Todos
os anos, na liturgia do domingo de ramos, faz-se a leitura de uma das
narrativas da paixão de Jesus. Neste ano, temos a oportunidade de ler e
refletir a partir do relato de Lucas. Pela sua extensão, a liturgia salta
alguns versículos, propondo a leitura à partir do relato da última ceia, e
terminando com o sepultamento: Lc 22,14 – 23,56; mesmo assim, a leitura
proposta continua longa, totalizando 113 versículos; essa longa extensão,
obviamente, nos impede de fazer um comentário pormenorizado de cada versículo.
Por isso, procuraremos colher a mensagem global do texto e, na medida do
possível, enfatizar alguns aspectos específicos de Lucas, já que é o evangelista
que mais apresenta particularidades, em relação aos demais sinóticos (Marcos
Mateus).
Os relatos da paixão e morte de Jesus constituem o núcleo de base
da redação dos evangelhos. Embora o nosso foco nesse ano seja especificamente o
relato de Lucas, os aspectos introdutórios que abordaremos valem também para os
demais evangelhos. As primeiras páginas escritas dos livros que hoje conhecemos
como evangelhos, foram exatamente as narrativas da paixão e morte de Jesus.
Como a catequese e a vida litúrgica das primeiras comunidades giravam em torno
do anúncio do Cristo Ressuscitado, aos poucos, surgiram muitas dúvidas a seu
respeito, tipo: “Como ele viveu? Como foi a morte daquele que ressuscitou?”.
Diante de tais questionamentos, a primeira necessidade foi contar como se deu a
morte de Jesus, pois só ressuscita quem passa pela morte. Logo, era necessário
contar como Jesus morreu.
Com as primeiras perseguições, tanto das autoridades romanas
quanto dos líderes religiosos judeus, a morte se tornava cada vez mais presente
nas comunidades, e o anúncio e a adesão ao nome de Jesus passava a ser sinal de
perigo. Para quem não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez mais difícil
perseverar na fé, acreditar no seu nome e na sua ressurreição. Para animar e
fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada melhor que
reconstruir a história da perseguição e morte de Jesus, enaltecendo sua
fidelidade aos propósitos do Pai e sua resistência. Os evangelhos, enquanto
livros, surgiram, portanto, como resposta às dúvidas e crises vividas pelas
primeiras comunidades. É claro que toda a vida de Jesus, desde o início com a
pregação do Batista, é edificante para as comunidades cristãs. Mas, a memória
da sua paixão foi a primeira necessidade para dar credibilidade ao anúncio da
ressurreição. Ao ler o relato da paixão, portanto, estamos lendo o ponto de
partida do evangelho escrito.
Tendo acesso hoje aos textos inteiros dos evangelhos, no caso de
Lucas desde o anúncio do nascimento de Jesus, percebemos que o relato da paixão
que estamos lendo mostra a conclusão de uma vida que não poderia ter um fim
diferente. Ora, desde o início, a mensagem de Jesus foi uma alternativa aos sistemas
vigentes, político e religioso. Logo, seu desfecho final foi o rechaço da parte
desses sistemas. Durante toda a sua trajetória terrena, Jesus praticou e pregou
o que a religião e o sistema político da época não aceitavam: o amor ao
próximo, a justiça, o cuidado com os mais necessitados, a solidariedade, a
acolhida às mulheres e excluídos em geral, e o bem acima de tudo. Uma vida
marcada por estas características não poderia ter outro fim, senão a condenação
e morte precoces, pelos sistemas que não compactuavam com essa mensagem. É
importante perceber que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi
predestinação, nem acidente, mas consequência de uma trajetória marcada pelo
inconformismo diante das atrocidades do sistema. Jesus não se adequou aos
padrões de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, como exigia o
poder romano, nem um devoto fiel, como exigia a religião judaica, pois sua
obediência e fidelidade estava toda voltada para o Pai do céu.
O
texto que estamos lendo situa Jesus com seus discípulos em Jerusalém, para onde
tinham ido celebrar a páscoa, a festa dos judeus por excelência. Jesus é
condenado à morte nessa cidade; ao dirigir-se para lá, Jesus já tinha
consciência do que iria acontecer, pois ele mesmo tinha advertido durante a
viagem que, historicamente, “Jerusalém mata os profetas e apedreja os que
foram enviados” (Lc 13,34); como ele pertencia a essas duas categorias, sua
condenação era esperada. Na verdade, podemos dizer que, em Jerusalém, Jesus
recebe a sentença, mas a sua condenação começou ainda em Nazaré, na sinagoga,
quando se apresentou como “ungido, portador do Espírito do Senhor para
anunciar a Boa-Nova aos pobres” (cf. Lc 4,18-30). Sua morte trágica,
portanto, foi consequência de uma inteira existência marcada por uma opção
radical pelas causas do seu Pai, a quem foi fiel e obediente até às últimas
consequências.
A
páscoa, festa em que os judeus faziam memória da libertação da escravidão do
Egito, tinha como ponto alto a ceia pascal, na qual comia-se o cordeiro
imolado, símbolo da festa. Ciente de que era a sua última, estando à mesa com
os discípulos (cf. Lc 22,14-20), Jesus mesmo se apresenta como cordeiro, doando
a sua existência. Ele diz que “desejou ardentemente comer aquela ceia”
(Lc 22,15); essa expressão significa a sua paixão e zelo para consumar a obra
do Pai; é claro que nem ele e nem o Pai desejaram a sua morte, mas essa era uma
realidade inevitável, àquela altura, pois em seu ministério tinha colocado em
confronto dois projetos: o projeto de vida, idealizado pelo Pai, marcado pela
prática constante do amor, e o projeto de morte, sustentado pelas instituições
religiosa e política, marcado pelas disputas de poder, pela corrupção, opressão
e violência. Por isso, aquela ceia, sendo a última, fora desejada por ele com
grande paixão.
Dois
fatos marcantes e dramáticos, certamente até mais dolorosos do que a cruz,
foram vividos por Jesus logo após a ceia: o anúncio da traição de Judas (cf.
22,21-23), e a disputa por poder pelos discípulos, o que revelava pouca
compreensão do que lhes tinha ensinado até então (cf. 22,24-30). Lucas é o
único evangelista que mostra Jesus chamando a atenção dos discípulos sobre
o perigo da ambição e a sede de poder no contexto da última ceia, e propondo o
serviço como resposta. Os outros evangelistas sinóticos fazem isso durante o
ministério (cf. Mc 9,33-34; 10,35-45; Mt 20,20-28). Isso revela que o apego ao
poder nas estruturas eclesiais é um problema que tem suas raízes ainda nas
origens do cristianismo. Isso, obviamente, prejudica a credibilidade e a
eficácia do anúncio. Por isso, a recomendação de Jesus para que os discípulos tenham
somente ele como exemplo, e não imitem jamais as estruturas de poder e as
formas como esse é exercido pelos “reis das nações, chamados de benfeitores”
(cf. 22,25). Quando o serviço é substituído pelo poder em uma comunidade, é
sinal de que essa se afastou do projeto de Jesus.
Outro
fato mais doloroso para Jesus foi, sem dúvidas, a negação de Pedro (cf. 22,31-34.54-60).
Também esse fato mostra o quanto os discípulos tiveram dificuldade em assimilar
a proposta de vida de Jesus. Mesmo após tantos ensinamentos, durante cerca de
três anos, desde o início na Galileia, eles chegaram em Jerusalém ainda sem
compreender nem aceitar o destino de Jesus. À debilidade de Pedro, bastou um
olhar sincero de Jesus para a sua conversão: “então o Senhor se voltou e
olhou para Pedro. (...). Então Pedro saiu para fora e chorou amargamente”
(22,60a.62). Quando o olhar de Jesus é correspondido, a conversão acontece. Esse
olhar não foi de condenação, mas de compreensão da fragilidade humana; o choro
de Pedro, marcado pelo remorso, é a prova da necessidade constante de conversão
no seio da comunidade. Às vezes, a conversão só é exigida de quem vem de fora,
esquece-se que é nos membros da comunidade que mais há necessidade, pois são
esses os que mais negam a Jesus, quando deixam de reproduzir o seu amor nas
relações, na maneira de viver e na confiança ao Pai.
Um
dos traços mais característicos de Jesus em seu “retrato” pintado por Lucas é a
prática constante da oração. Para esse evangelista, a oração é essencial, por
isso, ele diz que todos os momentos importantes da vida de Jesus foram marcados
pela oração, começando pelo batismo (cf. Lc 3,21) até a paixão, tanto no monte
das Oliveiras (cf. Lc 22,39-46), quanto no processo (cf. 23,34), e até na própria
cruz (cf. Lc 23,46). Sua oração durante a Paixão é um reforço dos itens
essenciais do Pai Nosso: “Que seja feita a tua vontade” (cf. 22,42); “para não
cair em tentação” (cf. 22,46); “perdoa-lhes” (cf. 23,34). Para ser autêntica e
eficaz, a oração depende necessariamente de levar em conta a vontade do Pai.
O duplo julgamento de Jesus, um político e outro religioso, ou
seja, diante do sinédrio (cf. 22,66) e de Pilatos-Herodes-Pilatos (cf. 23,1-25),
mostra a covardia e a hipocrisia da união das forças hostis quando tem um inimigo
em comum, pois os poderes romano e judaico não se suportavam. O sinédrio, órgão
jurídico máximo do judaísmo, o acusa de blasfêmia, e ao poder romano ele será
denunciado como subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei. Esses dois
poderes estavam viciados na corrupção, no suborno e na mentira; mantinham um
relacionamento de conveniência, tendo o povo pobre como alvo de suas cobiças. O
movimento de Jesus surgiu como alternativa a tudo isso; logo, a repressão seria
inevitável.
O
outro traço marcante de Jesus que Lucas evidencia ao longo de toda a sua obra,
a misericórdia, também é destacada no drama da paixão. Se ele veio ao mundo
para trazer anunciar a Boa-Nova, veio para manifestar o amor do Pai, isso o fez
até as últimas consequências, amando e perdoando. Pede perdão ao Pai pelos seus
algozes (cf. 23,34), e faz da cruz um sinal de conversão e salvação. Foi crucificado
entre dois malfeitores, pois não sabemos se eram ladrões como transmitiu a
tradição, poderiam também ser assassinos, uma vez que o termo empregado pelo evangelista
(em grego: κακούργος
- kakúrgos)
designa o bandido em geral; da cruz, ele continua a salvar. Aqui, merece
destaque mais uma particularidade de Lucas: é típico dele apresentar dois
personagens juntos com comportamentos opostos: Marta e Maria (cf. 10,38-42), o
pobre Lázaro e o rico avarento (cf. 16,19-31), o fariseu e o publicano (cf.
18,9-14). Ele repete essa técnica literária com os dois malfeitores
crucificados: um deles, repete o discurso das autoridades e da maioria, e
escarnece de Jesus; o outro, percebe que Jesus está sendo injustiçado e vê
n’Ele a possibilidade de salvação, por isso, suplica-lhe: “Jesus, lembra-te
de mim quando entrares no teu Reino” (23,42). A esse, Jesus dá a mais
preciosa das garantias: “Ainda hoje estarás comigo no paraíso” (23,43).
Para
quem acredita em Jesus e aceita compartilhar com ele a sua vida, a salvação é
sempre um acontecimento do presente, do “hoje”, uma palavra cara para a
teologia de Lucas, desde o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores (cf.
2,11); na sinagoga de Nazaré, a Escritura se cumpriu “hoje” (cf. 4,21), a
salvação entrou “hoje” na casa de Zaqueu (cf. 19,9). Portanto, a salvação não é
uma realidade futura, mas é sempre atual; se salva quem faz comunhão com Jesus
hoje, da situação existencial. Para o malfeitor crucificado, a salvação
aconteceu em um momento até inesperado. O importante para o evangelista e para
nós é que da manjedoura até a cruz, a vida de Jesus foi salvar, fazer o bem,
como dirá Pedro em Atos dos Apóstolos (cf. At 10,38). Salvar, acolher e amar é
fazer a vontade do Pai; por isso, na cruz, sofrendo dores, o último grito de
Jesus é de confiança no Pai, sabendo que lhe foi fiel até as últimas
consequências: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (23,46).
Certamente, o diálogo salvífico com o malfeitor ajudou Jesus dar o seu último
grito com mais convicção ainda, sabendo que até ali, a vontade do Pai estava
sendo feita, não porque o seu Filho único estava morrendo, mas porque até
morrendo, esse Filho salva.
Para
o sepultamento, entra em cena um novo personagem, surpreendente até, José de
Arimatéia, membro do sinédrio. É interessante esse detalhe, pois fora o
sinédrio, o principal responsável pela condenação de Jesus; porém, mesmo ali
tinha pessoas boas. Segundo Mateus, esse homem se tornou até discípulo de Jesus
(cf. Mt 27,57); isso mostra que as generalizações são sempre perigosas; ninguém
pode ser julgado pelo grupo ou movimento ao qual pertence. José de Arimatéia
alivia o drama, dando sepultura digna para Jesus (cf. 23,50-53), quando era
costume deixar os condenados pregados na cruz, sofrendo até morrer e, depois de
mortos, ainda continuavam crucificados até serem devorados pelas aves de
rapina. A cruz era uma pena tão cruel, que quem passava por ela não tinha
direito sequer à sepultura; por isso, o local da crucifixão se chamava “lugar
da caveira”, pois era um ossuário a céu aberto.
Por
último, recordamos a presença das mulheres, também uma categoria por quem Jesus
tinha grande simpatia no evangelho de Lucas. As mulheres são as pessoas mais
perseverantes em todo o drama da paixão (cf. 23,55) e, por isso, serão as
primeiras testemunhas da ressurreição. Enquanto os discípulos saem de cena com
medo, muito cedo, o último a aparecer foi Pedro, e mesmo assim chorando, as
mulheres perseveram até o fim, são as mais solidárias. Na verdade, elas
reconheciam o que Jesus tinha feito por elas; até então, nenhum líder popular
religioso tinha acolhido tanto às mulheres, promovido a emancipação e as
aceitado como discípulas. Jesus deu vez e voz às mulheres, por isso elas não
desistiram dele em nenhum momento: resistiram ao drama da paixão, participaram
do sepultamento e testemunharão a ressurreição em primeira mão.
Compreendendo a fidelidade com que Jesus abraçou o projeto de
tornar o Reino de Deus acessível a todos, é possível perceber que a morte não é
capaz de destruir a vida de quem se dedica dessa maneira ao bem de todos. Em
meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de
seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor
sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai
que ele veio revelar não poderia ser escondido. A cruz veio, portanto, como
consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, nele, ao invés de ser
simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de
reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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