O evangelho da
solenidade da ascensão do Senhor, neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A,
é Mt 28,16-20. Esse texto corresponde aos últimos versículos do Primeiro Evangelho.
Por isso, contém as últimas palavras de Jesus na respectiva obra, funcionando
como uma espécie de testamento. Dos pontos de vista litúrgico e
teológico, pode-se dizer que a ascensão é a consumação da ressurreição, a plenitude
da Páscoa: o Ressuscitado penetra no mundo do Pai e, ao mesmo tempo, garante a sua
presença perene entre os seus seguidores, confiando-lhes a missão de
continuarem a sua obra. É importante destacar, logo de início, que o evangelho
segundo Mateus não chega a descrever a ascensão. Aliás, essa vem descrita apenas
na obra lucana (Lc 24,50-51; At 1,6-11) e no acréscimo redacional de Marcos (Mc
16,19). Em Mateus, o que é narrada é a manifestação do Ressuscitado aos
discípulos na Galileia, dando-lhes as últimas recomendações e garantindo
continuar com eles para sempre. E esse detalhe é muito significativo para
a compreensão de todo o Evangelho de Mateus e, consequentemente, para a vida da
Igreja em todos os tempos.
Podemos dizer
que o texto de hoje é uma síntese conclusiva de todo o Evangelho de Mateus. À
medida em que escreve suas últimas linhas, o evangelista e sua comunidade fazem
questão de resumir a essência de tudo o que já tinha sido apresentado ao longo
da obra, sobretudo em relação aos ensinamentos de Jesus. É isso que percebemos
hoje. Portanto, para compreendê-lo bem é necessário que o leitor esteja
familiarizado com o conjunto da obra. Na impossibilidade de recordar o
Evangelho todo, recordamos, pelo menos, os últimos acontecimentos narrados: o
relato da ressurreição com a manifestação do anjo e do próprio Ressuscitado às
mulheres (Mt 28,1-10), e o suborno dos guardas pelos sacerdotes com a mentira
do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos (Mt 28,11-15). O texto de hoje
sucede imediatamente a esses acontecimentos. Tanto o anjo do Senhor (28,5-7),
quanto o próprio Jesus (28,10) ordenaram às mulheres que avisassem aos
discípulos que retornassem à Galileia para, ali, fazerem também eles a
experiência do encontro com o Ressuscitado. Por isso, além de recordar, é
importante ressaltar que o encontro dos discípulos com o Ressuscitado, narrado
no evangelho de hoje, é fruto também do anúncio das primeiras apóstolas da
ressurreição: aquelas mulheres que, na madrugada do primeiro dia, foram visitar
o sepulcro e receberam o mandato de convencer os discípulos a retornarem a
Galileia para encontrarem o Ressuscitado (Mt 28,1-10).
É à luz das
informações recordadas anteriormente que podemos compreender o que o evangelho
de hoje diz logo em seu primeiro versículo: «Os onze discípulos foram
para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado» (v 16). A
menção aos onze recorda a perda de Judas, que já não fazia mais parte do grupo
dos discípulos, mas possui também um outro significado: o número doze
representava um projeto de reconstituição do antigo Israel, alimentando a
ideologia nacionalista e triunfalista. Esse projeto faliu, devido à rejeição de
Israel ao projeto de Jesus, cujo ápice foi à morte escandalosa na cruz. À luz
da ressurreição, a comunidade mateana, fazendo uma releitura dos últimos
acontecimentos, percebe que a missão universal confiada à Igreja não precisa
mais ser configurada às tradições de Israel. O projeto do Reino dos Céus que
Jesus anunciou ao longo do Evangelho não coincide com a restauração do reino de
Israel. Por isso, o número onze não significa incompletude da comunidade, mas é
sinal de uma nova perspectiva e ruptura com os antigos esquemas. Não podemos
esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um elemento
exclusivo da teologia de Lucas (At 1,15-26). Na perspectiva de Mateus, para a
comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário abandonar os
esquemas tradicionais do judaísmo. A base fornecida por Israel – a Lei e os
profetas – não perderam o seu valor, mas receberam o cumprimento (Mt 5,17). De
Jesus em diante, o que conta é o anúncio e a construção do Reino, cujas bases são
as bem-aventuranças.
Segundo a
recomendação, os discípulos foram para a Galileia, ao monte indicado. Ora, em
Jerusalém acontecera a grande tragédia para a comunidade dos discípulos. Além
de ter sido o cenário da paixão e morte de Jesus, a capital não oferecia
nenhuma perspectiva para a comunidade do Ressuscitado ali florescer. Basta
recordar o conluio dos poderes religioso, militar e político para desacreditar
a ressurreição, com a ideia do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos
(28,11-15). Aliás, Jerusalém foi hostil a Jesus desde o seu nascimento, com a
matança dos inocentes decretada por Herodes (Mt 2,16). O retorno à Galileia,
portanto, era essencial para a sobrevivência da comunidade e, ao mesmo tempo,
para o reencontro dos discípulos com as motivações e bases originárias. Além
das incompreensões ao longo da caminhada, marcada inclusive pela rivalidade
entre os discípulos (Mt 20,20), os acontecimentos envolvendo a paixão e a morte
de Jesus deixaram a comunidade profundamente abalada. Daí a necessidade de um
retorno ao ideal primeiro para fazer a experiência do monte. Ora, de acordo com
as tradições do Antigo Testamento, o monte é, por excelência, o lugar do
encontro com Deus e com a sua palavra.
Ao longo de
todo o seu Evangelho, Mateus situou Jesus no monte em diversas ocasiões, desde
às tentações (Mt 4,8-10) até a paixão (Mt 26,30). Inclusive, foi no monte que
Jesus proferiu o mais importante dos seus cinco discursos: o discurso da
montanha (Mt 5–7), que se constitui como o seu programa de vida, cujo centro é
as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). De fato, nas bem-aventuranças está o centro da
mensagem de Jesus, ou seja, a essência de tudo o que ele ensinou aos seus
discípulos. Foi também no monte que Jesus se transfigurou diante de alguns
discípulos, revelando antecipadamente sua identidade crucificado-ressuscitado. Logo,
o convite para os discípulos retornarem à Galileia para o monte é exatamente
para voltarem à essência do projeto de vida proposto por Jesus, percorrendo o
seu mesmo caminho e fazendo as mesmas opções dele. É também um modo de indicar
a continuidade entre a mensagem de Jesus de Nazaré, o galileu, e o
Ressuscitado. E a Galileia como região desprezada entre os judeus é também uma
advertência aos discípulos quanto aos destinatários primeiros da missão: os
pobres e marginalizados.
Na sequência,
o texto descreve a reação dos discípulos: «Quando viram Jesus,
prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram» (v.
17). A princípio, parecem duas posturas opostas diante da ressurreição,
mas o evangelista as vê como complementares. Prostrar-se é sinal de adoração e
de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista
emprega o mesmo verbo já empregado para indicar a atitude dos magos quando
visitaram Jesus recém-nascido em Belém (Mt 2,2.11) e para descrever o gesto das
mulheres quando viram o Ressuscitado pela primeira vez (Mt 289); Esse
verbo (em grego: προσκυνέω – proskinêo) tanto indica
adoração quanto sujeição a alguém, como deve ser a postura da comunidade:
adorar e sujeitar-se somente a Jesus e ao que ele deixou como ensinamento,
assumindo completa autonomia e emancipação em relação aos preceitos da Lei e às
imposições do imperador romano. Assim como os magos e as discípulas mulheres, também
os onze discípulos aceitam os valores do Reino como universais e, por isso,
lutarão para que cheguem a todos lugares da terra, indistintamente. Ao
contrário do que parece, a dúvida não faz mal à comunidade. Tanto é que Jesus
não repreende os discípulos por isso. A dúvida é sinal de busca, e não de
rejeição. Ao longo da missão universal da Igreja, muitas dúvidas surgirão,
tanto em quem anuncia quanto nos destinatários do anúncio. As dúvidas abrem
espaço para o Espírito Santo iluminar a comunidade e conduzi-la à verdade.
Enquanto as certezas geram autoritarismos e imposições, as dúvidas dão margem
ao diálogo, à abertura ao diferente. O antídoto à dúvida não é a certeza, mas a
fé e o amor. Quanto maiores forem as dúvidas, maior será a necessidade da fé e
do amor na comunidade.
Diante da
reação dos discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso que,
de certo modo, sintetiza todo o Evangelho de Mateus (vv. 18-20). É importante
perceber que não são palavras de despedida, mas de envio e comissionamento. Para
Mateus, Jesus nunca se despediu da comunidade, pois na sua essência está sua
presença, o “estar com”. Ao dizer «Toda autoridade me foi dada no céu e
sobre a terra» (v. 18), Jesus está decretando a falência dos poderes
sediados em Jerusalém (religioso, militar e político), e estabelecendo uma nova
ordem. Está também reivindicando para si a identificação com a figura do “Filho
do Homem” (Dn 7,13-14) e, ao mesmo, tempo corrigindo-a: ao Filho do Homem do
livro de Daniel, foram dados poder e domínio. Jesus trocou o domínio pelo
serviço (Mt 20,28), preferindo exercer sua autoridade no amor. A verdadeira
autoridade, motivada pelo amor, parte da periferia – a Galileia –, enquanto em
Jerusalém tem apenas força de morte, uma vez que lá o poder é exercido com base
na mentira, no medo, no suborno e na violência, conforme o relato da paixão
mostrou claramente. “Céu e terra”, aqui, significam a totalidade da criação
submetida a Jesus Ressuscitado; quer dizer que o Pai lhe entregou tudo. Significa
que tudo o que é de Deus passa por Jesus e está com ele, porque foi entregue em
suas mãos.
O discurso
prossegue com o envio universalista e inclusivo: «Portanto, ide e fazei
discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo» (v. 19). Aqui, Ele está, de fato, fazendo uso da
sua autoridade e, mais uma vez, mostrando a diferença da sua para outras formas
de exercício de poder. Ele não envia seus discípulos para impor e nem dominar,
mas para fazer novos discípulos, uma vez que no seu Reino não há súditos, mas
irmãos. Essa é, sem dúvidas, uma das maiores novidades de seu projeto de vida e
de mundo. Não envia os discípulos para doutrinar ninguém, mas para apresentar
um programa de vida, delineado ainda no início do Evangelho, com a proclamação
das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Destacamos aqui a força do verbo empregado
pelo evangelista para a expressão “fazer discípulos”: no grego, idioma original
do evangelho, há o verbo “discipular” (μαθητεύω –
matheteuô); com ele, o evangelista consegue distinguir o discipulado de uma
simples tarefa, o que não distinguimos com facilidade em nossa língua, com as
traduções que temos. Gerar discípulos ou discipular é, antes de tudo, viver o
discipulado plenamente para torná-lo fecundo e, consequentemente, gerar mais
discípulos. Também é importante recordar que os discípulos enviados para
formar mais discípulos não deixam de ser discípulos; não recebem títulos que os
distingue dos demais, novos e futuros discípulos. Sejam de os de primeira hora,
sejam os que vierem depois, os seguidores de Jesus não mais do que discípulos,
tendo em vista que Ele é o único mestre e Senhor.
O novo e
universal discipulado deve nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver
dos discípulos de primeira hora, os quais não são cumpridores de tarefas, mas
seguidores de Jesus de Nazaré, o Ressuscitado. O conjunto do ensinamento de
Jesus é sua forma de viver. Logo, é vivendo à sua maneira que se ensina e,
consequentemente, faz nascer novos discípulos e discípulas. À missão de
“discipular”, é intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença à
comunidade dos discípulos. Mateus pensa na sua comunidade, obviamente, marcada
pela tensão entre os adeptos e os contrários à prática judaica da circuncisão.
Dos novos discípulos, não deve ser exigido nenhum sinal externo além do
batismo. A fórmula trinitária expressa a preocupação do evangelista para que o
batismo de ingresso na comunidade cristã não seja confundido com o rito
penitencial praticada por João Batista. A expressão “Em nome de/do” indica a
força do batismo. Na tradição bíblica, o nome de uma pessoa é a sua própria
identidade e essência, expressa a totalidade do seu ser. Portanto, ser batizado
em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser impregnado da essência mesma
de Deus.
Como última
recomendação do mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais do que uma
ordem: «E ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!» (v
20a). Em nenhum outro Evangelho essa expressão teria a profundidade que tem em
Mateus. Ora, Mateus é, por excelência, o Evangelho do ensinamento
(em grego: διδαχή – didakê), tanto que está estruturado em torno de cinco discursos: o
discurso da montanha (Mt 5–7); o discurso missionário (Mt 10); o discurso em parábolas
(Mt 13); o discurso comunitário (Mt 18) e o discurso escatológico (Mt 24–25).
Nesses cinco discursos está totalidade do ensinamento de Jesus, para a
comunidade de Mateus, e é isso o que deve ser ensinado; dos cinco, destaca-se o
primeiro, o discurso programático, chamado de “discurso da montanha”. A
comunidade cristã tem a missão de ensinar tudo, sem distorção alguma, do que
Jesus ensinou e ordenou. Essa totalidade do ensinamento de Jesus, no entanto,
não passa de um jeito de viver, ou seja, é um programa de vida. Por isso, não
pode ser distorcido e nem substituído por uma doutrina ou ideologia. E o efeito
de ensinar a observar o conjunto da mensagem de Jesus é a construção de um
mundo novo, uma humanidade nova. Em outras palavras, é a humanização do mundo.
Finalmente, olhamos para a última frase de todo o evangelho, que é, na verdade,
uma síntese da obra de Mateus enquanto livro e da missão mesma de Jesus: a
certeza da sua presença permanente na comunidade: «Eis que eu estarei
convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (v. 20b). Embora a
tradução do texto litúrgico apresente o verbo “estar” no futuro, o evangelista
o emprega no presente, conforme o texto grego. Isso significa que Jesus nunca
se ausentou da comunidade, ou seja, Ele não foi embora para voltar depois, mas
permaneceu sempre. Aqui, ele diz «Eu estou convosco». Por sinal, a presença é
um tema teológico central no Evangelho de Mateus: no início, Jesus é
apresentado como Emanuel, cujo significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele
mesmo garantiu estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome
(18,20), e garante, aqui na conclusão, permanecer para sempre com os
discípulos. Por isso, com essa certeza, Mateus não tinha motivos para descrever
Jesus subindo para o céu, como fez Lucas. O importante é que a comunidade possa
sentir sua presença e que essa a estimule a viver e ensinar somente o que Ele
ensinou.
O Ressuscitado está, de fato, presente na comunidade que vive o ideal de vida proposto nas bem-aventuranças. Nessa comunidade todos são discípulos e discípulas e, portanto, irmãos e irmãs. Essa comunidade celebra, acolhe, convence pelo testemunho e coloca-se em saída para, com alegria, compartilhar tudo o que Ele ensinou. Ao colocar-se em saída, essa comunidade cumpre a missão de humanizar o mundo, não impondo doutrinas, mas vivendo intensamente o amor.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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