Neste
ano (C), a liturgia propõe o texto de João 13,31-35 para o evangelho do quinto
domingo do tempo pascal. À medida em que avançamos nesse tempo, após lermos os
diversos relatos das manifestações (aparições) do Ressuscitado junto aos seus discípulos(a),
é interessante retornar à essência do que Ele ensinou, tendo em vista a
proximidade da ascensão, para que essa não seja sinal de ausência, mas de presença
e vivência dos seus ensinamentos. De fato, é através da vivência do que Jesus
ensinou que se pode experimentar a sua presença de Ressuscitado ao longo do
tempo. Nesse sentido, a liturgia de hoje chama a atenção para o que Ele ensinou
e deixou de mais precioso para os seus seguidores e seguidoras de todos os
tempos: o mandamento do amor, tema central do evangelho deste dia.
O
contexto do evangelho de hoje é o da última ceia, ambientada no cenáculo, vivenciada
por Jesus e os Doze às vésperas da páscoa. No Evangelho segundo João,
especialmente, a ceia não é apenas o consumo de alimentos e nem a vivência de
um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é, acima de tudo, um
momento forte de catequese e auto revelação de Jesus; é o momento de
apresentação de seu testamento, como é considerado o seu longo discurso. Por isso,
é um episódio que ocupa nada menos que cinco capítulos (13 – 17), totalizando
cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o
Evangelho. Desse total, a liturgia propõe para hoje somente cinco versículos
(13,31-35), embora muito ricos, a ponto de serem considerados introdução e
síntese do testamento de Jesus.
Ainda
a nível de contexto, é importante recordar que o trecho utilizado pela liturgia
de hoje está localizado entre os dois momentos mais dramáticos da ceia: o anúncio
da traição de Judas (cf. Jo 13,21-30) e a predição da negação de Pedro (cf. Jo
13,36-38). Essa localização é proposital e corresponde às intenções
catequéticas e teológicas do evangelista: não obstante às debilidades da comunidade,
o que Jesus tem a oferecer é sempre o amor. Quer dizer que o amor oferecido por
Jesus aos seus não se deve aos méritos da comunidade, mas porque o amor é a sua
essência e, sendo Ele amor, não pode oferecer outra coisa senão o amor. Portanto,
traição e negação, bem como as incoerências dos discípulos e discípulas de
todos os tempos, não fazem Jesus diminuir o seu amor, embora isso comprometa a sua
manifestação no mundo, como Ele mesmo adverte. O primeiro momento da ceia
narrado por João foi o lava-pés (cf. Jo 13,1-15); com esse gesto surpreendente,
Jesus já sinalizava aos discípulos que viriam novidades no seu ensinamento; sem
dúvidas, a maior novidade foi o “novo mandamento”.
O
texto é iniciado com uma introdução informativa do narrador, e em seguida é
ocupado somente por palavras de Jesus: “Depois que Judas saiu, disse Jesus:
‘Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. Se Deus
foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o glorificará
logo” (vv. 31-32). A saída de Judas da sala onde estavam ceando é um ato
demarcatório para a glorificação de Jesus, e não a sua causa. Judas saiu para
traí-lo, rompendo a comunhão e rejeitando o amor que lhe estava sendo oferecido.
Certamente, foi doloroso para Jesus ver um dos seus amigos deixar a comunidade
para aliar-se aos poderosos que estavam prestes a condená-lo, trocando o amor
gratuito por dinheiro. Ao sentir que nem diante de um fato tão lamentável o seu
amor diminuía, Jesus confirmava que, tinha chegado a sua hora, o momento da
glória.
Para
falar da sua glória, Jesus aplica a si a imagem misteriosa do “Filho do Homem”,
um título conhecido na literatura judaica, que na época de Jesus evocava um ser
glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento,
tanto aqui em João quanto nos sinóticos (cf. Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33;
Lc 9,22.44), contradizendo o uso recorrente no seu tempo. Em João, especialmente,
glorificação e sofrimento são termos que se completam reciprocamente, quer
dizer, glória e paixão estão intrinsecamente relacionadas. A certeza de que a
traição não diminui o seu amor e nem lhe faz recuar dos seus propósitos de
fidelidade incondicional ao Pai, faz Jesus concluir que a o momento da glorificação
chegou. Inclusive, essa hora fora bastante esperada na dinâmica do Quarto
Evangelho (cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20). Somente agora, no drama da traição durante
a ceia, Jesus confirma que é chegado o momento.
É importante
a unidade existente entre Jesus e Deus, o Pai; ambos são glorificados
simultaneamente: “foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado
nele”. Ora, a glória do Filho é realizar os propósitos do Pai; a glória do
Pai, por sua vez, é ver o Filho sendo-lhe fiel até as últimas consequências. Chama
a atenção o fato de que a locução verbal “ser glorificado” aparece cinco
vezes em apenas dois versículos (vv. 31-32), o que confirma ainda mais a importância
do tema. Inclusive, o título que recebe a segunda parte do Evangelho joanino é “Livro
da glória” (Jo 13 – 20). Essa glória compreende a paixão, morte e ressurreição
de Jesus, e é motivada pelo amor incondicional e recíproco entre o Pai e o
Filho; é esse o modelo de amor que a comunidade cristã deve reproduzir, o que
Judas não assimilou e, por isso, saiu da sala.
Apesar
do drama de ver um amigo disperso, fora da comunhão, e a certeza da cruz
iminente, o amor e a ternura de Jesus se tornam cada vez mais fortes; Ele não se
deixa abalar e, continuando seu discurso de despedida, afirma: “Filhinhos,
por pouco tempo estou ainda convosco” (v. 33a). Certamente, estava
emocionado ao usar essa expressão de ternura, chamando os discípulos de filhos
no diminutivo: “Filhinhos” (em grego: τεκνία = teknía); é a única vez em que essa
palavra aparece no Evangelho segundo João, embora seja um termo comum do
vocabulário da sua comunidade, pois aparece sete vezes na sua primeira carta
(cf. 1Jo 2,1.12.28; 3,7.18 4,4; 5,21). É um termo afetuoso, usado aqui por quem
está em clima de despedida e tem recomendações muito sérias para dar aos que
devem continuar a sua obra, pois Ele tinha muita clareza de que lhe restava
pouco tempo com os seus discípulos. Porém, estava dando uma alternativa para
que, mesmo após sua morte, a comunidade continuasse tendo a sua presença. Essa alternativa
é a vivência do amor.
Tendo
preparado os discípulos, dispensando-lhes uma ternura única, Jesus lhes dá a
sua maior herança: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros.
Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (v. 34).
Talvez os discípulos esperassem mais, como um conjunto de normas, ritos, etc.
Mas Jesus deixou somente isso: um mandamento novo. Na língua original do
Evangelho, há dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles (νέος = néos) significa algo novo
que se soma ao que já existe; o segundo (καινός = kainós) significa algo novo que substitui o
velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É essa segunda palavra que o
evangelista usa aqui. Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser
um acréscimo ao decálogo, mas a sua completa superação. Quer dizer que, vivendo
esse mandamento, a comunidade não necessita de nenhum outro. Somente em João o
mandamento do amor é dado com essa radicalidade, como veremos a seguir.
É claro
que a lei já antiga já previa o amor ao próximo: “amarás o teu próximo como
a ti mesmo” (Lv 19,18). Na tradição sinótica, houve uma adaptação do
primeiro mandamento do decálogo com esse do Levítico: “amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas
forças, e ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-38; Mc 12,33; Lc 10,27).
Diante disso, a novidade apresentada por João se torna ainda mais evidente,
pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede apenas amor
recíproco entre os membros da comunidade: “amai-vos uns aos outros”;
nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o amor a Deus,
pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente, a Jesus, o revelador do amor do
Pai. De acordo com o Levítico e os Sinóticos, o critério do amor ao próximo é o
amor a si próprio; Jesus muda também essa perspectiva: o critério do amor que
deve ser vivenciado na comunidade é o seu; o parâmetro é o amor de Jesus: “como
eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros”; e o seu não
é um amor qualquer, mas é aquele amor capaz de dar a vida pelo próximo. A
medida do amor ao próximo, portanto, deve ser somente o amor de Jesus, cuja
expressão visível é o serviço, como Ele tinha demonstrado lavando os pés dos
discípulos e também recomendando: “Eu vos dei um exemplo para que também vós
façais o mesmo” (Jo 13,15).
O mandamento
dado por Jesus é tão novo, que a vivência dele se torna o único critério de
pertença à sua comunidade: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns pelos outros” (v. 35). É a vivência recíproca desse
amor que caracteriza uma comunidade como pertencente a Jesus, e que manifesta a
presença do Ressuscitado nessa. Portanto, somente o amor é suficiente para
alguém ser reconhecido como discípulo ou discípula de Jesus.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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