Com a retomada do tempo comum, a liturgia dominical retoma também a leitura
semi-contínua do Evangelho de Mateus, como é característico do ciclo litúrgico
A, após a longa interrupção para a vivência do ciclo pascal com as solenidades
que lhe seguem. Como este já é o décimo domingo, a leitura do respectivo
Evangelho já se encontra bastante avançada. O texto proposto para hoje – Mt
9,9-13 – faz parte da seção narrativa intermediária entre o primeiro e o
segundo discurso de Jesus nesse Evangelho, a saber, o discurso da montanha (Mt
5–7) e o discurso missionário (Mt 10,5–11,1). A alternância entre narrativa e
discurso constitui uma das principais características literárias de Mateus,
além de revelar importantes elementos da sua teologia. Com os discursos, ele
mostra Jesus ensinando, apresentando sua mensagem libertadora, assumindo sua
identidade e autoridade de mestre; com as narrativas, ele mostra Jesus em ação,
manifestando o Reino dos Céus mediante o seu agir misericordioso, se
relacionando com as pessoas, libertando-as e humanizando-as. Desse modo, o
evangelista apresenta Jesus como um Messias que diz e faz, promete e cumpre, com
total coerência entre o discurso e a prática.
Ainda a nível de contexto, é importante recordar as características da
seção narrativa da qual é tirado o texto de hoje (Mt 8,2 –10,4), para
compreendê-lo melhor. Trata-se de uma seção marcada por uma série de curas,
começando com um leproso e terminando com um mudo. Nesse intervalo, foram
realizadas diversas curas, que são gestos de libertação e humanização, nas
quais Jesus, movido por seu amor misericordioso, restitui vida e dignidade às
pessoas que se encontram oprimidas, tanto por condicionamentos físicos quanto
pelos preconceitos e segregações impostos pela sociedade e a religião. É nesse
contexto que se insere o evangelho deste domingo, que corresponde ao chamado de
Mateus e suas consequências imediatas: o banquete festivo com cobradores de
impostos e pecadores, a crítica dos fariseus e a declaração de Jesus sobre a
misericórdia como essência da sua missão. É importante ter em mente tudo isso,
pois o chamado de Mateus se insere num contexto de demonstração da grande
misericórdia de Deus pela humanidade, e assim acontece com toda pessoa chamada
a colaborar na edificação do Reino de Deus, que o Primeiro Evangelho prefere
chamar de Reino dos Céus, por opção teológica.
Feita a devida contextualização, olhemos para o texto, buscando a sua compreensão.
E começamos pelo primeiro versículo, que é muito significativo e até
impactante: «Partindo dali, Jesus viu um homem chamando Mateus, sentado na
coletoria de impostos, e disse-lhe: ‘Segue-me!’. Ele se levantou e seguiu a
Jesus» (v. 9). Como se vê, Jesus se encontra em ação, andando, cumprindo
sua missão de enviado de Deus como profeta itinerante. Isso lhe permite contemplar
a realidade, ver as situações e, consequentemente, intervir para transformar. Enquanto
passa, Jesus vê um homem chamado Mateus. É importante fazer algumas considerações
a propósito desse primeiro dado. Ora, durante muitos séculos, esse episódio foi
considerado um relato autobiográfico, por causa desse primeiro versículo, pois
atribuía-se a autoria do Primeiro Evangelho ao apóstolo Mateus. Atualmente,
considera-se essa teoria superada. Embora este Evangelho seja fruto de
tradições ligadas ao apóstolo Mateus, é quase certo que ele não foi o escritor
direto, tendo em vista a época em que a obra foi escrita: anos 80 do primeiro
século, quando já não havia mais nenhum apóstolo vivo. Inclusive, nos outros
evangelhos que narram esse mesmo episódio, o personagem aqui chamado de Mateus
recebe o nome de Levi (Mc 2,13-17; Lc 5,27-32). O nome Mateus significa “Dom de
Deus” e, aqui, prefigura todas as pessoas acolhidas e chamadas para integrar e
edificar o seu Reino.
O chamado de Mateus segue o modelo de vocação dos quatro primeiros discípulos
chamados por Jesus, as duas duplas de irmãos pescadores: Simão – chamado Pedro –
e André, Tiago e João (Mt 4,18-22; Mc 1,16-21; Lc 5,1-11). Isso evidencia a
importância do personagem, pois a tradição sinótica narra o chamado vocacional
de apenas cinco dos doze apóstolos: os quatro pescadores e ele, Mateus. Jesus
passa, vê e chama. E a pessoa chamada deixa o que estava fazendo para segui-lo.
Jesus não vai no espaço religioso, como a sinagoga, por exemplo, recrutar as
pessoas mais fiéis para o seu seguimento. Ele chama cada pessoa no seu
cotidiano, na sua situação existencial própria, sem exigir um atestado de boa
reputação ou conduta. Como eram pescadores os quatro primeiros, dois deles estavam
lançando as redes ao mar, enquanto os outros dois estavam consertando as redes,
quando Jesus passou e os chamou. No caso de Mateus, como era cobrador de impostos,
estava sentado na coletoria quando Jesus passou, viu e lhe chamou, com o
clássico imperativo vocacional: “segue-me” (em grego: ἀκολούθει μοι – akolúthei moi).
Esse verbo não significa um mero caminhar atrás, mas um seguimento convicto e
pleno. A primeira grande novidade do texto é, portanto, a profissão de Mateus:
ele era um cobrador de impostos, um publicano.
Apesar do bem-estar econômico que a profissão propiciava, os cobradores de
impostos (em grego: τελῶναι – telonai) eram
pessoas totalmente rejeitadas em Israel. Eles eram colaboradores
diretos do poder opressor, o império romano. Além das altas taxas exigidas pelo
império, eles ainda cobravam grandes proporções a mais, enriquecendo
ilicitamente às custas do povo mais pobre, principalmente; além do salário,
ainda retinham para si o que cobravam em excesso. Por isso, eram odiados pelo
povo e totalmente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder
dominante não permitia que observassem a Lei. Não eram sequer
classificados entre os pecadores comuns. Eram tratados como ladrões públicos,
tão rejeitados quanto as prostitutas, na época. Por isso, tanto é surpreendente
a iniciativa de Jesus ao chamá-lo quanto a decisão de Mateus: «Ele se levantou e seguiu a Jesus». Aqui, percebemos a grande transformação
provocada pelo olhar e o chamado inclusivo de Jesus. Mateus estava sentado,
numa posição que indica comodismo e bem-estar. De repente, se põe em pé e passa
a seguir Jesus. Mais do que um movimento corporal, o evangelista está mostrando
uma mudança de estilo de vida. De uma vida cômoda e fraudulenta, ele passa a
uma vida itinerante, desafiadora, pois passou a ser seguidor de alguém que não tinha
onde repousar a cabeça (Mt 8,20). Ele deixou o bem-estar econômico para viver
da providência, em sinal de plena confiança em Jesus. Ele deixou tudo,
abandonou a profissão para viver uma nova vida, tornando-se um autêntico
discípulo de Jesus. Certamente, ele se sentiu amado pelo olhar e pelas palavras
de Jesus. Ele recebeu o chamado como fonte de sentido para a vida e
ressignificou a sua existência daquele momento em diante.
Para marcar o início da sua nova vida, Mateus ofereceu uma festa, um grande
banquete. Esse banquete, por sinal, antecipa e sintetiza o modelo de Igreja
desejado pelo evangelista Mateus para sua comunidade e as comunidades de todos
os tempos, que é o modelo querido pelo próprio Jesus. Participaram da festa
Jesus com seus discípulos e os antigos colegas de profissão de Mateus, com
outras categorias de pecadores, conforme a classificação imposta pela religião
da época, como informa o texto: «Enquanto Jesus estava à mesa, em casa de
Mateus, vieram muitos cobradores de impostos e pecadores e sentaram-se à mesa
com Jesus e seus discípulos» (v. 10). O chamado de Mateus abriu as portas para
outras pessoas iguais a ele também se encontrarem com Jesus e, assim, experimentarem
a misericórdia de Deus, sentindo-se acolhidas e amadas por ele. Com isso,
quebram-se barreiras, superam-se distâncias. No mundo semita, a refeição não significa
apenas uma simples degustação e consumo de alimentos; significa partilhar a própria
vida. Sentar-se à mesa com alguém, conforme a mentalidade bíblica, é sentir-se
próximo, é um gesto de intimidade. Na partilha dos alimentos e bebidas, todos
tocavam na mesma comida e nos mesmos utensílios. Ao sentar-se com os cobradores
de impostos e pecadores, portanto, Jesus se tornava impuro perante a Lei. Inclusive,
esse era um dos principais motivos pelos quais ele era tão criticado pelos
fariseus, como mostra o versículo seguinte. O importante para Jesus, no
entanto, era acolher, transmitir amor, humanizar as pessoas. Por isso, ele não
se importava com os rótulos e críticas que recebia.
Já fazia tempo que o comportamento de Jesus vinha sendo observado e
denunciado pelos fariseus e outros grupos defensores da moral e dos bons
costumes da época. Mas parece que chamar um cobrador de impostos para o seu
seguimento e comer na casa dele com outros cobradores de impostos e pecadores
foi visto como ápice de seu mau comportamento, para as pessoas muito devotas da
época. Eis o que diz o evangelista: «Alguns fariseus viram isso e
perguntaram aos discípulos: ‘Por que vosso mestre come com os cobradores de
impostos e pecadores?’» (v. 11). Como se vê, Jesus é questionado e denunciado
por causa de suas companhias, por se juntar com quem a religião e a sociedade
tinham excluído. Enfim, por suas escolhas, Jesus estragava sua própria
reputação perante as pessoas consideradas de bem na sua época, como os
fariseus. Inclusive, os fariseus poderiam questioná-lo diretamente, mas não o
fazem por covardia, e questionam os discípulos. No entanto, «Jesus ouviu
pergunta e respondeu: ‘Aqueles que têm saúde não precisam de médico, mas sim os
doentes» (v. 12). A pergunta foi feita aos discípulos, mas Jesus se
antecipa para respondê-la, afinal, o tema do questionamento era sua própria
pessoa com seu comportamento. E ele responde com um provérbio popular de grande
circulação na época, que põe o médico a serviço dos doentes, como parábola do
seu agir misericordioso em favor dos mais necessitados de acolhida, compreensão,
perdão e amor. Nisso, ele se apresenta como o médico de um mundo doente, ferido,
carente de humanização. E a doença mais grave identificada por ele foi a
hipocrisia religiosa.
Na verdade, a resposta de Jesus à crítica dos fariseus é praticamente uma
síntese da sua mensagem e da sua missão. Começa com um provérbio com valor de
parábola (v. 12), passa por uma citação do profeta Oseias e termina com um
esclarecimento do que ele veio fazer no mundo: «Aprendei, pois, o que
significa: ‘Quero misericórdia e não sacrifício’. De fato, eu não vim para
chamar os justos, mas os pecadores”» (v. 13). A citação de Oséias é exclusiva do Evangelho
de Mateus. Quando Marcos e Lucas narram a vocação de Levi, personagem correspondente
a Mateus no Primeiro Evangelho, eles não citam o texto profético. Isso revela
uma familiaridade maior do primeiro evangelista com o Antigo Testamento. O comportamento
de Jesus revela o rosto misericordioso do Pai, e Oséias foi o profeta que mais
antecipou essa revelação, com sua pregação e sua própria experiência
matrimonial. Com essa citação – ‘Quero misericórdia e não sacrifício’ (Os
6,6) –, Jesus revela quem é Deus e denuncia a hipocrisia dos fariseus: a
religião deles, baseada no cumprimento dos preceitos e carente de misericórdia,
não estava de acordo com a vontade de Deus. Acima de tudo, Deus quer amor,
compaixão e misericórdia, ao invés de ritos, preceitos e sacrifícios. Com isso,
ele indica que a misericórdia deve se sobrepor a qualquer rito ou preceito na
comunidade cristã. Na conclusão, Jesus dá a razão da sua vinda ao mundo, o que
justifica o seu comportamento: «eu não vim ao mundo para chamar os justos,
mas os pecadores» (v. 13b). Ora, se sua missão é salvar, é justo que ele
busque quem era considerado perdido, e foi isso que ele fez em sua vida
terrena. E a Igreja, como continuadora da sua missão, deve também fazer o
mesmo. Por isso, é necessário agir com misericórdia, acima de tudo. Só se
converte quem antes se sente amado, acolhido, compreendido. Foi assim que
Mateus se sentiu quando Jesus olhou para ele.
É muito relevante que, neste domingo de retomada do tempo comum, o
evangelho seja mesmo esse. É um texto que nos adverte sobre o que é essencial
na vida de uma comunidade cristã, recordando-nos que nenhum tipo de exclusão e preconceito
condiz com a mensagem de Jesus. O chamado de Mateus é um alento de esperança. Significa
mais uma demonstração de que o Reino dos Céus inaugurado por Jesus é aberto a
todos e todas. Ninguém deve se sentir excluído e muito menos autorizado a
excluir alguém. E, ainda inebriados pela beleza e sofisticação de tantas celebrações
e cortejos em honra ao Corpo e Sangue de Jesus Cristo, a refeição festiva
celebrada na casa de Mateus vem nos recordar o verdadeiro tipo de banquete em que
o Senhor realmente quer se fazer presente, seja como alimento, seja como
partícipe.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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