sexta-feira, maio 24, 2019

REFLEXÃO PARA O SEXTO DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 14,23- 29 (ANO C)




Assim como no domingo passado, também hoje, no sexto domingo da páscoa, o texto evangélico proposto pela liturgia é retirado do discurso de despedida de Jesus no Evangelho segundo João, proferido durante a última ceia com os discípulos. Esse discurso é também chamado de “Testamento de Jesus”, pois contém os elementos essenciais de seu ensinamento, como o mandamento do amor, por exemplo, tema central da liturgia do domingo passado. Por isso, à medida em que se aproxima a solenidade da ascensão, é importante que a comunidade cristã tenha clareza do que Jesus ensinou, quais certezas deixou e como continuar a experimentar a sua presença, mesmo após o seu retorno ao Pai. É exatamente isso que o evangelho de hoje mostra – João 14,23-29.

Como já recordamos no domingo passado, no Evangelho segundo João a última ceia ocupa cinco capítulos (13 – 17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o livro. Após o gesto do lava-pés (cf. Jo 13,1-15), esses capítulos são todos ocupados por palavras de Jesus, com pequenas introduções do narrador e raras interrupções de alguns discípulos (cf. 13,36-38; 14,5.8.22). Entre todos os evangelhos, essa é sequência em que Jesus mais fala de modo ininterrupto, sendo uma das peculiaridades do Quarto Evangelho. Enquanto discursava, alguns discípulos o interromperam, como afirmamos há pouco, e o texto escolhido para a liturgia de hoje corresponde à resposta de Jesus à interrupção de um dos discípulos. É necessário recordar esse detalhe para compreendermos melhor.

Jesus tinha acabado de prometer o Espírito Santo à comunidade dos discípulos (cf. 14,16-17), garantindo assim a continuidade da sua própria presença entre eles; presença essa, condicionada à vivência do mandamento do amor (cf. 13,35; 14,15.21). A quem amasse verdadeiramente como Ele amou e ensinou a amar, Jesus prometeu se manifestar (cf. 14,21). Diante disso, “Judas, não o Iscariotes, perguntou-lhe: ‘Senhor, por que vais te manifestar a nós e não ao mundo?” (Jo 14,22); esse discípulo foi Judas Tadeu, pois o Iscariotes já não fazia mais parte do grupo, tinha inclusive abandonado o cenáculo para executar o seu plano de traição (cf. Jo 13,31). A pergunta de Judas não expressa uma dúvida, mas uma reivindicação; antes de tudo, revela uma concepção triunfalista de messianismo, com manifestações mirabolantes e sinais extraordinários; mostra que ele e os demais discípulos não estavam convictos da força do amor como único sinal de pertença e da presença de Jesus entre eles (cf. 13,35).

Eis, então, a resposta de Jesus: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou” (vv. 23-24). A resposta de Jesus é tão importante, que ele diz a mesma coisa duas vezes: na primeira, de maneira afirmativa (v. 23), e na segunda, de maneira negativa (v. 24). Essa era uma técnica retórica semita usada para apresentar um ensinamento de grande valor. Ao invés de uma manifestação extraordinária, Jesus afirma que, tanto Ele quanto o Pai, irão se manifestar na vida de quem ama à sua maneira; não através de um evento pontual, mas fazendo morada permanente. Essa é a primeira vez que Jesus reivindica o amor dos discípulos também para si; até então, tinha exigido apenas que os discípulos se amassem reciprocamente. Agora, Ele diz que é necessário que o amem também, pois amá-lo é condição para receber o amor do Pai, além de ser o critério para saber se a sua palavra é, de fato, guardada, ou seja, vivida.

É necessário amar Jesus para guardar as suas palavras. Sem amor, é impossível, pois suas palavras são bastante comprometedoras e exigentes; inclusive, em outra ocasião, os discípulos tinham se queixado que as suas palavras eram muito duras (cf. Jo 6,60). Logo, somente o amor pode motivar a adesão a palavras tão exigentes quanto o mandamento do amor, núcleo central da sua palavra. Nesse contexto, palavra tem o mesmo significado que mandamento ou ensinamento de uma maneira geral. Portanto, a palavra à qual Ele se refere aqui é o próprio mandamento do amor, como síntese de todo o seu ensinamento, tema do Evangelho do domingo passado. Não há outro meio de manifestação de Jesus e do Pai que não seja o amor, pois quem ama se torna morada de ambos. Consequentemente, para o mundo conhecer a Deus e ao próprio Jesus depende da maneira de viver dos seus discípulos e discípulas. Quando vivem e amam à maneira de Jesus, os discípulos não apenas manifestam Deus ao mundo, mas também o transformam, promovendo a vida em abundância (cf. Jo 10,10).

Na ceia, Jesus já tinha clareza do que estava para acontecer; sabia que em pouco tempo seria capturado e condenado; por isso, com muita franqueza, disse: “Isso é o que vos disse enquanto estava convosco” (v. 25). Suas horas de presença física entre os discípulos estavam contadas. No entanto, mesmo partindo para o Pai, Ele não deixará de falar à sua comunidade, conforme prometera: “o defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (v. 26). Com três funções, o Espírito Santo garante a continuação da missão de Jesus no mundo, através da vida dos seus seguidores. A primeira função é bastante ampla: ser “defensor”, embora esse termo não traduza suficientemente a riqueza da palavra empregada pelo evangelista no idioma original do texto, o grego: “parácletos” (Παράκλητος). Em todo o Novo Testamento, somente João usa essa palavra (cf. Jo 14,16.26; 15,26; 16,7; 1Jo 2,1). Embora às vezes esse termo seja usado como um título para o Espírito Santo, ele exprime uma função. Além de “defensor”, às vezes é traduzido também como “advogado” ou “consolador”, termos também insuficientes. Se trata de uma palavra composta (Παρά/pará = “junto a” + κλητός/kletós = “chamado”) cujo significado literal é “chamado a estar junto”; é claro que, estando junto, o Espírito Santo defende, consola e encoraja os discípulos sempre; mas seu papel é ilimitado e indescritível.

Das funções mais concretas atribuídas ao Espírito Santo, Jesus garante duas aos discípulos: “ensinar” e “recordar”. Ambas, exigem fidelidade e perseverança da comunidade, e estão intrinsecamente relacionadas. Como o ensinamento de Jesus, embora universal e completo, foi condicionado às circunstâncias de tempo e espaço, é preciso que seja constantemente interpretado e atualizado, conforme a difusão da sua mensagem pelo mundo. Ao longo da história, os continuadores da sua missão se deparam com situações que não foram previstas em seu curto ministério de apenas três anos na Palestina; por isso, é necessário que as comunidades cristãs de todos os tempos sejam sensíveis ao Espírito Santo para que esse torne o que Jesus ensinou, sempre novo e dinâmico; não se trata, portanto de ensinar novas coisas, pois Jesus ensinou tudo, mas de atualizar esse ensinamento e interpretá-lo corretamente, conforme as necessidades das pessoas e as circunstâncias sócio históricas. Nesse sentido, é imprescindível a função de “recordar”, pois são muitos os riscos de esquecimento da essência do que Jesus ensinou, à medida em que surgem novas realidades e desafios. Na Bíblia, o verbo “recordar” não significa apenas lembrar de algo do passado, mas é tornar vivo e presente o objeto da recordação, nesse caso, tudo o que Jesus ensinou. Essa recordação compreende também a interpretação correta do que foi ensinado outrora, conforme às necessidades e os sinais dos tempos. Portanto, na certeza da presença do Espírito, enviado pelo Pai em nome de Jesus, para “estar junto” dos seus, a comunidade cristã é ensinada e pode ensinar, ao mesmo tempo, desde que mantenha viva a recordação de tudo o que Jesus ensinou aos primeiros discípulos. É assim que o Espírito Santo faz a missão de Jesus continuar sempre atual.

À medida em que avança no discurso, Jesus confere cada vez mais responsabilidades aos discípulos, principalmente com essa resposta a Judas Tadeu, ao dizer que a manifestação de Deus ao mundo seria apenas a maneira de amar dos discípulos, acompanhada da vivência da sua palavra. Quem viver assim, será morada de Jesus e do Pai e terá a assistência perene do Espírito Santo. Para os discípulos, provavelmente com medo, isso ainda não era suficiente; por isso, Jesus antecipa o seu primeiro dom de Ressuscitado: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe o vosso coração” (v. 27). O Espírito Santo foi prometido para o futuro (cf. v. 26), como será dado após a ressurreição (cf. Jo 20,22); a paz é dada ainda no presente: Jesus dá a sua paz antes mesmo de partir para o Pai, pedindo aos discípulos que não permitam que o medo tome conta de seus corações: “Não se perturbe o vosso coração”. Ora, além da comoção pela partida do Mestre, os discípulos sofriam também com o medo de terminar como Ele, sendo condenados. A paz é a superação do medo, uma vez que comporta a totalidade dos dons divinos e messiânicos.

No vocabulário do Quarto Evangelho, a paz está na mesma linha de outras palavras caras a João, como luz, verdade, vida e salvação, indo além do significado vigente no judaísmo, como o bem-estar total da pessoa, incluindo a saúde e a prosperidade; e muito mais diferente ainda da “pax romana”, que não passava de uma política de controle e imposição de uma falsa tranquilidade pelo uso da força, em nome da ordem social. Portanto, a paz de Jesus é única, e sem essa é impossível viver com um amor intenso como o seu. A sua paz é um dom pascal que, por necessidade, ele antecipou aos discípulos no momento da ceia; tanto que ao se manifestar (aparecer) nas duas primeiras vezes como Ressuscitado no meio deles, o seu primeiro gesto foi dar-lhes a paz: “a paz esteja convosco!” (cf. Jo 20,19.21.26).

Jesus se esforça o máximo possível para que seus discípulos aceitem a sua partida, não como perda, mas como ganho, pois é o único meio para tornar realidade tudo o que lhes prometera: “Ouvistes o que eu vos disse: ‘Vou, mas voltarei a vós’. Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu. Disse-vos isso, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis” (vv. 28-29). Sua partida para junto do Pai não pode causar tristeza; pelo contrário, deve ser motivo de alegria, mesmo que comporte a sua morte, pois é prova de que a sua obra foi consumada e a vontade do Pai foi realizada, ou seja, Jesus viveu intensamente como o Pai imaginou ao enviá-lo ao mundo: não para condenar, mas para salvar (cf. Jo 3,17). Por isso, a sua fidelidade ao Pai deve ser motivo de alegria para os discípulos, ao invés de causar medo e tristeza.

Na certeza de que Jesus e o Pai fazem morada em quem vive o mandamento do amor, e ainda confere o Espírito Santo para ficar junto, ensinar e recordar tudo o que Ele mesmo ensinou, cabe aos discípulos e discípulas de todos os tempos, o esforço para que tudo isso seja manifestado também ao mundo. A condição para que isso aconteça é a vivência do mandamento do amor.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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