Neste trigésimo segundo domingo
do tempo comum, a liturgia retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas, após a
interrupção do domingo passado, devido à solenidade de todos os santos. Por
sinal, por ocasião daquela solenidade, fomos privados de celebrar o trigésimo
primeiro domingo, cujo evangelho era Lc 19,1-10, um dos principais textos de
todo o Evangelho segundo Lucas, pois corresponde ao episódio do encontro de
Jesus com o publicano Zaqueu, o ponto culminante do longo caminho para
Jerusalém. Acompanhamos praticamente todo o caminho, mas perdemos a sua conclusão,
infelizmente. O texto proposto para hoje – Lc 20,27-38 – apresenta Jesus já na
cidade de Jerusalém, provavelmente nas dependências do templo, em um debate
polêmico com os saduceus acerca da ressurreição dos mortos.
O ministério de Jesus em
Jerusalém foi curto e polêmico. Sua primeira atitude ao entrar na cidade foi
desmascarar o templo como casa de comércio, expulsando de lá os vendedores (cf.
Lc 19,45-46). Depois disso, passou a ensinar no templo todos os dias (cf. Lc
19,47), colocando cada vez mais a sua mensagem em confronto com a doutrina
oficial e, consequentemente, tornando a sua morte cada vez mais próxima e real.
Durante o ministério na Galileia e no caminho, os principais adversários de
Jesus tinham sido os fariseus. Em Jerusalém, os fariseus praticamente saem de
cena, o que prova que eles não estavam diretamente ligados ao poder político e
nem religioso, mas compunham um movimento mais popular, embora rígido no que se
refere à doutrina e à observância da Lei. Os grupos que se opõe a Jesus em Jerusalém
são os sacerdotes, os escribas, anciãos e os saduceus – todos componentes do
sinédrio – responsáveis diretos pelo poder religioso e coniventes com a
dominação romana.
O trecho lido hoje relata uma polêmica
com os saduceus acerca da ressurreição. É um episódio relatado nos três
evangelhos sinóticos (cf. Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; Lc 20,27-38), sendo que é a
única vez em que os saduceus aparecem no Evangelho de Lucas. De todos os
grupos, partidos ou movimentos existentes na época, os saduceus eram o grupo
mais conservador; era também o grupo mais rico, formado pela aristocracia de
Jerusalém. Era desse grupo que saíam os sumos sacerdotes; o próprio nome deriva
de Sadoc, um importante sacerdote dos tempos de Davi; inclusive, foi Sadoc quem
ungiu Salomão como rei (cf. 1Rs 1,38-40). Por isso, era um grupo concentrado em
torno do poder religioso e político; aceitavam passivamente a dominação romana
em troca de privilégios e detinham o maior número de assentos no sinédrio, o
máximo órgão jurídico de Israel. Os evangelhos os mencionam pouco porque eles
atuavam somente na cidade de Jerusalém, e a maior parte do ministério de Jesus
foi desenvolvido no interior, sobretudo na Galileia, onde havia mais influência
dos fariseus.
Uma vez contextualizados, olhemos
para o texto: “Aproximaram-se de Jesus alguns saduceus, que negam a
ressurreição” (v. 27). No que diz respeito à doutrina, uma das principais
características dos saduceus era a negação explícita da ressurreição. Não
tratamos disso na contextualização, uma vez que é o próprio texto quem fornece a
informação. Inclusive, os saduceus consideravam como palavra de Deus somente a
Torá, ou seja, o Pentateuco, e achavam nos cinco primeiros livros não havia
nenhuma fundamentação para a fé na ressurreição. Rejeitavam os profetas, porque
o ensinamento profético era composto de sérias denúncias à casta sacerdotal e a
todos os agentes de exploração, como eles, os saduceus. Respeitavam o restante
do Antigo Testamento, mas não o tinham como ponto de referência para a fé.
Os saduceus fazem um questionamento
a Jesus sobre a ressurreição, com o intuito de colocá-lo em dificuldade ou
contradição. Imaginavam que, diante do caso apresentado, Jesus não encontraria
saída. Eis o problema: “E lhe perguntaram: “Mestre, Moisés deixou-nos
escrito: se alguém tiver um irmão casado e este morrer sem filhos, deve
casar-se com a viúva, a fim de garantir a descendência para o seu irmão” (v.
28). Antes de tudo, eles usam um aspecto importante da Torá, ensinamento considerado
inquestionável para eles e para todo o judaísmo. Aqui, eles se referem à
chamada “lei do levirato”, termo latino que deriva de “levir”, cujo significado
é cunhado. De acordo com essa lei, quando um homem casado morria sem deixar
filhos, um irmão do falecido, ou seja, um cunhado, deveria casar-se com a viúva
para garantir a descendência (cf. Dt 25,5-10).
A questão em si é bastante
simples, pois era muito comum acontecer casos assim. Só se torna inusitada com a
história contada para embaraçar Jesus, em seguida: “Ora, havia sete irmãos.
O primeiro casou e morreu, sem deixar filhos. Também o segundo e o terceiro se
casaram com a viúva. E assim os sete: todos morreram sem deixar filhos. Por
fim, morreu também a mulher” (29-32). Aqui, de fato, a história se torna
atípica, devido ao exagero; por trás de tudo, há também uma ridicularização da
mulher; como era considerada um objeto de posse, a história contada pelos saduceus
a apresenta como uma mercadoria que passou por diversos proprietários.
Da história contada, os adversários
de Jesus propõem o verdadeiro problema, esperando dele uma resposta
contraditória e, assim, teriam mais um motivo para incriminá-lo: “Na
ressurreição, ela será esposa de quem? Todos os sete estiveram casados com ela”
(v. 33). Além de não acreditarem na ressurreição, os saduceus tinham também
uma visão equivocada dessa. Ora, eles partem da ideia tradicional, pregada
inclusive pelos fariseus, e da qual Jesus discorda, que concebia a ressurreição
como uma mera recomposição aperfeiçoada da vida presente, fruto de uma
interpretação equivocada da visão alegórica dos ossos ressequidos no livro do
profeta Ezequiel (cf. Ez 37) e de outros textos. Se trata de uma concepção
materialista da vida futura. Essa era a ideia difundida na época.
Na resposta, Jesus revela o seu
distanciamento da concepção popular de ressurreição, ensinando que a vida
futura não será uma continuação desta vida, nem sequer será semelhante, mas
será uma nova vida, cujo parâmetro não é a vida presente, mas tudo será novo,
uma vez que a ressurreição é a oferta que Deus faz da sua própria vida, da sua eternidade,
e isso não está ao alcance das abstrações humanas. Eis a resposta de Jesus: “Jesus
respondeu aos saduceus: “Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se, mas os
que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida
futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento; já não poderão morrer,
pois serão iguais aos anjos, serão filhos de Deus, porque ressuscitaram” (vv.
34-36). Antes de tudo, Jesus desconcerta os saduceus: mesmo sem acreditar, eles
foram mal formados acerca da ressurreição. Ao dizer que na vida futura “os
homens e as mulheres não se casam e nem se dão em casamento”, ele afirma que
nenhuma relação ou realidade desta vida pode ser comparada à ressurreição. Os
anjos, em quem os saduceus também não acreditavam, eram os seres mais próximos
de Deus, conforme a fé tradicional do judaísmo; dizendo que os seres humanos
serão iguais aos anjos, ele afirma que serão muito próximos a Deus, com a
ressurreição. Com a ressurreição, portanto, não será uma melhoria desta vida,
mas uma transformação radical.
O ápice da resposta de Jesus, no
entanto, é a citação da Lei, ou seja, a referência a Moisés: “Que os mortos
ressuscitam, Moisés também o indicou na passagem da sarça, quando chama o
Senhor de ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’. Deus não é Deus
dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele” (vv. 37-38). Ora, os
saduceus gabavam-se de que na única parte da Escritura válida para eles, o
Pentateuco, não havia qualquer fundamento para uma fé na ressurreição, e Jesus
mostra que eles estavam equivocados e compreendiam mal a Escritura. De uma
leitura atenta do Pentateuco é possível encontrar razões para a ressurreição.
Por isso, Jesus recorda o diálogo de Deus com Moisés, no episódio da sarça
ardente (cf. Ex 3,1-6), no qual Deus se apresentou como o Deus dos patriarcas,
mas não simplesmente como o Deus em quem os patriarcas acreditaram, mas o Deus
que estava em comunhão com eles. E o que Deus prometera e concedera aos
patriarcas é válido para todas as gerações dos que o temem (cf. Lc 1,50.72-75).
A interpretação limitada da
Escritura pelos saduceus, desmascarada por Jesus, alimentava um sistema de
dominação e alienação que mantinha os privilégios de uma classe e de todo um
sistema. Além de abrir perspectivas e alimentar esperanças, sobretudo a
esperança de um mundo novo, Jesus também desmascara o uso reduzido e
fundamentalista da Escritura por grupos hegemônicos. Ao deixar claro que a vida
futura não será um aperfeiçoamento desta vida, Jesus também nos estimula a melhorar
a vida presente em sua realidade mais concreta. Por isso, podemos dizer que o
centro do evangelho de hoje não é uma definição doutrinal da ressurreição, mas
um convite à esperança para a transformação desta vida, já que da outra é Deus
mesmo quem se encarrega.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
E-mail: francornelio@gmail.com
Obrigado, meu caro irmão.
ResponderExcluirFraterno abraço.
+Luiz