6,12), antes
de fazer o primeiro anúncio da paixão aos discípulos (cf. 9,18), antes e
durante a transfiguração (cf. 9,28-29), e ainda ensina seus discípulos a orar (cf.
11,1-2); na paixão, a oração será ainda mais intensa (cf. 22,32; 22,39-46;
23,34.46). Com isso, Lucas revela a intimidade de Jesus com o Pai e apresenta
um modelo para a sua comunidade viver em constante oração, como é demonstrado
em diversas passagens do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. At 1,14; 1,24; 6,6;
etc).
Através da oração se cria
intimidade com o Pai e abre caminho para o Espírito Santo se manifestar: “E
o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma visível, como pomba. E do céu veio
uma voz: Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer” (v. 22). A
imagem do Espírito Santo assumindo a “forma corpórea” é uma novidade na
linguagem bíblica; embora a tradução litúrgica traduza por “visível”, o mais
correto é “forma corpórea”, de acordo com o termo grego usado pelo evangelista
(σωματικω =
somatikô); embora alguns estudiosos tenham tentado conciliar essa imagem com o
“pairar” do Espírito de Deus sobre as águas no princípio da criação (cf. Gn
1,2), ou com a pomba que Noé soltou da arca durante o dilúvio (cf. Gn 8,8),
essas interpretações já não são mais convincentes. O acontecimento é inovador
em tudo, até mesmo na simbologia. Ora, as imagens mais usadas para o Espírito
de Deus na Bíblia são o fogo e o vento, inclusive, o próprio Lucas os aplica no
episódio de Pentecostes (cf. At 2,1-13). Porém, tanto o fogo quanto o vento,
simbolizam o Espírito Santo pela força e capacidade de criação e transformação;
em Jesus essas imagens não teriam sentido, pois o Espírito não desceu sobre ele
para transformá-lo, mas apenas para confirmá-lo como o Filho amado do Pai, e
para tornar pública essa confirmação. O Espírito preenche e transforma quem é
carente dele; em quem já o possui em plenitude, como Jesus, apenas confirma.
Desde a sua geração na eternidade e encarnação no ventre de Maria, Jesus já
possuía o Espírito Santo em plenitude. A pomba evoca serenidade, tranquilidade,
paz e consolo; não causa assombro algum; é esse o sentido da manifestação do Espírito com
essa forma no batismo de Jesus: ele não foi transformado pelo Espírito naquele
momento, porque já era fruto desse mesmo Espírito.
Mais importante que a forma
corpórea da pomba, assumida pelo Espírito, é a comunicação restabelecida entre
a humanidade e Deus, não passando mais pela mediação das lideranças religiosas
de Jerusalém, mas somente pela pessoa de Jesus. O céu se abre, Deus fala e
afirma que o “seu bem-querer”, ou seja, a sua satisfação, não está nos inúmeros
sacrifícios oferecidos no templo de Jerusalém, mas no seu Filho Amado. Mesmo
com ecos antico-testamentários (cf. Is 42,1; Sl 2,7), a afirmação de Deus aqui
é completamente nova de significado, superando todas as expectativas e
promessas: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”. O messias
que povo esperava era apenas um servo de Deus e filho de Davi, o que seria um
mediador a mais. Deus envia o seu próprio Filho como único mediador. A voz que
sai do céu significa Deus falando diretamente com a humanidade. Isso é
realmente a inauguração de um novo tempo.
Que a recordação do batismo de
Jesus reforce em nós a necessidade de estarmos em sintonia com o Pai, ouvido a
sua voz com sensibilidade aos impulsos do Espírito Santo que se manifesta nas
diversas situações cotidianas. Que sejamos confirmados como filhos e filhas de
Deus, em seu amor, para viver como irmãos e irmãs.
Pe. Francisco Cornelio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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