A liturgia
deste XV Domingo do Tempo Comum coloca-nos em contato com um dos textos mais
belos e conhecidos de todo o Novo Testamento, a
chamada “parábola do bom samaritano”. Trata-se de um texto próprio de Lucas,
inserido na dinâmica do longo caminho empreendido por Jesus rumo a Jerusalém. É
um daqueles episódios em que Jesus esbanja misericórdia, o que é muito comum no
Evangelho segundo Lucas.
A parábola é usada como uma das respostas de
Jesus em um interessante diálogo com um mestre da lei, assumindo a centralidade
de todo o colóquio e constituindo-se como uma das principais páginas do
terceiro Evangelho. É importante considerar isso: as parábolas de Jesus,
sobretudo em Lucas, não surgem do nada, mas das situações concretas, a partir
das interpelações dos seus interlocutores. Nesse caso específico, a parábola
ilustra a resposta de Jesus a um mestre da lei que, embora fosse um grande
conhecedor das Escrituras, lhe faltava a vivência do essencial, ou seja, a
prática do amor ao próximo.
Diz o texto que "um mestre da lei se
levantou e, para tentar Jesus, fez-lhe uma pergunta" (v 25a). Lucas
apresenta aqui o mesmo verbo usado no episódio das tentações (cf. Lc 4,1-13):
εκπειραζω (ekpeirazô), cujo significado é tentar, pôr alguém à prova. Esse
indicativo é importante porque já confere um caráter diabólico às intenções do
mestre lei, pois, tentar Jesus, pondo-o à prova é a atitude de satanás,
conforme a linguagem bíblica e lucana, principalmente.
Após apresentar a intenção e a atitude do
mestre da lei, tentar Jesus perguntando, temos, então, o conteúdo da pergunta:
"Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?"
(v. 25b). Se trata de uma pergunta muito profunda e bem elaborada, própria de
um bom conhecedor da Escritura, como, de fato ele era.
Como era próprio da cultura dos rabinos
responder a uma pergunta com outra pergunta, Jesus assim o faz, e responde
perguntando exatamente o que a lei dizia a propósito da observação do
interlocutor. Como bom conhecedor, o mestre da lei responde prontamente com
duas citações da Escritura: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração
e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência (cf.
Dt 6,5); e ao teu próximo como a ti mesmo” (cf. Lv 19,18). Resposta própria
de quem examinava a Lei dia e noite, como era próprio do seu ofício.
A continuidade do diálogo mostra a
exterioridade e superficialidade daquele mestre da lei. Teoricamente, seu
conhecimento era perfeito, tanto que o próprio Jesus reconheceu: “Tu
respondeste corretamente. Faze isso e viverás” (v. 28). Mas, sua tentativa
de justificar-se demonstrava o quanto era limitada sua vivência religiosa. Ele
conhecia todas as passagens da Escritura, era um intérprete oficial e, no
entanto, não sabia quem era seu próximo. E, percebendo o vazio de sentido
naquela religião estéril defendida e praticada pelo mestre da lei, Jesus
aproveita a oportunidade para apresentar um dos seus mais célebres
ensinamentos, com a parábola do samaritano, como resposta.
Disse Jesus que “certo homem descia de
Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes” (v. 30a). Ora, embora
a distância entre as duas cidades não fosse tão grande, apenas 27 km, grandes
obstáculos componham aquele caminho. A começar pelo desnível entre as duas
cidades. Enquanto Jerusalém estava a mais de 700 metros acima do nível do mar,
Jericó estava a aproximadamente 300 metros sob o nível do mar. Além disso,
tinha de atravessar o deserto de Judá. Era uma estrada tão perigosa, que
somente se andava em grupo, considerando tanto os obstáculos da natureza quanto
o perigo dos assaltantes. Logo, com esse primeiro dado Jesus não apresenta
nenhuma novidade, uma vez que eram comuns os assaltos naquela estrada.
Na descrição do assalto, Jesus acrescenta
detalhes, enfatizando que os assaltantes, além de espancar o homem, levaram
tudo e o deixaram “quase morto” (v. 30b). Claro que há, nisso tudo, uma clara
intenção teológico-literária de Lucas visando supervalorizar a atitude do
samaritano e contrapô-la à indiferença do sacerdote e do levita. Por isso, na
continuidade, Ele diz: “Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele
caminho” (v. 31a), ou seja, estava voltando de Jerusalém após uma semana
inteira de serviço no templo, conforme a distribuição das classes sacerdotais
durante o ano litúrgico judaico. Portanto, estava em seu grau máximo de pureza.
Por isso, “quando viu o homem, seguiu adiante pelo outro lado” (v. 30b),
exatamente porque o contato com um homem quase morto o tornaria impuro também,
conforme determinava a lei. A lei estava acima da vida para a religião judaica
do tempo de Jesus. O sacerdote cumpre rigorosamente a lei, assim como o mestre
interlocutor de Jesus tinha dificuldade em reconhecer quem é o seu próximo
porque vivia uma religiosidade meramente ritualista e vazia de amor.
A mesma indiferença do sacerdote é repetida
por um levita, que era uma espécie de “sacristão”, o auxiliar dos sacerdotes no
serviço litúrgico do templo: “chegou ao lugar, viu o homem e seguiu pelo
outro lado” (v. 32). Como bom sacristão, o levita não poderia ter outro
exemplo a seguir senão o do sacerdote, por isso, imita seus gestos, inclusive a
indiferença diante do sofrimento do outro. Como voltava do serviço litúrgico, também
não queria contaminar-se com um quase morto, certamente ensanguentado do
espancamento.
A verdadeira afronta de Jesus ao mestre da
lei vem colocada a partir do versículo 33, quando ele diz na parábola que “um
samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão”.
Como sabemos, os samaritanos eram mal vistos pelos judeus; havia uma rivalidade
secular entre eles. Quando
a Assíria conquistou Samaria, a capital do Reino do Norte, em 722 a.C.,
deportou a população local e trouxe povos estrangeiros para habitar na cidade
(cf. 2 Rs 17,24-28). Os novos habitantes levaram seus costumes e tradições
religiosas, o que levou a Samaria a ser conhecida como terra de sincretismo, de
heresias e povo impuro. É essa a origem histórica da relação conflituosa.
Inclusive, quando os judeus retornaram do exílio e começaram a reconstruir o
tempo e a cidade de Jerusalém, mesmo em meio às dificuldades, rejeitaram a
ajuda oferecida pelos samaritanos, como atesta o livro histórico de Esdras (cf.
Es 4,3). A maior ofensa que um judeu poderia receber era ser chamado de
samaritano. Era o mesmo que dizer herege, pecador, impuro... alguém da pior
qualidade possível.
Os próprios Jesus com seus discípulos tinham
sido rejeitados pelos samaritanos no início do caminho (cf. Lc 9,53), e hoje
Jesus apresenta um samaritano como alguém que age como Deus. De fato, ver e ter
compaixão, são atitudes próprios de Deus. E, infelizmente, os homens que
pareciam conhecer a Deus, o sacerdote e o levita, não conheciam seus
sentimentos, mas um infiel aos olhos da religião.
O sacerdote e o levita viram o estado
miserável em que se encontrava o homem, mas foram para o outro lado do caminho.
O samaritano viu, sentiu compaixão e aproximou-se. Duas atitudes completamente
opostas. A compaixão do samaritano fez com que ele se aproximasse e cuidasse do
homem. Quase dez verbos são usados na sequência do texto, e todos eles são
verbos de ação. Assim, Jesus contrapõe a omissão dos praticantes da religião à
ação movida de compaixão da parte do herege, comovendo ainda mais o mestre da
lei.
Uma vez que a parábola foi contada como
resposta à pergunta “E quem é o meu próximo?” (v. 29), Jesus devolve novamente
uma pergunta ao mestre: “Na tua opinião qual dos três foi o próximo do homem
que caiu nas mãos dos assaltantes?” (v. 36). Da pergunta de Jesus emerge um
dado muito importante: o próximo não é, o próximo faz-se. Para os judeus, o
próximo era o parente, o companheiro de religião e, no máximo, o estrangeiro
radicado entre eles. Portanto, era uma categoria estática. Jesus diz, com a
parábola e a pergunta final, que o próximo se faz, ou seja, são as
circunstâncias que tornam alguém próximo.
A resposta do mestre à pergunta de Jesus é
correta, embora ele mesmo não a aceite: “Aquele que usou de misericórdia
para com ele” (v. 36a) foi o próximo. Dois aspectos chamam a atenção nessa
resposta: primeiro, o mestre evita mencionar “o samaritano”, o que para ele era
uma espécie de palavrão, por isso, diz apenas “aquele”, quer dizer que o judeu
fiel continuava fechado em sua mentalidade mesquinha e cheio de rancor;
segundo, o uso da misericórdia que é atribuído somente a Deus em todo o Antigo
Testamento e apenas a Jesus no Novo, é agora atribuído também a um homem e da
pior qualidade possível, conforme tinha ensinado a religião dos judeus.
A única vez em que se atribui a um homem o
uso da misericórdia é aqui. E não se atribui a um homem da religião, mas a um
herege. Essa é uma das grandes novidades de Jesus e de Lucas em seu Evangelho. De
todos os envolvidos na parábola, o único que foi considerado um exemplo e
parecido com Deus foi um homem que a religião condenava. Ao mestre da lei,
Jesus aconselha: “Vai e faze a mesma coisa” (v. 37), ou seja, pede que
seja como um samaritano, um excluído e tratado como herege.
Com isso, Jesus aconselha o mestre da lei e a
todos, de ontem e de hoje, a abrir mão de todos os preceitos impostos pela
religião e perceber que o amor a Deus e ao próximo são inseparáveis.
Pe. Francisco
Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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