sábado, junho 10, 2023

REFLEXÃO PARA O 10º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,9-13 (ANO A)


Com a retomada do tempo comum, a liturgia dominical retoma também a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus, como é característico do ciclo litúrgico A, após a longa interrupção para a vivência do ciclo pascal com as solenidades que lhe seguem. Como este já é o décimo domingo, a leitura do respectivo Evangelho já se encontra bastante avançada. O texto proposto para hoje – Mt 9,9-13 – faz parte da seção narrativa intermediária entre o primeiro e o segundo discurso de Jesus nesse Evangelho, a saber, o discurso da montanha (Mt 5–7) e o discurso missionário (Mt 10,5–11,1). A alternância entre narrativa e discurso constitui uma das principais características literárias de Mateus, além de revelar importantes elementos da sua teologia. Com os discursos, ele mostra Jesus ensinando, apresentando sua mensagem libertadora, assumindo sua identidade e autoridade de mestre; com as narrativas, ele mostra Jesus em ação, manifestando o Reino dos Céus mediante o seu agir misericordioso, se relacionando com as pessoas, libertando-as e humanizando-as. Desse modo, o evangelista apresenta Jesus como um Messias que diz e faz, promete e cumpre, com total coerência entre o discurso e a prática.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar as características da seção narrativa da qual é tirado o texto de hoje (Mt 8,2 –10,4), para compreendê-lo melhor. Trata-se de uma seção marcada por uma série de curas, começando com um leproso e terminando com um mudo. Nesse intervalo, foram realizadas diversas curas, que são gestos de libertação e humanização, nas quais Jesus, movido por seu amor misericordioso, restitui vida e dignidade às pessoas que se encontram oprimidas, tanto por condicionamentos físicos quanto pelos preconceitos e segregações impostos pela sociedade e a religião. É nesse contexto que se insere o evangelho deste domingo, que corresponde ao chamado de Mateus e suas consequências imediatas: o banquete festivo com cobradores de impostos e pecadores, a crítica dos fariseus e a declaração de Jesus sobre a misericórdia como essência da sua missão. É importante ter em mente tudo isso, pois o chamado de Mateus se insere num contexto de demonstração da grande misericórdia de Deus pela humanidade, e assim acontece com toda pessoa chamada a colaborar na edificação do Reino de Deus, que o Primeiro Evangelho prefere chamar de Reino dos Céus, por opção teológica.

Feita a devida contextualização, olhemos para o texto, buscando a sua compreensão. E começamos pelo primeiro versículo, que é muito significativo e até impactante: «Partindo dali, Jesus viu um homem chamando Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: ‘Segue-me!’. Ele se levantou e seguiu a Jesus» (v. 9). Como se vê, Jesus se encontra em ação, andando, cumprindo sua missão de enviado de Deus como profeta itinerante. Isso lhe permite contemplar a realidade, ver as situações e, consequentemente, intervir para transformar. Enquanto passa, Jesus vê um homem chamado Mateus. É importante fazer algumas considerações a propósito desse primeiro dado. Ora, durante muitos séculos, esse episódio foi considerado um relato autobiográfico, por causa desse primeiro versículo, pois atribuía-se a autoria do Primeiro Evangelho ao apóstolo Mateus. Atualmente, considera-se essa teoria superada. Embora este Evangelho seja fruto de tradições ligadas ao apóstolo Mateus, é quase certo que ele não foi o escritor direto, tendo em vista a época em que a obra foi escrita: anos 80 do primeiro século, quando já não havia mais nenhum apóstolo vivo. Inclusive, nos outros evangelhos que narram esse mesmo episódio, o personagem aqui chamado de Mateus recebe o nome de Levi (Mc 2,13-17; Lc 5,27-32). O nome Mateus significa “Dom de Deus” e, aqui, prefigura todas as pessoas acolhidas e chamadas para integrar e edificar o seu Reino.

O chamado de Mateus segue o modelo de vocação dos quatro primeiros discípulos chamados por Jesus, as duas duplas de irmãos pescadores: Simão – chamado Pedro – e André, Tiago e João (Mt 4,18-22; Mc 1,16-21; Lc 5,1-11). Isso evidencia a importância do personagem, pois a tradição sinótica narra o chamado vocacional de apenas cinco dos doze apóstolos: os quatro pescadores e ele, Mateus. Jesus passa, vê e chama. E a pessoa chamada deixa o que estava fazendo para segui-lo. Jesus não vai no espaço religioso, como a sinagoga, por exemplo, recrutar as pessoas mais fiéis para o seu seguimento. Ele chama cada pessoa no seu cotidiano, na sua situação existencial própria, sem exigir um atestado de boa reputação ou conduta. Como eram pescadores os quatro primeiros, dois deles estavam lançando as redes ao mar, enquanto os outros dois estavam consertando as redes, quando Jesus passou e os chamou. No caso de Mateus, como era cobrador de impostos, estava sentado na coletoria quando Jesus passou, viu e lhe chamou, com o clássico imperativo vocacional: “segue-me” (em grego: ἀκολούθει μοι – akolúthei moi). Esse verbo não significa um mero caminhar atrás, mas um seguimento convicto e pleno. A primeira grande novidade do texto é, portanto, a profissão de Mateus: ele era um cobrador de impostos, um publicano.

Apesar do bem-estar econômico que a profissão propiciava, os cobradores de impostos (em grego: τελῶναι – telonai) eram pessoas totalmente rejeitadas em Israel. Eles eram colaboradores diretos do poder opressor, o império romano. Além das altas taxas exigidas pelo império, eles ainda cobravam grandes proporções a mais, enriquecendo ilicitamente às custas do povo mais pobre, principalmente; além do salário, ainda retinham para si o que cobravam em excesso. Por isso, eram odiados pelo povo e totalmente excluídos da religião, pois a condição de servidores do poder dominante não permitia que observassem a Lei. Não eram sequer classificados entre os pecadores comuns. Eram tratados como ladrões públicos, tão rejeitados quanto as prostitutas, na época. Por isso, tanto é surpreendente a iniciativa de Jesus ao chamá-lo quanto a decisão de Mateus: «Ele se levantou e seguiu a Jesus». Aqui, percebemos a grande transformação provocada pelo olhar e o chamado inclusivo de Jesus. Mateus estava sentado, numa posição que indica comodismo e bem-estar. De repente, se põe em pé e passa a seguir Jesus. Mais do que um movimento corporal, o evangelista está mostrando uma mudança de estilo de vida. De uma vida cômoda e fraudulenta, ele passa a uma vida itinerante, desafiadora, pois passou a ser seguidor de alguém que não tinha onde repousar a cabeça (Mt 8,20). Ele deixou o bem-estar econômico para viver da providência, em sinal de plena confiança em Jesus. Ele deixou tudo, abandonou a profissão para viver uma nova vida, tornando-se um autêntico discípulo de Jesus. Certamente, ele se sentiu amado pelo olhar e pelas palavras de Jesus. Ele recebeu o chamado como fonte de sentido para a vida e ressignificou a sua existência daquele momento em diante.

Para marcar o início da sua nova vida, Mateus ofereceu uma festa, um grande banquete. Esse banquete, por sinal, antecipa e sintetiza o modelo de Igreja desejado pelo evangelista Mateus para sua comunidade e as comunidades de todos os tempos, que é o modelo querido pelo próprio Jesus. Participaram da festa Jesus com seus discípulos e os antigos colegas de profissão de Mateus, com outras categorias de pecadores, conforme a classificação imposta pela religião da época, como informa o texto: «Enquanto Jesus estava à mesa, em casa de Mateus, vieram muitos cobradores de impostos e pecadores e sentaram-se à mesa com Jesus e seus discípulos» (v. 10). O chamado de Mateus abriu as portas para outras pessoas iguais a ele também se encontrarem com Jesus e, assim, experimentarem a misericórdia de Deus, sentindo-se acolhidas e amadas por ele. Com isso, quebram-se barreiras, superam-se distâncias. No mundo semita, a refeição não significa apenas uma simples degustação e consumo de alimentos; significa partilhar a própria vida. Sentar-se à mesa com alguém, conforme a mentalidade bíblica, é sentir-se próximo, é um gesto de intimidade. Na partilha dos alimentos e bebidas, todos tocavam na mesma comida e nos mesmos utensílios. Ao sentar-se com os cobradores de impostos e pecadores, portanto, Jesus se tornava impuro perante a Lei. Inclusive, esse era um dos principais motivos pelos quais ele era tão criticado pelos fariseus, como mostra o versículo seguinte. O importante para Jesus, no entanto, era acolher, transmitir amor, humanizar as pessoas. Por isso, ele não se importava com os rótulos e críticas que recebia.

Já fazia tempo que o comportamento de Jesus vinha sendo observado e denunciado pelos fariseus e outros grupos defensores da moral e dos bons costumes da época. Mas parece que chamar um cobrador de impostos para o seu seguimento e comer na casa dele com outros cobradores de impostos e pecadores foi visto como ápice de seu mau comportamento, para as pessoas muito devotas da época. Eis o que diz o evangelista: «Alguns fariseus viram isso e perguntaram aos discípulos: ‘Por que vosso mestre come com os cobradores de impostos e pecadores?’» (v. 11). Como se vê, Jesus é questionado e denunciado por causa de suas companhias, por se juntar com quem a religião e a sociedade tinham excluído. Enfim, por suas escolhas, Jesus estragava sua própria reputação perante as pessoas consideradas de bem na sua época, como os fariseus. Inclusive, os fariseus poderiam questioná-lo diretamente, mas não o fazem por covardia, e questionam os discípulos. No entanto, «Jesus ouviu pergunta e respondeu: ‘Aqueles que têm saúde não precisam de médico, mas sim os doentes» (v. 12). A pergunta foi feita aos discípulos, mas Jesus se antecipa para respondê-la, afinal, o tema do questionamento era sua própria pessoa com seu comportamento. E ele responde com um provérbio popular de grande circulação na época, que põe o médico a serviço dos doentes, como parábola do seu agir misericordioso em favor dos mais necessitados de acolhida, compreensão, perdão e amor. Nisso, ele se apresenta como o médico de um mundo doente, ferido, carente de humanização. E a doença mais grave identificada por ele foi a hipocrisia religiosa.

Na verdade, a resposta de Jesus à crítica dos fariseus é praticamente uma síntese da sua mensagem e da sua missão. Começa com um provérbio com valor de parábola (v. 12), passa por uma citação do profeta Oseias e termina com um esclarecimento do que ele veio fazer no mundo: «Aprendei, pois, o que significa: ‘Quero misericórdia e não sacrifício’. De fato, eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores”» (v. 13).  A citação de Oséias é exclusiva do Evangelho de Mateus. Quando Marcos e Lucas narram a vocação de Levi, personagem correspondente a Mateus no Primeiro Evangelho, eles não citam o texto profético. Isso revela uma familiaridade maior do primeiro evangelista com o Antigo Testamento. O comportamento de Jesus revela o rosto misericordioso do Pai, e Oséias foi o profeta que mais antecipou essa revelação, com sua pregação e sua própria experiência matrimonial. Com essa citação – ‘Quero misericórdia e não sacrifício’ (Os 6,6) –, Jesus revela quem é Deus e denuncia a hipocrisia dos fariseus: a religião deles, baseada no cumprimento dos preceitos e carente de misericórdia, não estava de acordo com a vontade de Deus. Acima de tudo, Deus quer amor, compaixão e misericórdia, ao invés de ritos, preceitos e sacrifícios. Com isso, ele indica que a misericórdia deve se sobrepor a qualquer rito ou preceito na comunidade cristã. Na conclusão, Jesus dá a razão da sua vinda ao mundo, o que justifica o seu comportamento: «eu não vim ao mundo para chamar os justos, mas os pecadores» (v. 13b). Ora, se sua missão é salvar, é justo que ele busque quem era considerado perdido, e foi isso que ele fez em sua vida terrena. E a Igreja, como continuadora da sua missão, deve também fazer o mesmo. Por isso, é necessário agir com misericórdia, acima de tudo. Só se converte quem antes se sente amado, acolhido, compreendido. Foi assim que Mateus se sentiu quando Jesus olhou para ele.

É muito relevante que, neste domingo de retomada do tempo comum, o evangelho seja mesmo esse. É um texto que nos adverte sobre o que é essencial na vida de uma comunidade cristã, recordando-nos que nenhum tipo de exclusão e preconceito condiz com a mensagem de Jesus. O chamado de Mateus é um alento de esperança. Significa mais uma demonstração de que o Reino dos Céus inaugurado por Jesus é aberto a todos e todas. Ninguém deve se sentir excluído e muito menos autorizado a excluir alguém. E, ainda inebriados pela beleza e sofisticação de tantas celebrações e cortejos em honra ao Corpo e Sangue de Jesus Cristo, a refeição festiva celebrada na casa de Mateus vem nos recordar o verdadeiro tipo de banquete em que o Senhor realmente quer se fazer presente, seja como alimento, seja como partícipe.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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