Neste terceiro domingo do tempo
comum, começamos, de fato, a leitura sequenciada do Evangelho segundo Lucas na
liturgia dominical. O texto proposto – Lucas 1,1-4; 4,14-21 – contém duas partes:
o prólogo do Evangelho (1,1-4) e o primeiro trecho do discurso programático de
Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), inaugurando a sua vida pública e
pregação. Embora separadas por três capítulos, é inegável a unidade entre as
duas partes do evangelho de hoje, no contexto da liturgia, principalmente. Como o “Evangelho da Infância” (cf. Lc 1,5 –
2,52) e os relatos da missão de João Batista e do batismo de Jesus (cf. Lc 3)
já foram lidos durante os tempos do advento e do natal, e o episódio das
tentações será lido na quaresma (cf. Lc 4,1-13), é justo que o evangelho de
hoje tenha essa composição (1,1-4; 14-21).
Lucas é o único evangelista que
abre a sua obra com um prólogo literário; vale lembrar que o prólogo de João
(cf. Jo 1,1-18), é exclusivamente teológico. Um prólogo é o conjunto de
considerações iniciais que antecedem o texto propriamente. Literalmente,
significa “antes das palavras” (em grego προλογος
=
prólogos) ou seja, é o que antecede o escrito, e visa anunciar o plano da obra:
tema, método, destinatário e objetivos, de forma breve e objetiva. Era um
elemento fundamental na literatura greco-romana da antiguidade. Lucas escreve
seu evangelho cerca de cinquenta anos após a ressurreição de Jesus, quando já
não havia mais nenhum apóstolo vivo, as testemunhas autênticas dos
acontecimentos narrados. Ele reconhece não ser o primeiro a escrever sobre
Jesus: “Muitas pessoas já tentarem escrever a história dos acontecimentos que
se realizaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra” (1,1-2). Além das
tradições orais que circulavam nas comunidades, nessa época já haviam sido
escritos o Evangelho segundo Marcos, mais concentrado nas ações de Jesus, e um
outro, de origem desconhecida, mais focado nas palavras de Jesus, ambos
utilizados por Mateus e por Lucas.
Lucas não se dá por satisfeito
com o material existente escrito por outros, e resolve também escrever o seu: “Assim
sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o
princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo
Teófilo” (1,3). Como bom conhecedor das necessidades do seu tempo e dos
seus leitores futuros, ele reconhece a necessidade de apresentar um escrito
mais consistente, organizado e ordenado, não para contrapor, mas para reforçar
o que já era utilizado na catequese da suas comunidades, personificadas pelo
desconhecido destinatário, Teófilo. Certamente, novas dúvidas surgiam a
respeito de Jesus. O que era anunciado nas comunidades, embora sólido, pois
fora transmitido pelos apóstolos, as “testemunhas oculares”, já não era mais
suficiente. Era necessário, por isso, uma mensagem mais consistente para
Teófilo “verificar a solidez dos ensinamentos que havia recebido” (1,4).
É isso o que motiva Lucas a escrever a sua obra; a maior prova da sua
consistência é a continuidade em Atos dos Apóstolos: não basta dizer como Jesus
viveu e o que ele fez, mas também mostrar como as primeiras comunidades viveram
a sua mensagem após a ressurreição e ascensão.
A propósito de Teófilo, muito
tem se discutido a seu respeito; devido ao uso da forma de tratamento “excelentíssimo
ou ilustre (em grego: κρατιστος =
kratistós), cogitou-se que Teófilo fosse um alto funcionário do império romano,
convertido ao cristianismo. Considerando o nome “Teófilo” (em grego: Θεοφιλος = Theófilos), cujo significado é “amigo de
Deus” em grego, é mais provável que seja um personagem fictício, no qual o
evangelista projeta o leitor ideal da sua obra, ao mesmo tempo em que faz uma
crítica velada à filosofia, tão difusa no mundo greco-romano. Ora, filosofia
significa “amor ou amizade à sabedoria, ao saber”, e filósofo (em grego: φιλοσοφος = filósofo) significa “amigo da
sabedoria”. A verdadeira e necessária amizade para Lucas, portanto, não é com a
sabedora grega, tão difusa na época, mas com o Deus revelado em Jesus. Por
isso, o objetivo principal de sua obra é que cada leitor e leitora se tornem
autênticos(a) “Teófilos”, ou seja, amigos(a) de Deus.
Na segunda parte do evangelho
de hoje, nós temos a inauguração solene do ministério de Jesus na sinagoga de
Nazaré, em dia de sábado. Mas, antes disso, o evangelho nos oferece outras
informações importantes: “Jesus voltou para a Galileia, com a força do
Espírito” (4,14a). Ora, no batismo, Jesus fora confirmado como portador do
Espírito Santo (cf. 3,21-22); o mesmo Espírito pelo qual fora concebido no
ventre de Maria (cf. 1,35); após o batismo, fora conduzido pelo Espírito Santo
ao deserto, onde fora tentado pelo diabo (cf. 4,1-13). Foi, portanto, do
deserto, após as tentações, que Jesus voltou para a Galileia, a região mais
pobre e explorada de Israel, onde tinha se criado, e onde inicia sua vida
pública. O mais importante aqui, para o evangelista, é mostrar que tudo o que
Jesus faz e para onde vai, é motivado pelo Espírito Santo. Embora o episódio da
sinagoga de Nazaré seja o primeiro descrito após o batismo e as tentações, não
foi a primeira pregação da vida de Jesus, pois diz o evangelista que sua fama
já tinha se espalhado: “e sua fama espalhou-se por toda a redondeza”
(cf. 4,14b), pois “Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam”
(4,15). Certamente, havia grande expectativa para a pregação de Jesus em Nazaré,
onde vivia sua família.
Assim, diz o texto que “Ele
veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na
sinagoga no sábado, e levantou-se para fazer a leitura” (4,16). O sábado
era o dia de culto por excelência para o povo judeu. O culto na sinagoga
acontecia logo pela manhã, pois era grande a ânsia do judeu para escutar a Lei,
os Profetas e receber as bênçãos de Deus. Porém, o dia santo para o seu povo,
será o dia preferido de Jesus para criar polêmicas com o seus conterrâneos e
irmãos de religião, como mostram os evangelhos e, em especial, esse, como veremos
na liturgia do próximo domingo (cf. 4,21-30). Jesus inicia sua pregação “na
sinagoga em dia de sábado”, como também farão os seus discípulos-missionários
em Atos dos Apóstolos (cf. At 13,14; 17,1-2; etc). Porém, é na sinagoga, o
lugar de culto, onde a sua mensagem será mais rejeitada, conforme acontecerá
também com os discípulos-missionários em Atos dos Apóstolos. Assim, o
evangelista confirma Israel como destinatário primeiro da salvação, ao mesmo
tempo em que justifica a abertura aos pagãos: Israel, ou seja, os judeus,
majoritariamente, rejeitam, se fecham à Boa Nova de Jesus.
O culto da sinagoga iniciava
com a proclamação do “Shemá” (“Escuta, ó Israel: Iahweh nosso Deus...” cf.
Dt 6,4), a oração de Israel, por excelência, e depois era feita a leitura de um
texto da Lei, o ponto alto da liturgia e, em seguida, lia-se um texto dos
profetas e se fazia uma pequena homilia. Embora a estrutura fosse fixa, o seu
desenvolvimento era bastante flexível: para a leitura dos textos proféticos e a
homilia, priorizava-se pessoas de fora ou filhos da terra que moravam longe,
mas se encontravam no povoado de passagem; isso se dava, sobretudo, nos
pequenos povoados, onde a população era mais rude e carente de novidades, como
Nazaré, por exemplo; após o homilia, o pregador podia até perguntar se alguém
na assembleia teria algo a acrescentar (cf. At 13,15). Até então, Jesus era um
filho ilustre: sua fama tinha se espalhado (cf. 4,14), mas os seus conterrâneos
nazarenos ainda não conheciam sua pregação.
Como havia muita expectativa
entre os conterrâneos e parentes de Jesus para ouvi-lo, deram-lhe a
oportunidade de fazer a leitura e a pregação naquele sábado: “Deram-lhe o
livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito:
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para
anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos
cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para
proclamar o ano da graça do Senhor” (4,17-19). O texto citado por Lucas
como lido por Jesus é Isaías 61,1-2, um anúncio de salvação e consolo ao povo
recém-libertado do cativeiro da Babilônia. O primeiro objetivo do evangelista,
aqui, é apresentar Jesus como cumprimento e intérprete autêntico das
Escrituras. À luz das Sagradas Escrituras, Jesus confirma sua vocação e missão
de ungido, o messias de Deus para libertar definitivamente o seu povo.
A Boa Nova de Jesus está em
continuidade com o anúncio da salvação feito pelos antigos profetas de Israel. O
segundo objetivo é apresentar, de modo sintético, o programa de Jesus: o que
ele veio anunciar e quais são os seus destinatários primeiros. O evangelista
alerta sua comunidade a não perder de vista esse aspecto: os primeiros destinatários
da mensagem de Jesus são: os pobres, os prisioneiros, os cegos e os oprimidos;
essa lista representa os marginalizados e necessitados de um modo geral; é a
essas pessoas que a comunidade cristã deve olhar e dar atenção, em primeiro
lugar. A atenção a essas pessoas é o critério de verificação se uma comunidade
eclesial é fiel ou não ao programa de Jesus. Ora, a mensagem de Jesus comporta
mudanças radicais, enfatizadas no texto pelas imagens da “libertação dos
cativos e recuperação da vista aos cegos”; por isso, não é uma doutrina,
nem um conjunto de fórmulas, ritos e normas, mas um programa de vida que
comporta ações transformadoras.
O evangelista Lucas valoriza
muito os pequenos os detalhes e gestos de seus personagens, sobretudo de Jesus,
através dos quais enriquece a sua teologia. Por isso, observa que, “Depois
fechou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na
sinagoga tinham os olhos fixos nele” (4,20). Sentar-se, nesse contexto, é o
gesto de quem tem autoridade para ensinar. O gesto de fechar o livro é
explicado pelo versículo seguinte, quando começa a pregação: “Então começou
a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de
ouvir” (4,21); significa que a Escritura se cumpriu, o Antigo Testamento se
concluiu e, de agora em diante, a comunidade cristã tem um único horizonte:
Jesus e o seu Evangelho.
É para Jesus que a comunidade
deve olhar, ou seja, deve orientar-se somente pela sua mensagem. O “hoje”,
termo tão caro para Lucas, significa a urgência do Reino de Deus e da salvação
que esse comporta. “Os pobres, cativos, cegos e oprimidos” não podem mais
esperar. É necessário, portanto, “fixar os olhos” atentamente em Jesus, ou
seja, tê-lo como única fonte de vida, configurar-se a ele e ser também sinal e
instrumento de “libertação” e “recuperação de vista” para os “pobres, cativos,
cegos e oprimidos” de hoje e de sempre.
Pe. Francisco Cornelio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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