A liturgia
da Quinta-feira Santa propõe, todos os anos, a leitura de João 13,1-15, texto
que narra o episódio do lava-pés. Essa cena é exclusivo do Evangelho segundo
João e, certamente, é uma das passagens mais significativas de todo o Novo
Testamento. Desde os primeiros séculos, tem marcado o cristianismo, recebendo
diversas possibilidades de interpretação. Antes de tudo, podemos dizer que é um
texto comprometedor, pois mostra que, no ápice da sua existência terrena, Jesus
propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença
a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato. A localização do
texto e o contexto da cena reforçam ainda mais a sua importância: esse episódio
serve para delimitar a divisão clássica do Evangelho segundo João em dois
livros, “Livro dos Sinais” (Jo 1 – 12) e “Livro da Glória” (Jo 13 – 21), e faz João
introduzir a narrativa da paixão com um gesto tão marcante de Jesus.
Apresentamos
uma pequena contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o
texto. A princípio, pode nos causar espanto a diferença entre João e os demais
evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao
contrário dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que dedicam poucos versículos
à ceia, João dedica nada menos que cinco capítulos: 13, 14, 15, 16 e 17. Ao
longo desses capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus,
ministrada com gestos e palavras, numa espécie de testamento, cujo tema central
é o amor e o serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade
cristã. No Evangelho de João, não há nenhum aceno à “consagração” do pão e do
cálice, como nos demais; por sinal, durante a ceia, o pão só é mencionado na
descrição da traição de Judas (cf. 13,18.17.26.27.30). Essa ausência de
referências ao pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João
já havia apresentado em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães”
(cf. 6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto
apresentando como o “pão da vida” (cf. 6,26-66). Por isso, já não havia mais
necessidade de fazer uma nova catequese sobre o pão e sobre a entrega de Jesus
como alimento, uma vez que essa já tinha sido feita. O texto que a liturgia
propõe é a primeira parte do longo relato da ceia.
O texto
começa com um indicativo teológico-temporal importante: “Antes da festa
da páscoa” (v. 1a). O evangelista não pretende negar o contexto pascal
no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas pretende diferenciar, ou seja, quer
dizer que a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A
páscoa de Jesus não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de
exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui:
aquela que será celebrada um ou dois dias depois pelos praticantes da religião
oficial perdeu a sua validade, está caduca e vencida. Na páscoa do templo, o
centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros,
enquanto na páscoa de Jesus com sua comunidade se celebra o triunfo da vida em
forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há
morte, há doação de vida por amor. Morte é coisa da antiga aliança; na nova
aliança, há doação de vida. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma
novidade: Jesus inaugura uma nova páscoa, subversiva, por sinal; é essa que a
comunidade cristã deve celebrar.
Ao longo
de todo o Evangelho, João criou um clima de suspense em relação à “hora de
Jesus” (cf. 2,4; 12,23). Pois bem, essa hora chegou: “sabendo Jesus que
tinha chegado a sua hora” (v. 1b). É a hora de Jesus glorificar ao
Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. O Pai que não se
sentia glorificado com o falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez
que esse fora transformado em casa de comércio (cf. Jo 2,16ss), recebe de Jesus
o verdadeiro culto: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os
até o fim” (v. 1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o
fim”. “Amar até o fim” significa a
intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou de modo
extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive entre os
seus na comunidade. Das falsas aclamações e ritos vazios celebrados no templo,
o Pai estava cansado. Jesus recupera a essência do culto e a transmite à comunidade:
o amor-serviço.
Continuando,
diz o evangelista que “Estavam tomando a ceia” (v. 2a). A ceia não
representa apenas o consumo de alimentos, mas significa comunhão e intimidade,
sobretudo no contexto pascal; é o momento primordial da vivência do amor-comunhão.
Porém, Jesus realiza uma ceia alternativa ao ritual judaico. Nessa ceia de
Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na maior sinceridade e
transparência; por isso, o evangelista menciona o episódio lamentável da
traição de Judas (cf. v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre para acolher
ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no seio dessa
comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas outrora, e tantos nas
gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante do risco
de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre aqueles “amados até o
fim”; ele perdeu a comunhão com Jesus quando abandonou o seu projeto e se
aliou ao sistema dominante; o evangelista é enfático nesse sentido: “o diabo
já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de
entregar Jesus” (v. 2bc). Ora, Jesus seria capturado, independentemente da
traição de Judas, pois há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o
almejavam; daquela páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado
e cúmplice do poder que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre
que o cristianismo permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que
silencia diante das injustiças, está permitindo que o “diabo seja posto em
seu coração”.
A oferta
do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus começou a se materializar quando
ele “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a
na cintura” (v. 4). Certamente, foi grande o espanto e a curiosidade
gerada nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em
público significava renunciar ao prestígio e à dignidade pessoal, conforme a
mentalidade da época; amarrar uma toalha na cintura significava improvisar um
avental e colocar-se em atitude de serviço, assumindo a condição de servo. O que
se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Com essa descrição,
o evangelista deixa cada vez mais clara a oposição de Jesus à liturgia oficial
do templo: a indumentária dos sacerdotes do templo eram um impedimento ao
serviço, com tantos adornos; ao invés disso, Jesus usa um avental improvisado de
uma toalha, mostrando que não pode haver impedimento para o serviço. Esse gesto
ensina que na comunidade cristã o serviço prevalece sobre o rito.
Na
sequência, o texto diz o que Jesus fez após deixar de lado o manto e pôr-se em
atitude de serviço: “Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés
dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v.
5). Assim como os leitores ainda hoje ficam perplexos com a descrição dessa
cena, muito mais ficaram os discípulos que estavam com Jesus. Aqui devemos
considerar o ambiente e a situação histórica na época: lavar os pés antes das
refeições – embora o evangelista descreva o gesto acontecendo já durante a
refeição – era uma regra básica de higiene no antigo Oriente, sobretudo, porque
as estradas eram bastante precárias, as sandálias muito simples, o que deixava
os pés sempre sujos, empoeirados. Além do estado permanente de sujeira dos pés,
devido à simplicidade das sandálias e condições das estradas, as refeições não
eram feitas em mesas altas como as de hoje, nem os comensais se sentavam em
cadeiras, sobretudo nos ambientes mais simples. A mesa, geralmente, era apenas
um tapete ou uma esteira estendida ao chão e, ao seu redor, sentava-se em
almofadas ou diretamente no chão, o que deixava os pés muito próximos da comida.
Por isso, lavar os pés antes das refeições era uma exigência básica de higiene.
O lava-pés
era também um gesto de hospitalidade e acolhida: ao receber uma visita, o dono
da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés. A grande novidade do
gesto de Jesus está na sua autoria: no cotidiano, esse papel era próprio dos
escravos; em ocasiões especiais, a mulher lavava os pés do marido, e o dono da casa
lavava os pés de convidados ilustres, em sinal de respeito e reverência, mas
isso era raro. Às vezes, também alguns mestres (rabis) exigiam que seus discípulos
lhe lavassem os pés. Mas, no dia-a-dia, eram os escravos quem cumpriam esse
serviço considerado humilhante. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte
completamente os valores: sendo ele Mestre e Senhor (cf. vv. 13-14), fez o que
era típico do escravo (ou do discípulo). Com esse gesto, Jesus diz que fica
abolida a hierarquia na comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é
substituída pelo serviço. Assim, ele ensinou aos discípulos de outrora e de
sempre que eles devem estar dispostos a servir ao próximo em suas necessidades
mais simples e básicas do dia-a-dia, inclusive nas mais humilhantes, como lavar
os pés.
É claro que
houve reação dos discípulos à atitude de Jesus. O primeiro a protestar foi
Simão Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés” (v. 8). Ora, para
quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um futuro “Rei de Israel”, deve
mesmo ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação;
o que Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas
pretensões de poder. A reação de Pedro revela também a resistência dos
oprimidos nos processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo
impossível para quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e
pequenos, súditos e chefes, e acabou naturalizando essas condições; Jesus com
suas palavras e gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo. O
mundo desigual, imposto pelo sistema e respaldado pela religião, estava naturalizado
na visão de Pedro; a isso, Jesus combate, pois essa mentalidade não cabe na sua
comunidade, enquanto embrião de um mundo novo, justo, fraterno, igualitário e
solidário.
O outro
motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de
Jesus: se o mestre lava os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o
mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se
não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: “Jesus
respondeu: Se eu não te lavar não terás parte comigo” (v. 8b). Aceitar
um mestre servo e se fazer servo com ele e como ele é condição para fazer parte
da comunidade cristã. Após a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não
compreendeu: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as
mãos e a cabeça” (v. 9). Com essa resposta, Pedro quis desviar o foco
da proposta: quis transformar a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de
purificação, um a mais entre os muitos que os judeus já praticavam e que Jesus
tanto combatia. Pedro não aceita a igualdade e não admite ter que servir ao
próximo com a mesma intensidade com que Jesus servia. Ora, transformando a
atitude do lava-pés em um novo rito de purificação, ele estaria se isentando do
compromisso com o próximo e ganhando mais um mecanismo de dominação ideológica,
contrariando o ensinamento de Jesus. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou
seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a
revolução de valores e as consequências que essa implica.
Mesmo com resistência
nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: “Depois de ter lavado os
pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo” (v. 12). Sentar-se à mesa
era um direito exclusivo das pessoas livres. Sentar à mesa e servir eram papéis
incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não
se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o
serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão
de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há
espaço para todos, principalmente para os que servem. Não pode haver divisão de
classes na comunidade, porque todos são iguais: o que senta à mesa, serve, e o
que serve, senta à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora
papel também da pessoa livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a
necessidade. As divisões hierárquicas não tem espaço na comunidade cristã,
porque nessa prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as
necessidades do ser humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a
poeira dos pés, até as mais complexas, como dar a própria vida por amor.
Para os
discípulos, não era fácil abraçar uma nova mentalidade, ainda mais tão
revolucionária quanto a de Jesus. Com essa inversão de papéis, Jesus fazia
desmoronar nos discípulos os planos de grandeza e projetos de poder que eles
tinham cultivado até então. Ora, eles não sonhavam com uma mudança de sistema,
um novo modo de organização para a sociedade e a religião. Queriam que as
estruturas de poder continuassem as mesmas, mudando apenas as lideranças: ao
invés dos romanos, que fossem eles, os discípulos do Messias, que controlassem
a vida do povo, mas com os mesmos mecanismos de dominação: exército, impostos, divisões
de classe e uso da violência quando a estabilidade estivesse ameaçada. Até os
últimos momentos de convivência essa mentalidade prevaleceu. Por isso, Jesus dedicou
tanto tempo na última ceia para catequizá-los e promover neles a consciência de
uma nova ordem, partindo do seu exemplo: “portanto, se eu, o Senhor e
Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros.
Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (vv. 14-15).
Jesus em
sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não
pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, pois todos
e todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de
paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma
mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus,
e distante dos valores do Evangelho. Jesus celebrou, assim, a páscoa da
subversão: substituiu o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa
igualitária, na qual tudo deve ser orientado a partir do amor-serviço. Dessa comunidade
não pode fazer parte quem prefere alinhar-se aos poderes que impedem um mundo e
uma sociedade compatíveis ao modelo igualitário e fraterno proposto por Jesus.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Uma reflexão profunda, original e evangélica!
ResponderExcluirMuito boa reflexão, contribuição importante para todos nós Cristãos.
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