O evangelho da Solenidade de
Pentecostes é sempre o mesmo, independentemente do ciclo litúrgico vigente: Jo 20,19-23. Trata-se do relato da primeira
manifestação do Senhor Ressuscitado aos seus discípulos, ao anoitecer do
primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da ressurreição. Inclusive,
esse texto já foi lido na liturgia dominical deste tempo pascal, como parte do
evangelho do segundo domingo, como também acontece todos os anos. Naquela
ocasião, no entanto, este trecho fora lido como parte de uma sequência maior:
Jo 20,19-31, que compreende a manifestação do Ressuscitado também no domingo
seguinte à ressurreição, ou seja, «oito dias depois» (Jo
19,26). Portanto, embora estejamos de fato há cinquenta dias da Páscoa, o
evangelho de hoje nos remete ao dia mesmo da ressurreição.
Pentecostes era uma das três
maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da
Páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a Páscoa. Na Bíblia
hebraica é chamada de “festa das semanas” (שָּׁבֻעוֹת – shavuot), pois contavam-se sete semanas após a Páscoa,
mais um dia, totalizando cinquenta dias (7x7+1=50). Por isso, recebeu o nome de
“Pentecostes” (em grego: πεντηκοστή –
pentecostê) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo
dia (Tb 2,1; 2Mc 12,32). O fato de ser o resultado numérico da operação 7x7
indica a ideia de plenitude que essa festa transmite: o número perfeito – sete –
multiplicado por ele mesmo. Quer dizer que Pentecostes é a festa da plenitude da
Páscoa, tanto para a mundo hebraico quando para a fé cristã. Como todas as
festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do
povo: era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela
colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão
a Deus.
Com o passar do tempo, essa festa
perdeu sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com
uma conotação mais religiosa e histórica. O motivo da celebração passou, então,
a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e
dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as
partes do mundo, conforme as condições econômicas, iam a Jerusalém, para
agradecer a Deus pelo dom da Lei, transmitida através de Moisés. Lucas, autor
dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do
Espírito Santo com a festa judaica de Pentecostes, como artifício literário e
teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo, o dom pascal por excelência.
Com isso, ele ensinar que, para permanecer fiel a Jesus e à sua mensagem, a
comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés; deve
apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo.
Por outro lado, o autor o
evangelista João faz de tudo para que os referenciais da sua comunidade não
coincidam com os esquemas litúrgicos judaicos. Para ele, as grandes festas dos
judeus em Jerusalém sempre foram muito conflituosas para Jesus; eram momentos
de confronto e ameaça (2,13ss; 5,1.18; 7,1ss; 10,31; 11,56), além de sinônimo
de exploração e comércio. Por isso, ele situa a doação do Espírito Santo por
Jesus aos discípulos, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha
adotado o esquema cronológico de Lucas, a perspectiva joanina tem mais sentido
e responde melhor às necessidades dos discípulos, como mostra o Evangelho de
hoje: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por
medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus
entrou e, pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco!» (v. 19). Ora,
amedrontada e sem poder de ação, essa comunidade não teria condições de esperar
cinquenta dias para receber o Espírito Santo. É somente pela força do Espírito
Santo que as portas são abertas e os dons comunicados pelo Ressuscitado podem
ser experimentados por todos.
A comunidade dos discípulos
estava em crise, profundamente abalada. Até aquele momento, somente Maria
Madalena e o Discípulo Amado tinham convicção da ressurreição (Jo 20,8.16-18).
A morte de Jesus na cruz foi um alerta para os discípulos: quem continuasse
propagando ideias como as dele, poderia terminar da mesma forma. Por isso,
estavam as portas trancadas, devido ao medo. Por “medo dos judeus” entende-se o
medo das autoridades, e não de todo o povo; é típico de João usar o termo
“judeus” referindo-se às autoridades de Jerusalém (Jo 9,22; 12,42; 16,16).
Apesar do medo, o fato de estarem reunidos é um sinal de esperança; significava
que não tinham perdido completamente as esperanças; o ideal que os unia não
tinha ainda se apagado. Porém, não poderiam continuar naquela situação, ou
seja, acuados pelo medo. Ora, o medo impede a missão, as portas fechadas
bloqueiam o anúncio da Boa Nova. Enfim, o medo é falta de experiência com o
Ressuscitado.
Ao medo dos discípulos, o
Ressuscitado responde com o dom da sua paz. Aqui, a paz não significa
simplesmente a saudação típica do povo judeu, o famoso “shalom” (שָׁלוֹם).
Inclusive, a tradução correta da expressão não é “a paz esteja convosco”, como
está no texto litúrgico, mas “paz a vós”, sem a forma verbal “esteja”. O
Ressuscitado não transmite um desejo de paz, mas traz a paz efetivamente, faz a
paz acontecer. E quem faz experiência com Ele já tem a paz dentro de si, embora
seja uma paz inquieta, como ele mesmo viveu. E imediatamente os discípulos
sentiram a paz neles e entre eles, pois passaram do medo à alegria (v. 20). A
paz é plenitude de vida e equilíbrio, o bem-estar da pessoa em todas as suas
dimensões, condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz
estando no meio, quer dizer, no centro da comunidade. Para que os dons do
Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a sua centralidade na
comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos e lugares. Para
uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes
de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois
é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Por isso, ao se manifestar,
o Ressuscitado aparece sempre no meio.
Na continuidade da experiência,
diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado» (v.
20a). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o
Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. O Ressuscitado traz as
marcas do Crucificado, porque cruz e glória não se separam. Nas mãos e no lado
de Jesus está a sua identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são
símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que
tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (Mc 1,40), mãos que deram carinho a
crianças (Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (Jo 9,6),
mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (cf. Lc 4,40; 13,13), mãos que
lavaram os pés dos discípulos (Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a
vida e combateram o mal.
As marcas da cruz não apagaram a
força das mãos de Jesus. Essas mãos continuam à disposição da comunidade, e a
comunidade, por sua vez, tem a missão de fazer no mundo o mesmo que aquelas
mãos do Ressuscitado fizeram, ou seja, servir infinitamente e sem distinção.
Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de
continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou até o fim (Jo 13,1), e continua
amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são, portanto, a síntese da
sua vida, da sua mensagem e da sua práxis. Ele doa o Espírito Santo aos
discípulos para que suas mãos e o seu coração continuem presentes no mundo
servindo e amando de modo ainda mais eficaz. Por isso, «os discípulos
se alegraram por verem o Senhor» (v. 20b). Como fruto da paz
transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das
características da comunidade que deve viver para amar e servir.
A paz como bem-estar do ser
humano é novamente oferecida: «novamente Jesus disse: A paz esteja
convosco» (v. 21a). Novamente, não é um desejo, mas a afirmação de um
dom já presente, já verificável. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se
uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a
comunidade. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de
liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências
das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o
Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o
Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). É importante recordar
que, embora cada evangelista narre as aparições do Ressuscitado à sua maneira,
todos os quatro recordam um elemento comum: o envio missionário. E
trata-se de um elemento determinante para a construção da identidade da
comunidade cristã, a Igreja. Não há seguimento de Jesus sem disposição para a
missão. A Igreja nasceu para estar em saída. E a fonte da missão é o amor do
Pai, o que confere à comunidade cristã uma responsabilidade ímpar: fazer no
mundo o mesmo que Jesus fez, pois ele está enviando seus discípulos de todos os
tempos conforme fora enviado pelo Pai.
Como Jesus tinha prometido o
Espírito Santo aos discípulos na última ceia (cf. Jo 14,16.26; 15,26), eis que
a promessa é cumprida: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e
disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Aqui, o evangelista usa o
mesmo verbo empregado no relato da primeira criação do ser humano: «O
Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um
sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente» (Gn 2,7). Com isso, o
evangelista quer dizer que está sendo realizada uma nova criação. O verbo
soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação
de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a
humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também
comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade
alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver
e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro e fundamento,
colocando à disposição da humanidade mãos e coração para servir e amar
continuamente. O Espírito Santo é força dinâmica e vivificadora; é
movimento. Logo, a Igreja não pode parar no tempo, não pode acomodar-se.
Na sequência, o Ressuscitado
recorda os efeitos principais do Espírito Santo na vida da comunidade, conferindo-lhe
uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes
serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v.
23). Por muito tempo, esse versículo foi
usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão. No
entanto, não é um sacramento o que Jesus está instituindo, tampouco conferindo
um poder aos seus discípulos para determinar se um pecado pode ser perdoado ou
não. O que perdoa mesmo os pecados é o amor infinito de Deus que
Jesus revelou. Logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas
de Jesus deixam de comunicar esse amor. Em outras palavras, os pecados ficarão
retidos quando houver omissão da comunidade, ou seja, quando essa deixar de
produzir os frutos que Jesus pediu (cf. Jo 15,1-17). Ora, Jesus envia os
discípulos como Ele mesmo fora enviado pelo Pai (v. 21), confiando-lhes a
continuidade da sua própria missão. E a missão de Jesus foi sintetizada pelo
Batista como “tirar o pecado do mundo” (Jo 1,29). Tirar o pecado do mundo
significa promover intensamente o bem até eliminar o mal pela raiz, o que só se
faz através do amor, com ousadia profética. Agora, é Jesus quem confia à sua
comunidade de discípulos essa responsabilidade. Logo, os pecados são perdoados
à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus
discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.
É na comunidade que o
Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente
uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente
reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições para que a
alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada! Deixando-se conduzir pelo
Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a missão
única do próprio Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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