O
evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal – Jo 21,1-19 – contém o relato
da última manifestação do Ressuscitado aos seus discípulos, no Quarto
Evangelho, com ênfase para a “pesca milagrosa” e o diálogo de Jesus com Pedro. Inicialmente,
o capítulo 21 não fazia parte do Evangelho segundo João; foi acrescentado
posteriormente, devido as necessidades das comunidades destinatárias. A redação
original do Evangelho foi concluída em Jo 20,30-31, conforme lemos no domingo
passado: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos
discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para
que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais a vida em seu nome”. Como o Quarto Evangelho já tinha um
prólogo, os líderes da(s) comunidade(s) joanina(s) entenderam que poderiam
acrescentar um epílogo, o capítulo 21, sem trair as intenções e nem as
características do evangelista, mas até enriquecendo.
Dos
diversos motivos que contribuíram para o acréscimo do capítulo 21 ao Evangelho
joanino, podemos elencar os seguintes: 1) a reabilitação de Pedro; é
inegável que após a contestação no lava-pés (cf. Jo 13,6-10) e a negação
durante o processo de Jesus (cf. Jo 18,15-27), Pedro ficou abalado
psicologicamente, com grande remorso, e teve sua imagem comprometida nas
comunidades; 2) se na conclusão original o evangelista afirmara que
Jesus tinha realizado “muitos outros sinais” além daqueles descritos até então,
é de se imaginar que as comunidades tenham perguntado algo sobre os sinais não
narrados, e até pedido exemplos; logo, a “pesca milagrosa” deste capítulo
responde a essa indagação; 3) as duas aparições do Ressuscitado narradas
no capítulo 20 (conteúdo do evangelho do domingo passado: Jo 20,19-21),
aconteceram no domingo, quando a comunidade estava reunida em um lugar fechado;
também deve ter surgido dúvidas se o Ressuscitado não estaria presente também
nos outros dias da semana e nas atividades cotidianas dos seus seguidores; uma
aparição durante uma pesca, responde a esse questionamento. Houve outros
motivos, certamente, mas não é possível destacar todos aqui. Pela extensão, não
comentaremos todos os versículos separadamente.
Eis o texto: “Jesus apareceu
de novo aos discípulos, à beira do mar de Tiberíades. A aparição foi assim:
Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, chamado Dídimo (Gêmeo), Natanael de Caná da
Galileia, os filhos de Zebedeu e outros dois discípulos de Jesus”
(vv. 1-2). Até então, as aparições do Ressuscitado aos discípulos, tinham
acontecido numa sala fechada em Jerusalém, à exceção da aparição a Maria
Madalena no jardim (Não incluímos o episódio dos discípulos de Emaús, Lc
24,13-35, em que o Senhor apareceu no caminho, porque esse pertence às
tradições do evangelista Lucas; por questões didáticas, tratamos aqui apenas da
tradição joanina). Dessa vez, a aparição acontece na Galileia, a céu aberto. Ao
contrário das duas primeiras que tinham acontecido no domingo (o primeiro ou
oitavo dia semana), dessa vez o dia não vem indicado. Já temos um primeiro
sinal de que o Ressuscitado não está condicionado a nenhum espaço ou tempo
determinados. O mar de Tiberíades (o mesmo que lago de Genesaré ou mar da
Galileia) possui um significado importante para as origens do cristianismo,
pois foi o cenário dos primeiros chamados; logo, é um sinal de retorno às
origens e confirmação da vocação. Quem outrora deixou-se atrair pela proposta
de Jesus de Nazaré, deve continuar atraído pelo Ressuscitado, já que é a mesma
pessoa. O autor identifica sete discípulos nessa aparição, um número
significativo para os propósitos de universalização da mensagem de Jesus;
enquanto o número doze representa apenas o povo de Israel, o número sete
representa o universo inteiro, e esse deve ser o destino da missão dos
discípulos de Jesus de Nazaré, o crucificado que ressuscitou.
A pesca, por ser a atividade da maioria dos primeiros discípulos,
se tornou imagem simbólica da missão apostólica no cristianismo das origens.
Por isso, essa cena, mais que descrever uma pescaria real, é uma representação
da missão da comunidade cristã. O grupo de discípulos está unido, e Pedro continua
impetuoso, falando e agindo sem medir as consequências: “Simão Pedro disse a
eles: ‘Eu vou pescar’. Eles disseram: ‘Também vamos contigo’. Saíram e entraram
na barca, mas não pescaram nada naquela noite” (v. 3). Mesmo com a
adesão dos companheiros, a iniciativa de Pedro não logra êxito: “não
pescaram nada naquela noite”; o indicativo temporal “naquela noite” significa
a ausência de Jesus, a luz por excelência. Essa ausência torna ineficazes as
iniciativas da comunidade, por mais boa vontade que tenham os seus membros. Na
luz do dia, Jesus se faz presente, mas não é facilmente reconhecido (cf. v. 4);
com isso, o autor faz um alerta à comunidade: é preciso reconhecer a presença
de Jesus no dia-a-dia, nas margens e nas atividades cotidianas também. Não
basta esperar uma semana para encontrar-se com Ele no encontro litúrgico da
comunidade, pois Ele interage no dia-a-dia através dos acontecimentos e das
pessoas necessitadas, principalmente (cf. v. 5).
À luz do dia, mesmo sem ainda ser reconhecido, Jesus aponta a
solução para a comunidade que trabalhou em vão durante a noite: “Lançai a
rede à direita da barca, e achareis’. Lançaram pois a rede e não conseguiam
puxá-la para fora, por causa da quantidade de peixes” (v. 6). Guiada
somente pelo impulso de Pedro e na escuridão da noite, a comunidade trabalhou em
vão; orientada pelas palavras de Jesus, o resultado foi surpreendente: uma
pesca abundante. Assim como fora o primeiro a acreditar na ressurreição ao ver
o sepulcro vazio (cf. Jo 20,8), o discípulo amado também é o primeiro a
reconhecer Jesus naquele homem à beira do mar: “É o Senhor!” (Jv. 7). O
Quarto Evangelho insiste que a primeira condição para o encontro autêntico com
Jesus é o amor. Não há trabalho intelectual e nem físico que se sobreponha ao
amor. Boas intenções não bastam para o crescimento da comunidade, se nessa não
reina o amor. É o amor que dá credibilidade ao anúncio; por isso, “Simão
Pedro, ouvindo dizer que era o Senhor, vestiu a sua roupa, pois estava nu, e
atirou-se no mar” (v. 7). Pedro conhecia a trajetória de amor daquele
discípulo, por isso, sabia que seu testemunho era verdadeiro. As atitudes de
Pedro aqui, embora ainda impetuosas, mostram o progresso de sua conversão; a
passagem do estado de nudez ao vestido significa uma mudança de atitude e de
mentalidade; o atirar-se no mar é uma imagem do batismo: é preciso passar pelas
águas para tornar-se uma nova pessoa. Pedro tem pressa, pois se sente mais
necessitado do que os demais de ficar na presença do Senhor (cf. v 8).
O momento privilegiado do encontro da comunidade com o Ressuscitado
será sempre a refeição, o banquete, como sinal de partilha, amor e alegria. E é
o próprio Jesus quem prepara a refeição (vv. 9-13), pois o Ressuscitado
continua o mesmo: é aquele que se fez servo, que lavou os pés dos discípulos. Essa
refeição representa a Eucaristia, já consolidada entre as comunidades, na época
da redação do texto. Mesmo oferecendo o banquete, Jesus pede a colaboração dos
discípulos: “Trazei alguns dos peixes que apanhastes” (v. 10). Isso
mostra que a comunidade deve unir seus esforços aos dons do Ressuscitado para a
transformação do mundo. A construção do Reino exige esforço de todos. Os
peixes, aqui, são dons do Ressuscitado, e prova de que as palavras dele geram
abundância e fertilidade, por isso, são indispensáveis para o banquete; são,
acima de tudo, frutos do amor. O convite “vinde comer” (v. 13) é
dirigido a todas as pessoas; participar desse banquete é um ato de amor.
A sequência do texto (vv. 15-19) mostra o diálogo decisivo de Jesus
com Pedro, que é o coração de todo o capítulo. Essa é, certamente, uma das
cenas mais belas de todo o Novo Testamento. Ao longo do(s) Evangelho(s), Pedro
tinha demonstrado diversas contradições. Obstinado, procurava sempre demonstrar
uma prontidão maior que os demais discípulos; era sempre o primeiro a responder
às perguntas de Jesus, queria mostrar serviço sempre e de todas formas. Por
esse seu caráter, acabava caindo em contradição facilmente. Se manifestou
contra a atitude de Jesus no momento do lava-pés e o negou durante o processo.
Esse último fato foi, certamente, o mais dramático e que deixou,
inevitavelmente, mais sequelas interiores e remorso, não em Jesus que perdoa
tudo, mas no próprio Pedro. É provável que tenha causado desconfiança entre os
companheiros e até nas comunidades futuras. Por isso, era necessário
reabilitá-lo, e foi esse o principal motivo da inserção deste capítulo num
Evangelho que já estava concluído. Jesus não faz um acerto de contas com Pedro,
mas quer apenas mostrar que, não obstante todas as fragilidades do apóstolo, o
amor entre os dois precisa ser confirmado e reforçado, pois é do amor que
dependem os frutos da missão confiada.
Jesus pergunta três vezes se Pedro lhe ama, e Pedro responde três
vezes. O número três, obviamente, alude ao número de negações; foi essa a marca
negativa que Jesus quis tirar do coração de Pedro, mostrando todo o seu amor
por ele. Temos aqui uma prova muito clara de que Jesus não desiste do ser
humano. Jesus age com Pedro como um bom terapeuta que pretende eliminar o mal
pela raiz. Eis a primeira pergunta e resposta: “Simão, filho de João, tu me
amas mais do que estes?’ Pedro respondeu: “Sim, Senhor, tu sabes que eu te amo.
Jesus disse: ‘Apascenta os meus cordeiros” (v. 15). Na verdade, Jesus não
necessita que Pedro lhe ame mais do que os demais; esse detalhe que aparece
somente na primeira pergunta, é apenas uma advertência: quanto mais intenso for
o amor do discípulo, maior deve ser a disponibilidade para o serviço. A resposta
de Pedro é positiva, inclusive reconhecendo que Jesus sabe tudo, como soube antecipadamente
da sua negação (cf. Jo 13,36-38). O amor de Pedro, bem como dos demais
discípulos, é fundamental para os propósitos de Jesus: “‘Apascenta os meus cordeiros”.
Antes de tudo, fica claro que o rebanho é de Jesus e, portanto, os seus
discípulos não podem recebê-lo como propriedade sua. Apascentar significa
cuidar: proteger dos perigos e prover o alimento, especialmente; em outras
palavras, é proporcionar todos os meios para uma vida digna.
A pergunta é repetida até a terceira vez, com pequenas variações de
vocabulário que não comprometem o seu significado. Na terceira vez, “Pedro
ficou triste, porque Jesus perguntou três vezes se ele o amava” (v. 17); o
remorso da negação veio à tona novamente, mas essa tristeza também significa um
lamento por não ter descoberto antes que o amor é o único meio para uma relação
autêntica com Jesus. A sua prontidão anterior, o apresentar-se sempre como o
primeiro, tanto no falar quanto no agir, não tinha tanto efeito porque a
motivação para isso ainda não era o amor. Agora sim, está convicto da
necessidade do amor nas relações e do seu papel na comunidade; não se trata de exercer
um governo; Jesus lhe pede para cuidar, para servir, não para governar. O
serviço, movido pelo amor, é o que conta na comunidade cristã. Está claro,
portanto, que o objetivo principal do texto é mostrar a reabilitação de Pedro:
de um discípulo envergonhado de seu mestre, a um discípulo convertido pelo amor,
tendo o seu remorso sanado pela insistência do Senhor Ressuscitado. Se é Jesus
o dono do rebanho, para cuidar desse rebanho é necessário amá-lo muito.
Convicto da conversão de Pedro, Jesus lhe revela o seu próprio
destino: “Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te
levará onde não queres ir. Jesus disse isso, significando com que morte Pedro
iria glorificar a Deus. E acrescentou: ‘Segue-me” (vv. 18-19). Ora, sempre
que Jesus dizia que ia sofrer, quando antecipava a sua morte de cruz, o
primeiro a repreendê-lo era Pedro. Agora, Jesus diz que é o próprio Pedro quem
também vai passar pela cruz: a expressão “estenderás os braços” é uma
referência explícita à morte de cruz. Dessa vez, já não há contestação porque
Jesus está cara a cara com um novo Pedro, um homem convertido, consciente de
que não pode mais agir segundo seus impulsos, pois quando isso acontece a pesca
é totalmente estéril; só há peixe em abundância quando as redes são lançadas de
acordo com as indicações de Jesus. Após a reabilitação de Pedro, Jesus renova o
convite ao seguimento: “Segue-me”. O Ressuscitado é uma pessoa viva,
presente na comunidade, e deve ser seguido sempre. Esse seguimento, para ser
autêntico, deve ser motivado sempre pelo amor.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Nenhum comentário:
Postar um comentário