A liturgia deste quarto
domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, a continuidade da leitura do episódio
programático envolvendo Jesus na sinagoga de Nazaré, em sua primeira
manifestação pública entre os seus parentes e conterrâneos. Ao invés de
“discurso programático”, é preferível chamar de “episódio programático”, já que
o discurso propriamente dito foi muito curto, gerando um sério conflito, ao
qual o evangelista dá bastante relevância. O texto para hoje – Lucas 4,21-30 –
começa com o mesmo versículo que tinha encerrado no domingo passado: “Hoje
se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir” (v. 21). Ora,
o que hoje se cumpriu foi a passagem de Isaías 61,1-2 que Jesus tinha acabado
de ler: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres;
enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da
vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor”. A auto-apresentação de Jesus como profeta e
cumprimento das promessas e profecias do Antigo Testamento causou surpresa e
espanto entre os seus conterrâneos, como vemos na sequência do texto.
Conforme
já recordamos no domingo passado, essa não foi a primeira manifestação pública
de Jesus, mas a primeira em Nazaré, e a primeira registrada pelo evangelista
Lucas. Antes desse episódio, a fama de Jesus já tinha se espalhado pela
Galileia (cf. Lc 4,14), o que prova que seu ministério já estava em andamento;
porém, ele ainda não tinha pregado em Nazaré, a aldeia onde tinha se criado
(cf. Lc 4,16). Tendo sua fama se espalhado por toda a Galileia (cf. Lc 4,14),
obviamente tinha chegado também a Nazaré, gerando curiosidade e expectativa
entre os seus familiares e conterrâneos. Por isso, a primeira reação dos devotos
judeus de Nazaré, frequentadores da sinagoga, foi de admiração: “Todos
davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que
saíam da sua boa. E diziam: “não é este o filho de José?” (v.
22). Certamente, essa admiração estava acompanhada de uma boa dose de
desconfiança, sobretudo por causa da ousadia de Jesus, ao aplicar a profecia de
Isaías à sua própria pessoa, à sua missão.
O questionamento “não é este
o filho de José?” mostra que os conterrâneos de Jesus não viam nele as
características do messias que esperavam: um guerreiro libertador, promotor da
luta armada para expulsar os romanos e reconstruir o reino davídico. Como filho
de José, ele não deveria passar de carpinteiro, como o pai, segundo a
mentalidade resignada dos habitantes de Nazaré. Embora sedentos de libertação,
os nazarenos absorveram a ideologia do poder dominante: não acreditam na força
transformadora e libertadora dos pequenos; esperam que a libertação venha de
fora, quando na verdade está dentro de cada um e cada uma que se sente portador
do “Espírito do Senhor”, como Jesus (cf. Lc 4,18-19 = Is 61,1-2); os nazarenos se
comportam como cegos que não querem enxergar e cativos que não querem se
libertar. Como estavam no ambiente cultual, a sinagoga, esperavam que Jesus,
pregando, reforçasse os dogmas e tradições daquela religião, que exigisse mais
fidelidade aos preceitos da lei, que fizesse ameaças e exigências morais, como
faziam os demais pregadores do seu tempo. Jesus Pelo contrário, Jesus não fez
nada disso; apenas anunciou um mundo novo, propôs transformações urgentes, para
“hoje” (cf. Lc 4,21), sintetizadas nas imagens da profecia de Isaías: cegos
recuperando a vista e oprimidos sendo libertados; nesse mundo novo, proposto
por Jesus, os protagonistas não são os poderosos, mas os pequenos que se deixam
conduzir pela força transformadora do Espírito: os pobres, cativos, cegos e
oprimidos, como síntese dos destinatários preferenciais do Evangelho.
Percebendo que que na admiração
dos seus conterrâneos estava também a desconfiança, o próprio Jesus se antecipa
e revela a reprovação deles: “Jesus, porém, disse: “Sem dúvidas, vós me
repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Faze também aqui, em tua
terra, tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum” (v. 23). Mais uma
vez, o evangelista deixa claro que Jesus já tinha começado seu ministério antes
de ir a Nazaré, inclusive fazendo sinais e milagres em Cafarnaum, cidade por
quem os habitantes de Nazaré alimentavam uma certa rivalidade; ora, Cafarnaum
estava localizada às margens do mar da Galileia, era uma cidade comercial pela
qual transitavam pessoas de diversas origens, consideradas impuras; era uma
cidade aberta ao paganismo, algo inconcebível para a população conservadora de
Nazaré. Jesus conhecia essa situação e percebeu que seus conterrâneos não
aceitavam que ele realizasse sinais em um cidade de costumes tão pouco
dogmáticos.
O evangelista torna o episódio
paradigmático e programático em todos os sentidos: a dinâmica da vida de Jesus
é resumida e antecipada aqui; inclusive, o uso do provérbio “médico, cura a ti
mesmo”, é uma antecipação das ironias que Jesus sofrerá na cruz: “salva-te a ti
mesmo” (Lc 23,37-39). Das tradições de Israel, a que Jesus reivindica
constantemente para si é a tradição profética; as tradições da lei, que serviam
somente como instrumento de dominação da elite sacerdotal de Jerusalém, Jesus
as contestará com veemência, ao longo de seu ministério. Toda a sua vida
pública se alinhará aos profetas que, incansavelmente, anunciaram um mundo
novo, denunciando tudo o que impedia a sua plena realização, principalmente as
injustiças sociais e a hipocrisia religiosa.
Se o ponto de partida para o
conflito com seus conterrâneos foi a leitura de Isaías 61,1-2, Jesus aprofunda
ainda mais esse conflito com os exemplos dos profetas Elias e Eliseu: “De
fato, eu vos digo: no tempo do profeta Elias, quando não choveu durante três
anos e seis meses e houve grande fome em toda a região, havia muitas viúvas em
Israel, no entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a uma viúva em
Sarepta, na Sidônia. E no tempo do profeta Eliseu, havia muitos leprosos em
Israel. Contudo, nenhum deles foi curado, mas sim Naamã, o sírio”. (vv.
25-27). Com esses dois exemplos, Jesus mostra que a palavra e a ação de Deus
não são posses de um povo ou de um grupo, mas que seu amor é universal. A viúva
de Sarepta, favorecida por Elias com a multiplicação da farinha e do azeite e
pela ressurreição do seu filho (cf. 1 Rs 17), é uma prova de que o critério
para o amor de Deus não é a religiosidade da pessoa, mas a necessidade e
abertura. Da mesma forma, o exemplo de Naamã (2 Rs 5), um leproso, chefe do
exército do rei de Aram, reino inimigo de Israel; esse leproso foi curado por
Eliseu, o profeta sucessor de Elias.
Elias foi o profeta mais
respeitado e venerado pelo povo judeu. Foi o mais zeloso em relação ao
monoteísmo e à fidelidade ao Deus único e libertador; no entanto, não
aprisionou esse Deus nos esquemas da religião; o levou também para fora dos
limites de Israel. Seu sucessor, Eliseu, também não negou o amor libertador de
Deus a quem era visto como inimigo do seu povo. Com esses dois exemplos, Jesus
anuncia a tônica da sua mensagem: a Boa Nova não conhece limites, não é
propriedade de nenhuma pessoa, de nenhum um grupo, de nenhuma instituição; é
graça e dom para quem quer conhecer e receber. Essa dinâmica será mostrada de
modo ainda mais claro na segunda obra de Lucas, o livro dos Atos dos Apóstolos,
que mostrará a Palavra crescendo, se multiplicando e rompendo todas as
barreiras e condicionamentos socioculturais e religiosos.
Os exemplos de Elias e Eliseu
foram o estopim para o conflito: “Quando ouviram estas palavras de Jesus,
todos na sinagoga ficaram furiosos” (v. 28). Como consequência do
acirramento dos ânimos, partem para a ação violenta: “Levantaram-se e o
expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade
estava construída, com a intenção de lança-lo no precipício” (v. 29). Quer
dizer que a rejeição foi completa, total; não expulsaram apenas da sinagoga,
mas da cidade e, tudo isso, em dia de sábado (cf. Lc 4,16). Assim, o
evangelista denuncia os perigos do fundamentalismo religioso de todos os
tempos.
Com uma mentalidade fechada em
tradições e preceitos, os judeus de Nazaré repudiaram a proposta libertadora de
Jesus. Nessa cena, o evangelista projeta a paixão, que acontecerá em Jerusalém;
inclusive “inventa”, propositadamente, um monte para Nazaré, sendo que ela
estava numa planície; o objetivo é teológico, para compará-la com Jerusalém e
fazer uma prefiguração da paixão: Jesus será condenado pelos chefes religiosos
de Israel, num monte, fora da cidade. Podemos dizer que nesse episódio o
evangelista transforma a pequena Nazaré numa miniatura de Jerusalém, e o
conflito de Jesus com os seus habitantes em uma síntese de todo ministério de
Jesus. O principal acento, no entanto, está nos responsáveis: pessoas zelosas,
fiéis observantes dos pormenores da lei.
O evangelista deixa claro que
não são as forças conservadoras e opressoras que tem a última palavra; por mais
perversidades que pratiquem, essas forças, representadas pelos conterrâneos de
Jesus, não conseguem deter a força da Palavra e do Espírito do Senhor que movia
Jesus: “Jesus, porém, passando no meio deles, continuou o seu caminho”
(v. 30). Jesus supera a primeira tentativa de assassinato de que foi vítima,
simplesmente “passando pelo meio e continuando o seu caminho”. Também superará a
cartada final da classe dirigente, sacerdotes e governador (Anás/Caifás e
Pilatos), com a ressurreição, para continuar “passando no meio” através da
Palavra, a qual abre sempre caminhos de vida, de esperança e de libertação,
temática que Lucas desenvolve com mais precisão em Atos dos Apóstolos.
Pe. Francisco Cornelio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Emocionante essa homilia ...Ele esta no meio de nós!!
ResponderExcluirComo sempre esclarecedora e libertadora!
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