Todos os anos, o Evangelho do segundo
domingo da páscoa é João 20,19-31, texto que apresenta a continuidade dos
acontecimentos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da
ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo, é
necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado,
que apresentava a comunidade de discípulos e discípulas completamente
desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até
mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (cf. Jo 20,1-3). Naquela ocasião,
o evangelista dava sinais de uma nova criação, um mundo em gestação, embora
ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (cf. Jo
20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o
Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles
interpretou a ausência do corpo do sepulcro como sinal da ressurreição e
acreditou, o Discípulo Amado (cf. Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a
acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (cf.
Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto empregado pela
liturgia do domingo passado.
Da madrugada do primeiro
dia, quando ainda estava escuro (Evangelho do domingo passado), passamos para o
anoitecer, como diz o texto de hoje: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro
da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os
discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: A paz
esteja convosco” (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com
o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos
discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma natural
dispersão. Provavelmente o anúncio de Maria Madalena – Eu vi o Senhor! (cf. Jo
20,18) – tenha influenciado nesse processo de recomposição. Embora se
recompondo, essa comunidade continua em crise, o que se evidencia pela situação
de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das
autoridades religiosas que condenaram Jesus em parceria com o império romano, e
não todo o povo. É típico de João usar o termo “judeus” em referência às
autoridades. O medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da
angústia, da desilusão e do remorso de alguns; significa a ausência do Senhor.
Sem a presença do Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é
bloqueada; as portas fechadas impedem a boa nova de ecoar. O principal motivo
do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o
mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.
Manifestando-se no meio
dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles o processo de transformação,
oferecendo o primeiro contraponto ao medo: o dom da paz, que não é uma mera
saudação, mas o sinal de vida plena e equilíbrio. É o encontro com a paz de Jesus
que levanta o ânimo da comunidade fracassada. Jesus comunica a sua paz e, ao
mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e
livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do
seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos
do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o
Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Na
continuidade da experiência, diz o texto que Jesus “mostrou-lhes
as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.
20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o
Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é apresentado apenas como uma demonstração de
provas materiais da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado; porém, não se trata apenas disso. Mais do que
estigmas, as mãos e o lado aqui são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré
que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais
traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso
que demonstrou em sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que
continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As
mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o
coração. A certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar
definitivamente o medo, passando à alegria. Como fruto da paz transmitida pelo
Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das características da comunidade
que vive para servir e amar, como fez Jesus.
Já estabelecido como
centro da comunidade, “novamente Jesus disse: A paz esteja convosco” (v.
21a). A paz como bem-estar do ser humano é novamente oferecida. A passagem do
medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada
novamente para equilibrar a comunidade. Só é possível acolher os dons pascais
estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade,
mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as
consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu
primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo
Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (v. 21b). Ao
contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra
como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é
determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Jesus
simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão
universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a
primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo,
de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da
paz do Ressuscitado.
O texto mostra, como
sempre, a coerência entre a prática e as palavras de Jesus: “E depois
de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v.
22). Ora, Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia
(cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o
Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da primeira
criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do
solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se
vivente” (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova
criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o
sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já
não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da
comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual. O verbo soprar (em
grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que
Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o
Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o
Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele
quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como
seu único centro.
O Espírito Santo garante
responsabilidade à comunidade, e não exatamente poder: “A quem perdoardes os
pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão
retidos” (v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente
para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão. Jesus não está dando
um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a
paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos
os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em
todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua
paz. Não se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não
pode ser perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã
para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus. O Espírito
Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem
a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para
que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente
tirado do mundo (cf. Jo 1,29). João, o batista, apontou para Jesus como o
responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia
à comunidade de discípulos essa responsabilidade. Os pecados são perdoados à
medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus
discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os
pecados é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos
e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os
pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade.
A comunidade não estava
completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo,
também “Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles
quando Jesus veio” (v. 24). É necessário destacar algumas características
desse discípulo, considerando que o mesmo foi, injustamente, rotulado
negativamente pela tradição. O motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos
à portas fechadas foi o medo; ora, se Tomé não estava com eles é porque não
tinha medo e, portanto, circulava livremente e sem temor algum; era, portanto,
um discípulo corajoso, ao contrário dos demais. A evidência maior da coragem de
Tomé aparece no episódio da reanimação de Lázaro. Jesus já tinha sido alvo de
diversas ameaças e tentativas de assassinato pelas autoridades dos judeus;
quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, Tomé foi o único que se dispôs
a ir para morrer com ele: “Tomé, chamado Dídimo, disse então aos
condiscípulos: Vamos também nós, para morrermos com ele!” (Jo 11,16). Por
isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se dos judeus. Essa sua coragem
foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo.
Quanto à fé no Ressuscitado,
a diferença de Tomé para os outros dez deve-se ao intervalo de uma semana. Não
estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: Os outros discípulos contaram-lhe depois:
“Vimos o Senhor!” Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em
suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no
seu lado, não acreditarei” (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi, sem
dúvidas, o seu grande erro, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu
como os demais. Ora, à exceção do Discípulo amado, o qual viu e acreditou logo
ao contemplar o sepulcro vazio (cf. Jo 20,8), os demais também só acreditaram
após a manifestação do Senhor em seu meio. Nenhum deles acreditou no testemunho
de Maria Madalena; esperaram o Senhor aparecer. Mesmo sem acreditar ainda na
ressurreição, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, “Oito
dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé
estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles
e disse: “A paz esteja convosco” (v. 26). É importante, antes de continuar
falando de Tomé, perceber o dado cronológico-teológico “oito dias depois”; essa
expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o
qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de
reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais
presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua
experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a
comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de
clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no
sábado, e a da comunidade cristã no domingo, na casa de um dos membros da
comunidade.
O Senhor se pôs de novo no meio dos
discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o
qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana
antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de
Ressuscitado-Crucificado e de quem dedicou sua vida para servir e amar: “Depois
disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e
coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’” (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da
ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé: “Tomé
respondeu: “Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28). Essa
é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido
reconhecido como Mestre, como Senhor, como Messias, Filho de Davi, Filho do
Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso,
o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que
importa é a intensidade e a convicção dessa fé.
Ainda chamamos a atenção para
mais um detalhe que não pode passar despercebido: diz o evangelista que Tomé
era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista
não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato, e os personagens
anônimos do Quarto Evangelho têm a função de paradigmas para a comunidade e os
leitores. Isso significa um convite aos leitores e discípulos de todos os
tempos a tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento,
perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no
primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser
prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões,
aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos e muitas videntes dos tempos
atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem
como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais
convicção. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os
que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do
evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte da maioria dos
apóstolos. Os novos cristãos da comunidade joanina eram muito questionadores e
chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por
isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há
necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé
para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar
por excelência de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar
da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e
viver animado pelo Espírito que ele transmite. A presença do Ressuscitado
pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como
características; sem esses traços, o Ressuscitado não está ocupando o seu lugar
central.
Os versículos finais
mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho segundo João: “Jesus
realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos
neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (v.
31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da
vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o
Cristo, Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é
despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar.
Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se
apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com
mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da
comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão
Pedro, questionada pela comunidade devido à negação e outras incoerências; e
também para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à
comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. O Senhor
Ressuscitado insiste incansavelmente para recuperar um amor perdido.
Pe. Francisco Cornélio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Como a exegese feita assim ajuda a entender o itinerário dos fatos e sua teologia! E quase um roteiro com cenário combinado com roteiro inteligente. Muito bom.
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