Todos os anos, a liturgia propõe para a solenidade de todos os santos o texto de Mateus 5,1-12a. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de
todo o Novo Testamento. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos
de Jesus no Evangelho segundo Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da
montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido a
repetição constante do termo grego μακαριοι – makárioi, cujo significado
é benditos, felizes ou bem-aventurados.
As
bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e,
consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um
texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de
modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos
e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por
isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o
Evangelho apresenta.
O discurso
da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto,
para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem
evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao
devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos
anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu
projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.
De todas
as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as
bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as
mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a
uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua
mensagem seja sempre de encorajamento e transformação.
Na versão
mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores
considerem nove, devido a ocorrência do termo grego μακαριοι –
makárioi por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11)
como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito
para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem
intensamente todas elas.
Para
compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer
mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego
empregado no Evangelho é μακαριοι – makárioi, o qual pode ser
traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz
uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em
grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica,
sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na
língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao
grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é אשרי – ashrei, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo
tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou
pôr-se em marcha. Acreditamos que o evangelista pensou nos dois sentidos ao
formular o seu texto. Sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças não
passariam de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de
transformação.
Olhemos,
pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de
transformação. Eis a primeira bem-aventurança: “Bem-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). De
todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido a pior interpretação ao
longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um
impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχος – ptokós) deriva
do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa,
portanto, uma condição de humilhação extrema.
O convite
de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam,
coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino
dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e
plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνευμα –
pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se
encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela
religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e,
conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra
encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e
lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.
A segunda
bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão
consolados” (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha
em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento.
Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo.
A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições
para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar.
Na terceira
bem-aventurança, Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos, porque
possuirão a terra” (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e
significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso
particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da
violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais
difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência,
determinação e ação; em outras palavras, é como se Ele dissesse: “não
parem, continuem caminhando e lutando”. Era muito comum os pequenos
camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À
medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos
desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.
Como não
poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme Ele mesmo o fizera,
a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é
tão forte: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
serão saciados” (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais
incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a
vida, também deve ser a luta por Jesus entre seus discípulos. A comunidade
cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não
há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta
por justiça.
Na quinta
bem-aventurança, temos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque
encontrarão misericórdia” (v. 7). É importante recordar que
misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos
necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no
caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de
Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem
ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.
Com
a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de
purificação da religião judaica: “Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus” (v. 8). Os antigos ritos de purificação do
judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade
daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção,
avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até
mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por
nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos
de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa
direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.
A sétima
bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus” (v. 9). Na marcha da comunidade
formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito
básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma,
intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de
conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra שלום– shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com
Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de
discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo
da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há
consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é
ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna
parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.
A oitava
bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o
reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: “Bem-aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (v.
10). A justiça, por excelência, é a prática das bem-aventuranças anteriores. A
quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a
perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua
sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em
busca do Reino que é vosso!
Viver as
bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que,
inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na
exploração, no lucro e na sobreposição de uns sobre os demais. Mas é diante de
tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir
em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento
anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as
consequências do abraçar o seu projeto: “Bem-aventurados sois vós,
quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal
contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa
recompensa nos céus” (vv. 11-12a). Não consideramos essa afirmação
como uma nova bem-aventurança, mas como um reforço e síntese das oito
anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as
apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso
viver todas elas para ser discípulo de Jesus, pois nelas ele traça o seu
próprio retrato, diz como Ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo
deve, inevitavelmente, viver como Ele.
Assim,
recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se
mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças,
podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não
aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um
outro caminho; não para fugir da realidade, mas para transformá-la.
Para
seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra
tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã
não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se
transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que
impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque
convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a
um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues –
Diocese de Mossoró-RN
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