quinta-feira, julho 18, 2019

REFLEXÃO PARA O XV DOMINGO DO TEMPO COMUM - LUCAS 10,25-37 (ANO C)



A liturgia deste XV Domingo do Tempo Comum coloca-nos em contato com um dos textos mais belos e conhecidos de todo o Novo Testamento, a chamada “parábola do bom samaritano”. Trata-se de um texto próprio de Lucas, inserido na dinâmica do longo caminho empreendido por Jesus rumo a Jerusalém. É um daqueles episódios em que Jesus esbanja misericórdia, o que é muito comum no Evangelho segundo Lucas.
A parábola é usada como uma das respostas de Jesus em um interessante diálogo com um mestre da lei, assumindo a centralidade de todo o colóquio e constituindo-se como uma das principais páginas do terceiro Evangelho. É importante considerar isso: as parábolas de Jesus, sobretudo em Lucas, não surgem do nada, mas das situações concretas, a partir das interpelações dos seus interlocutores. Nesse caso específico, a parábola ilustra a resposta de Jesus a um mestre da lei que, embora fosse um grande conhecedor das Escrituras, lhe faltava a vivência do essencial, ou seja, a prática do amor ao próximo.
Diz o texto que "um mestre da lei se levantou e, para tentar Jesus, fez-lhe uma pergunta" (v 25a). Lucas apresenta aqui o mesmo verbo usado no episódio das tentações (cf. Lc 4,1-13): εκπειραζω (ekpeirazô), cujo significado é tentar, pôr alguém à prova. Esse indicativo é importante porque já confere um caráter diabólico às intenções do mestre lei, pois, tentar Jesus, pondo-o à prova é a atitude de satanás, conforme a linguagem bíblica e lucana, principalmente.
Após apresentar a intenção e a atitude do mestre da lei, tentar Jesus perguntando, temos, então, o conteúdo da pergunta: "Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?" (v. 25b). Se trata de uma pergunta muito profunda e bem elaborada, própria de um bom conhecedor da Escritura, como, de fato ele era.
Como era próprio da cultura dos rabinos responder a uma pergunta com outra pergunta, Jesus assim o faz, e responde perguntando exatamente o que a lei dizia a propósito da observação do interlocutor. Como bom conhecedor, o mestre da lei responde prontamente com duas citações da Escritura: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência (cf. Dt 6,5); e ao teu próximo como a ti mesmo” (cf. Lv 19,18). Resposta própria de quem examinava a Lei dia e noite, como era próprio do seu ofício.
A continuidade do diálogo mostra a exterioridade e superficialidade daquele mestre da lei. Teoricamente, seu conhecimento era perfeito, tanto que o próprio Jesus reconheceu: “Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás” (v. 28). Mas, sua tentativa de justificar-se demonstrava o quanto era limitada sua vivência religiosa. Ele conhecia todas as passagens da Escritura, era um intérprete oficial e, no entanto, não sabia quem era seu próximo. E, percebendo o vazio de sentido naquela religião estéril defendida e praticada pelo mestre da lei, Jesus aproveita a oportunidade para apresentar um dos seus mais célebres ensinamentos, com a parábola do samaritano, como resposta.
Disse Jesus que “certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes” (v. 30a). Ora, embora a distância entre as duas cidades não fosse tão grande, apenas 27 km, grandes obstáculos componham aquele caminho. A começar pelo desnível entre as duas cidades. Enquanto Jerusalém estava a mais de 700 metros acima do nível do mar, Jericó estava a aproximadamente 300 metros sob o nível do mar. Além disso, tinha de atravessar o deserto de Judá. Era uma estrada tão perigosa, que somente se andava em grupo, considerando tanto os obstáculos da natureza quanto o perigo dos assaltantes. Logo, com esse primeiro dado Jesus não apresenta nenhuma novidade, uma vez que eram comuns os assaltos naquela estrada.
Na descrição do assalto, Jesus acrescenta detalhes, enfatizando que os assaltantes, além de espancar o homem, levaram tudo e o deixaram “quase morto” (v. 30b). Claro que há, nisso tudo, uma clara intenção teológico-literária de Lucas visando supervalorizar a atitude do samaritano e contrapô-la à indiferença do sacerdote e do levita. Por isso, na continuidade, Ele diz: “Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho” (v. 31a), ou seja, estava voltando de Jerusalém após uma semana inteira de serviço no templo, conforme a distribuição das classes sacerdotais durante o ano litúrgico judaico. Portanto, estava em seu grau máximo de pureza. Por isso, “quando viu o homem, seguiu adiante pelo outro lado” (v. 30b), exatamente porque o contato com um homem quase morto o tornaria impuro também, conforme determinava a lei. A lei estava acima da vida para a religião judaica do tempo de Jesus. O sacerdote cumpre rigorosamente a lei, assim como o mestre interlocutor de Jesus tinha dificuldade em reconhecer quem é o seu próximo porque vivia uma religiosidade meramente ritualista e vazia de amor.
A mesma indiferença do sacerdote é repetida por um levita, que era uma espécie de “sacristão”, o auxiliar dos sacerdotes no serviço litúrgico do templo: “chegou ao lugar, viu o homem e seguiu pelo outro lado” (v. 32). Como bom sacristão, o levita não poderia ter outro exemplo a seguir senão o do sacerdote, por isso, imita seus gestos, inclusive a indiferença diante do sofrimento do outro. Como voltava do serviço litúrgico, também não queria contaminar-se com um quase morto, certamente ensanguentado do espancamento.
A verdadeira afronta de Jesus ao mestre da lei vem colocada a partir do versículo 33, quando ele diz na parábola que “um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão”. Como sabemos, os samaritanos eram mal vistos pelos judeus; havia uma rivalidade secular entre eles. Quando a Assíria conquistou Samaria, a capital do Reino do Norte, em 722 a.C., deportou a população local e trouxe povos estrangeiros para habitar na cidade (cf. 2 Rs 17,24-28). Os novos habitantes levaram seus costumes e tradições religiosas, o que levou a Samaria a ser conhecida como terra de sincretismo, de heresias e povo impuro. É essa a origem histórica da relação conflituosa. Inclusive, quando os judeus retornaram do exílio e começaram a reconstruir o tempo e a cidade de Jerusalém, mesmo em meio às dificuldades, rejeitaram a ajuda oferecida pelos samaritanos, como atesta o livro histórico de Esdras (cf. Es 4,3). A maior ofensa que um judeu poderia receber era ser chamado de samaritano. Era o mesmo que dizer herege, pecador, impuro... alguém da pior qualidade possível.
Os próprios Jesus com seus discípulos tinham sido rejeitados pelos samaritanos no início do caminho (cf. Lc 9,53), e hoje Jesus apresenta um samaritano como alguém que age como Deus. De fato, ver e ter compaixão, são atitudes próprios de Deus. E, infelizmente, os homens que pareciam conhecer a Deus, o sacerdote e o levita, não conheciam seus sentimentos, mas um infiel aos olhos da religião.
O sacerdote e o levita viram o estado miserável em que se encontrava o homem, mas foram para o outro lado do caminho. O samaritano viu, sentiu compaixão e aproximou-se. Duas atitudes completamente opostas. A compaixão do samaritano fez com que ele se aproximasse e cuidasse do homem. Quase dez verbos são usados na sequência do texto, e todos eles são verbos de ação. Assim, Jesus contrapõe a omissão dos praticantes da religião à ação movida de compaixão da parte do herege, comovendo ainda mais o mestre da lei.
Uma vez que a parábola foi contada como resposta à pergunta “E quem é o meu próximo?” (v. 29), Jesus devolve novamente uma pergunta ao mestre: “Na tua opinião qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (v. 36). Da pergunta de Jesus emerge um dado muito importante: o próximo não é, o próximo faz-se. Para os judeus, o próximo era o parente, o companheiro de religião e, no máximo, o estrangeiro radicado entre eles. Portanto, era uma categoria estática. Jesus diz, com a parábola e a pergunta final, que o próximo se faz, ou seja, são as circunstâncias que tornam alguém próximo.
A resposta do mestre à pergunta de Jesus é correta, embora ele mesmo não a aceite: “Aquele que usou de misericórdia para com ele” (v. 36a) foi o próximo. Dois aspectos chamam a atenção nessa resposta: primeiro, o mestre evita mencionar “o samaritano”, o que para ele era uma espécie de palavrão, por isso, diz apenas “aquele”, quer dizer que o judeu fiel continuava fechado em sua mentalidade mesquinha e cheio de rancor; segundo, o uso da misericórdia que é atribuído somente a Deus em todo o Antigo Testamento e apenas a Jesus no Novo, é agora atribuído também a um homem e da pior qualidade possível, conforme tinha ensinado a religião dos judeus.
A única vez em que se atribui a um homem o uso da misericórdia é aqui. E não se atribui a um homem da religião, mas a um herege. Essa é uma das grandes novidades de Jesus e de Lucas em seu Evangelho. De todos os envolvidos na parábola, o único que foi considerado um exemplo e parecido com Deus foi um homem que a religião condenava. Ao mestre da lei, Jesus aconselha: “Vai e faze a mesma coisa” (v. 37), ou seja, pede que seja como um samaritano, um excluído e tratado como herege.
Com isso, Jesus aconselha o mestre da lei e a todos, de ontem e de hoje, a abrir mão de todos os preceitos impostos pela religião e perceber que o amor a Deus e ao próximo são inseparáveis.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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