Neste décimo quarto domingo do
tempo comum, a liturgia retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas. O texto
proposto para hoje é Lc 10,1-12.17-20, tradicionalmente conhecido como a “missão
dos setenta e dois discípulos”, um episódio exclusivo de Lucas, que funciona
como uma síntese antecipada da missão universal, o que o autor irá desenvolver
com mais precisão no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos
Apóstolos. O contexto é o da grande viagem (ou caminho) para Jerusalém, a seção
narrativa mais extensa de todo o Evangelho de Lucas, totalizando dez capítulos
(9,51 – 19,28). Com essa viagem, o evangelista não trata apenas de um percurso
físico, mas de um itinerário teológico e catequético, ressaltando a itinerância
do movimento de Jesus e preparando a missionariedade futura da Igreja.
Como literalmente ser discípulo
é ser seguidor de alguém (de um mestre), é na dinâmica do caminho que o
discipulado se constrói. Por isso, essa etapa corresponde ao ponto alto da
formação dos discípulos de Jesus, na perspectiva lucana. Inclusive, é durante
essa seção narrativa que o evangelista mais apresenta elementos exclusivos
seus, ou seja, elementos que não constam nos outros evangelhos. Com exceção do
chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), podemos dizer que a etapa do
caminho para Jerusalém corresponde ao que Lucas apresenta de mais original em
seu Evangelho. É importante recordar que os três evangelhos sinóticos mostram o
envio missionário dos Doze discípulos (cf. Mt 10,1-11; Mc 6,7-13; Lc 9,1-6),
cujas regras são praticamente as mesmas do episódio de hoje; mas a missão dos
setenta e dois é exclusividade de Lucas.
Não
obstante as exigências para o seguimento de Jesus, como mostrava o Evangelho de
dois domingos atrás (cf. Lc 9,18-24) o discipulado crescia cada vez mais: “O
Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na
sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir” (v. 1). O número
setenta e dois evoca o universalismo, pois os judeus imaginavam que fosse esse
o número das nações da terra (cf. Gn 10). Com isso, o evangelista recorda que o
mundo todo será contemplado com o anúncio do Reino de Deus. O envio “dois a
dois” recorda a importância da vida comunitária; o ser humano não foi criado
para estar sozinho, mas acompanhado (cf. Gn 1,18). Aqui há também uma maneira
de chamar a atenção para o compromisso dos discípulos: a chegada de Jesus e sua
mensagem a um lugar depende essencialmente da presença dos seus seguidores. Com
a imagem da messe (v. 2), Jesus alerta para a urgência do anúncio. A messe
(colheita) deve ser feita no tempo oportuno, para que não se perca, por isso,
os discípulos não podem perder tempo durante o anúncio.
Jesus
prevê hostilidades aos discípulos durante a missão, por isso os adverte: “Eis que
vos envio como cordeiros para o meio de lobos” (v. 3).
O anúncio do Reino vai de encontro a projetos de poder que incentivam a
violência e fazem uso dessa. Para Jesus, é inadmissível o uso da força pelos
seus discípulos, nem mesmo para autodefesa. O cordeiro é a imagem de quem não
reage à violência com violência em hipótese alguma. Faz parte da missão confiar
na bondade das pessoas, inclusive para a própria sobrevivência: “Não leveis
bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!”
(v. 4). Bolsa e sacola significam desejo de acúmulo e apego ao supérfluo, e
sandálias aqui, especificamente, significa comodidade; portanto, são coisas
incompatíveis com o seguimento de Jesus. A recomendação para não cumprimentar
ninguém no caminho diz respeito à urgência do anúncio, pois as saudações
pessoais nas antigas culturas orientais compreendiam rituais bastante longos.
Na continuidade das
recomendações, Jesus ensina o que é realmente essencial anunciar: “Em
qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’. Se
ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará
para vós” (vv. 5-6). A paz era o bem mais almejado para o ser humano, de
acordo com a mentalidade bíblica, pois compreendia a felicidade e o bem-estar
integral do ser humano, contemplando todas as dimensões da vida, e isso
coincide exatamente com a proposta do Reino de Deus: promover o bem do ser
humano, acima de tudo.
Além do desapego aos bens
materiais, o discipulado exige também o abandono de mentalidades fechadas e de
preceitos separatistas, como as leis de pureza alimentar: “Permanecei
naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o
seu salário. Não passeis de casa em casa. Quando entrardes numa cidade e fordes
bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: ‘O Reino de Deus está
próximo de vós” (vv. 7-9). Um dos maiores entraves para a
convivência dos judeus com não-judeus era a observância rígida das regras de pureza
alimentar; eles não entravam de casa em casa com medo de se contaminarem;
tinham uma lista de alimentos “puros” e só comiam daquilo, o que faz com que
essa recomendação de Jesus se torne altamente revolucionária. A missão dos enviados de Jesus,
independente da época histórica, consiste na promoção da vida e da dignidade
das pessoas. Curar e expulsar demônios, na linguagem bíblica, é combater tudo o
que impede o bem-estar do ser humano, incluindo a cura das doenças e a
libertação das estruturas injustas e toda forma de escravidão; e esses são os
sinais de que o Reino de Deus está se concretizando.
Jesus
previne os discípulos também para a possibilidade de não aceitação da sua
mensagem, não pregando vingança, mas alertando para que não insistam diante da
recusa e partam logo para outros lugares: “Mas,
quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas,
dizei: ‘Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos
contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!’ Eu vos digo
que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade” (vv.
10-12). O anúncio cristão é uma proposta de vida que não pode ser imposta, mas
apenas oferecida. Aqui, Jesus não propõe a vingança para quem não aceita o anúncio
do Reino, mas alerta os discípulos a não perderem tempo e deixa claro que há
consequências para quem recusa o anúncio do Reino; essas consequências não são
castigo, mas a privação da vida plena e abundante que somente com a vivência do
Evangelho é possível experimentar.
A liturgia salta alguns
versículos (vv. 13-16) e já passa para o retorno dos discípulos, bastante
entusiasta, por sinal: “Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo:
“Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v. 17). A alegria
dos discípulos pelo êxito da missão corresponde à força da Palavra por eles
anunciada. A “obediência dos demônios” significa o mal combatido em todos os
sentidos, incluindo a superação das doenças, da violência, das injustiças e
preconceitos. Isso só é possível quando tudo é feito no nome de Jesus, o Reino
de Deus em pessoa.
Diante do entusiasmo dos
discípulos, Jesus toma novamente a palavra: “Jesus respondeu: “Eu vi Satanás
cair do céu, como um relâmpago. Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e
escorpiões e sobre toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal” (vv.
18-19). Jesus interpreta o sucesso da missão dos setenta e dois como o fim do
domínio das forças do mal sobre o mundo. A imagem de “satanás caindo do céu”
não significa a queda de um monstro das alturas, mas a superação do mal pelo
bem. Quer dizer que a missão transforma realidades, não obstante as
hostilidades, representadas nas palavras de Jesus pelas imagens das “cobras e
escorpiões”. O Evangelho liberta das mais perversas estruturas de poder que
geram morte, dor, injustiça e preconceito. Onde o Reino se instaura, o mal
desaparece.
Por último, Jesus recomenda aos
discípulos que não se entusiasmem demais com os resultados, inclusive por
precaução de um possível envaidecimento da parte deles: “Contudo, não vos
alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes ficai alegres porque vossos
nomes estão escritos no céu” (v. 20). O que importa para o discipulado é a
certeza de estar em sintonia com os propósitos de Deus, ajudando a construir o
seu Reino. Ter o nome inscrito no céu significa a certeza de ser amado por Deus,
e é isso que conta na vida do ser humano, e não os méritos pessoais de cada um.
É a certeza desse amor que deve motivar o ser humano a lutar para que esse mesmo
amor chegue a todos os lugares e corações e, para isso, é necessária a missão.
A missão dos setenta e dois é
um aceno do evangelista Lucas à inclusão e à superação de círculos fechados que
muitas vezes aprisionam o Evangelho nas comunidades. Jesus não deixou a sua
mensagem a encargo somente dos Doze, mas de qualquer pessoa que esteja disposta
a colaborar com a missão de fazer o Reino de Deus acontecer. Para colaborar com
o Reino é necessário colocar-se em caminho com Jesus, com disposição para amar
indistintamente, conviver com as diferenças, criar laços e superar barreiras. A
luta contra o mal exige essa disposição.
Pe. Francisco Cornelio
Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Oi. Não teremos reflexão esta semana sobre a parábola do bom samaritano? Adoro suas interpretações. Parabéns pelo trabalho. Abs
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