Dando continuidade à leitura do
Evangelho segundo Lucas, o texto evangélico proposto para a liturgia deste
quinto domingo – Lc 5,1-11 – apresenta dois passos importantes e decisivos da
ainda recente missão de Jesus: a abertura a ambientes e pessoas pouco apegadas
às tradições e à Lei, e o chamado dos primeiros discípulos. Após uma tentativa
fracassada de anúncio da Boa Nova em sua terra natal, Nazaré, terminada em
tentativa de homicídio (cf. Lc 4,29-30), como lemos no domingo passado, Jesus
retornou à Cafarnaum (cf. Lc 4,31), onde, aliás, já tinha realizado sinais e
milagres antes mesmo da sua pregação em Nazaré, sinal de que lá tinha
encontrado receptividade para sua mensagem (cf. Lc 4,14.23).
Embora haja um considerável
intervalo entre o evangelho de hoje e aquele do domingo passado (a liturgia
saltou Lc 4,31-44), os dois se relacionam, não por afinidade, mas por
contraste. O evangelista faz questão de contrapor a rejeição dos judeus
ortodoxos de Nazaré à acolhida da população pouco observante das leis que vivia
às margens do lago de Genesaré, sendo Cafarnaum a cidade símbolo dessa
população e dessa área geográfica. Enquanto os habitantes de Nazaré eram observantes
fanáticos da lei, a população de Cafarnaum e das cidades da costa do lago era
conhecida por ser pouco ortodoxa. Mesmo atuando em Cafarnaum, a pregação de
Jesus ainda estava bastante limitada ao âmbito sacro da sinagoga; aos poucos,
ele começou a afastar-se desse espaço, procurando outros cenários para a sua atuação
(cf. Lc 4,42), a ponto de começar a pregar às margens do lago, um dos passos importantes
da sua missão que o evangelho de hoje retrata.
Olhemos, então, para o texto: “Jesus
estava na margem do lago de Genesaré, e a multidão apertava-se ao seu redor
para ouvir a Palavra de Deus” (v. 1). Esse versículo é de suma importância
para a teologia e a catequese de Lucas; essa é a primeira vez que ele afirma
explicitamente que Jesus prega fora da sinagoga. Daqui para a frente, a
sinagoga será sinal de hostilidade; e toda vez que Jesus atuar em uma, haverá
confusão (cf. Lc 6,6-11; 13,1-17). As margens de um lago, considerado mar pelos
habitantes da região, era o lugar menos adequado para a escuta da Palavra de
Deus (os demais evangelistas chamam esse lago de Mar da Galiléia; Lucas é o
único que o chama de lago). Compondo “a multidão que se apertava”, sem dúvidas,
estavam pessoas impuras, marginalizadas, excluídas e proibidas de entrar nas
sinagogas; o objetivo dessa multidão era “ouvir a Palavra de Deus”.
Lucas é o evangelista que trata
explicitamente o ensinamento de Jesus como “Palavra de Deus” (em grego: ο λογος
του Θεου = hó logos tu Theú);
fazendo, inclusive, da “Palavra de Deus” o tema principal de sua dupla obra
(Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). No Evangelho, a Palavra de Deus
é a pregação de Jesus; em Atos, é a pregação dos apóstolos e discípulos, o
querigma. Assim, ele mostra a continuidade entre e reforça para a sua
comunidade que o anúncio coerente e fiel do ideal de vida proposto por Jesus e,
sobretudo, a vivência, é a realização da Palavra de Deus na história. Nas
sinagogas, tinha-se acesso a uma interpretação rígida e minimalista da lei;
quando Jesus quis fazer a palavra proclamada na sinagoga tornar-se viva e
dinâmica, foi expulso e quase morto (cf. Lc 4,14-30). As margens do lago, pelo
contrário, é um lugar de trânsito livre, por onde passam pessoas de diversas
origens, vivendo nas mais variadas situações; é em lugares assim que a Palavra
de Deus deve ecoar, como ensinou Jesus, e Lucas recordou para a sua comunidade
e seus leitores de todos os tempos.
Fora dos limites dos espaços
oficiais, a pregação exige dinamismo, criatividade e atenção às situações
concretas. Ver a realidade ao redor é decisivo para quem anuncia a Palavra de
Deus. Por isso, recorda o evangelista que “Jesus viu duas barcas paradas na
margem do lago. Os pescadores haviam desembarcado e lavavam as redes. Subindo
numa das barcas, que era de Simão, pediu que se afastasse um pouco da margem.
Depois sentou-se e, da barca, ensinava às multidões” (vv. 2-3). Jesus une
sua situação de pregador itinerante, desprovido de meios, à situação dos
pescadores desiludidos. Enquanto os pescadores lavam suas redes, depois de uma
pesca fracassada, Jesus cria um púlpito alternativo, ensinando a partir de uma
barca, porque a multidão que o escutava crescia cada vez mais.
A barca afastada da margem é a
primeira imagem da comunidade cristã empregada por Lucas, depois da figura de
Maria no chamado “Evangelho da Infância” (cf. Lc 1 – 2); ao contrário da
sinagoga, um edifício pronto e estruturado, a barca não oferece nenhuma
segurança e conforto; é sinal de vulnerabilidade e perigos, apontando como deverá
ser a Igreja futura: “em saída”. O conteúdo do ensinamento de Jesus não é
descrito por Lucas, aqui; mas é certo que era a “Palavra de Deus”; em Jesus, é
Deus mesmo quem fala, foi isso o que as multidões perceberam (cf. v. 1). Simão,
o dono da barca usada por Jesus, já era conhecido seu, embora ainda não fosse
um seguidor, propriamente. Jesus já frequentava a sua casa, onde havia curado sua
sogra (cf. Lc 4,38).
A pregação de Jesus não
comportava apenas discursos, mas também preocupações com as necessidades
concretas das pessoas. Percebeu que os pescadores não tinham feito uma boa
pescaria e, ao terminar a pregação, interviu também sobre eles, começando por
Simão, seu conhecido: “Avança para águas mais profundas, e lançai vossas
redes para a pesca” (v. 4). Avançar para águas mais profundas, aqui,
significa sair da superficialidade, tomar decisões e correr riscos. Como
pescador experiente, “Simão respondeu: ‘Mestre, nós trabalhamos a noite
inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”
(v. 5). Embora não fosse oficialmente um discípulo, Simão demonstra
consideração e respeito por Jesus: lhe chama de mestre, ou seja, o reconhece como
alguém que tem autoridade e, por isso, confia na sua palavra. Assim, o
evangelista ensina que confiar na palavra de Jesus implica a tomada de decisões
e iniciativas; essa não é uma palavra para ser apenas escutada e contemplada,
mas deve direcionar as nossas atitudes. Orientada pela palavra de Jesus, a
comunidade deve agir, inclusive se arriscando.
Tudo o que se faz na vida
pessoal e comunitária deve estar em sintonia com a palavra de Jesus; sem essa,
todo esforço é fatigar em vão. A vida da comunidade ganha sentido e os frutos
aparecem, quando essa se arrisca em atenção à palavra de Jesus que é a mesma
“Palavra de Deus”; por isso, quando os pescadores lançaram as redes orientados
por Jesus “apanharam tamanha quantidade de peixes que as redes se rompiam” (v.
6). No ideal de vida proposto para a comunidade inaugurada por Jesus, tanto a
abundância quanto as dificuldades são compartilhadas, por isso, “fizeram
sinal aos companheiros da outra barca, para que viessem ajuda-los. Eles vieram,
e encheram as duas barcas, a ponto de quase afundarem” (v. 7). O resultado
da pesca serve como parábola para ilustrar a diferença entre uma comunidade que
fatiga em vão, repetindo sempre as mesmas coisas, parada no tempo e no espaço,
e uma comunidade dinâmica que não tem medo de se arriscar em atenção à palavra
de Jesus.
À medida em que a confiança na
palavra de Jesus é alimentada, a fé amadurece e se solidifica, as convicções se
renovam, como aconteceu com Simão, protótipo dos Doze que serão constituídos
mais tarde e dos seguidores de todos os tempos: “Ao ver aquilo, Simão Pedro
atirou-se aos pés de Jesus, dizendo: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um
pecador” (v. 8). Essa é a primeira vez em que Simão vem chamado de Pedro,
no Evangelho segundo Lucas; até então, era chamado apenas de Simão (cf. Lc
4,38; 5,3.4). É o início de uma vocação decisiva para a comunidade cristã;
embora contraditório, esse pescador e pecador que cedeu a barca para Jesus
pregar às multidões é o mesmo que mais tarde se dará conta de que “Deus não faz
acepção de pessoas” (cf. At 10,34), e abrirá as portas da comunidade cristã
para acolher a todas as pessoas, independente da origem e das diferenças étnicas
e religiosas.
É importante perceber a
evolução na fé de Pedro: no início, tratou Jesus como mestre, um homem
respeitável; agora, o proclama como Senhor (em grego: Kýrios), ou seja, o
reconhece como Deus. A fé implica um processo de vivência e confiança para
amadurecer constantemente. É claro que Simão não sai pronto deste episódio;
serão muitos os seus fracassos que o evangelista irá recordar. O sentimento de
indignidade e pequenez do ser humano diante de Deus, aqui expresso pelas
palavras de Pedro, “afasta-te de mim, porque sou um pecador”, não é um
rebaixamento do gênero humano, mas uma maneira que os autores bíblicos
encontraram para expressar a grandeza de Deus. Essa linguagem é típica dos
relatos de vocação. Não apenas Simão Pedro ficou espantado, mas também os seus companheiros
de pesca: “É que o espanto se apoderara de Simão e de todos os seus
companheiros, por causa da pesca que acabavam de fazer” (v. 9).
Ao contrário dos demais
evangelistas (cf. Mt 4,18; Mc 1,16), que incluem também André entre os chamados
de primeira hora, Lucas parte somente com três: “Tiago e João, filhos de
Zebedeu, que eram sócios de Simão, também ficaram espantados. Jesus, porém, disse a Simão: “Não tenhas medo!
De hoje em diante, tu serás pescador de homens” (v. 10). Simão Pedro e os
dois filhos de Zebedeu constituem o núcleo fundante da comunidade de discípulos
e discípulas de Jesus; não por seus méritos, mas pela necessidade deles e pela
lógica de Deus que prefere o que é mais frágil. Simão, pela obstinação, por
isso é Pedro, Tiago e João pelo fanatismo violento (cf. Lc 9,54-56), estarão
sempre mais próximos de Jesus (cf. 8,51; 9,28); eles são os mais necessitados
de repreensão do mestre ao longo da caminhada e, por isso, mais necessitados de
uma catequese mais intensa.
Como eram pescadores, Jesus
procura uma figura de linguagem acessível a eles para expressar o seu chamado:
ser “pescadores de homens”. Porém, é uma pesca ao contrário, o que as traduções
não conseguem expressar adequadamente. Na atividade pesqueira convencional,
pesca-se para matar, ou seja, retira-se os peixes de seu habitat natural para a
matá-los e transformá-los em alimentos. É uma imagem que pode facilmente, como
tem sido feito, tornar-se um estímulo ao mero proselitismo. Na verdade, o
evangelista emprega um verbo que significa “tirar vivo” ou “capturar para a
vida”, “resgatar” (em grego: ζογρεω = zôgreo)
quem vive em perigo. Ora, na cultura semítica, o mar era o símbolo do caos, do
perigo, daquilo que é demoníaco; representava a morte. Empregando essa imagem,
Jesus está responsabilizando a comunidade cristã, não a fisgar pessoas, como se
a pregação fosse uma rede ou um anzol, mas a ser sinal de vida, indo até as
situações de perigo e vulnerabilidade, onde a vida humana está ameaçada, e
restituir a dignidade ferida ou negada, contribuindo para a restauração da vida
digna e plena. Jesus pediu que aqueles três homens se dedicassem ao cuidado das
pessoas, com a mesma determinação com a qual desenvolviam a profissão de
pescadores. Por isso, a imagem da pesca aplicada por Jesus, segundo o
evangelista, deve ser interpretada com muito cuidado.
A resposta foi positiva: “Então
levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus” (v. 11),
e assim deu-se início ao seu grupo de seguidores. Neste pequeno grupo, apenas
três, está a base para os Doze e para os seguidores e seguidoras de todos
tempos. Enquanto Jesus limitava sua atuação às sinagogas, o efeito de sua
pregação e a eficácia de sua palavra eram bastante curtos; tendo procurado
novos cenários (as margens do lago) e abandonado os púlpitos institucionais
(passando a pregar de uma barca vulnerável), as multidões aumentavam para
escutá-lo, e os primeiros seguidores foram chamados. É esse o dinamismo que
deve estar presente sempre na comunidade.
Pe. Francisco Cornelio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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