sexta-feira, junho 16, 2023

REFLEXÃO PARA 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,36–10,8 (ANO A)





Neste décimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia continua a leitura sequencial do Evangelho de Mateus, retomada no domingo passado, após o ciclo pascal e o ciclo de solenidades seguintes. O texto proposto para hoje – Mt 9,36–10,8 – compreende o envio dos doze apóstolos em missão, por Jesus, para sanar a situação de abandono do povo de Israel, devido à negligência e corrupção de seus líderes, os dirigentes políticos e religiosos que fugiram das responsabilidades de pastores. Esse envio é fruto do olhar compassivo de Jesus, que não fica indiferente diante das situações de abandono e opressão pelas quais passam os seres humanos. Jesus sempre toma iniciativas que visam a transformação de todas as situações de ameaça à vida. E essa postura deve ser a mesma da comunidade cristã em todos os tempos.

A nível de contexto, podemos observar que se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma das principais características literárias do Evangelho segundo Mateus, conforme já recordamos no domingo passado, ao contextualizar o texto daquele dia. O texto de hoje compreende, pois, a conclusão da seção narrativa que sucedeu ao discurso da montanha (Mt 8,1–9,38) e a introdução de um novo discurso, o chamado “discurso missionário” ou “apostólico” (Mt 10), composto pelo envio missionário e uma série de instruções e advertências sobre a missão. O discurso missionário é o segundo dos cinco discursos atribuídos a Jesus no Evangelho Mateus, o evangelista que mais se preocupou em apresentar Jesus como o mestre que ensina com autoridade. Para compreender melhor o texto, é importante recordar também o que afirma o versículo que o antecede, que sintetiza a missão de Jesus até então: «Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade» (9,35). O que Jesus irá fazer nos versículos seguintes, correspondentes ao evangelho de hoje, é habilitar os seus discípulos como cooperadores da sua missão, para fazer o mesmo que ele fazia. E o que ele fazia era proclamar o Evangelho do Reino, cujo efeito primordial é a humanização do mundo.

Ao longo dos Evangelhos, podemos perceber que são sempre as situações concretas que motivam a ação e a pregação de Jesus. Ele nunca parte de meras abstrações, mas da realidade. O texto de hoje é uma boa demonstração disso. Olhemos, então, para o início, compreendendo os três primeiros versículos: «Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: (v. 36) ‘A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. (v. 37) Pedi, pois, ao dono da messe que que envie trabalhadores para a sua colheita!» (v. 38). A itinerância da atividade de Jesus (Mt 9,35) lhe permitia conhecer com profundidade as situações em que o povo se encontrava. Seu olhar nunca era superficial, mas sempre profundo, e amparado na realidade. Jesus contempla um povo abandonado, oprimido e maltratado; é isso o que significa a expressão “as multidões cansadas e abatidas”; não se trata de um cansaço físico e desânimo, apenas, mas de uma situação deplorável de total abandono e miséria. A comparação com ovelhas que não tem pastor é a prova disso. A ovelha era considerada o animal símbolo de vulnerabilidade e dependência; não possuía nenhum mecanismo de defesa próprio; dependia essencialmente dos cuidados dos pastores. Logo, ovelha sem pastor é imagem de completo abandono. Com essa imagem, portanto, Jesus descreve a situação do povo e, ao mesmo tempo, faz uma dura denúncia às classes dirigentes da época, tanto religiosas quanto políticas, responsáveis pelo abandono do povo.

Ao ver as multidões abandonadas, “Jesus compadeceu-se”, ou seja, sentiu compaixão, misericórdia. Não se trata de um mero sentimento, mas de algo muito mais profundo. O evangelista emprega aqui o verbo que expressa a máxima misericórdia de Deus (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknízomai), que significa literalmente “contorcer-se nas entranhas”. Para a mentalidade hebraica, as entranhas ou vísceras são o núcleo mais íntimo e profundo do ser humano. É uma realidade mais profunda até do que o coração, e é de lá que brota a misericórdia de Deus. E, mais do que sentimento, a misericórdia de Deus é ação libertadora. Portanto, é núcleo mais íntimo de Deus que é desencadeada a missão, inicialmente de Jesus, e compartilhada por ele com toda a comunidade cristã, tendo em vista a libertação do povo abandonado e explorado pelos sistemas dominantes nos âmbitos da economia, da política e da religião. Compadecido com a situação das multidões, Jesus não se desespera e nem se conforma; e é muito importante essa sua postura. Antes de tudo, ele reforça sua confiança no Pai, o dono da messe, outra imagem aplicada às multidões, a exemplo de ovelhas. A messe é a lavoura que está pronta para ser colhida, não pode mais esperar, pois pode perder-se, caso a colheita não aconteça logo. Aplicada às multidões abandonadas, significa que aquela situação exigia uma atitude urgente. Sem uma intervenção libertadora urgente, o povo perece. É importante que os discípulos e discípulas de todos os tempos tenham a sensibilidade de perceber as situações que necessitam de intervenção urgente, como a fome, as doenças, as manipulações ideológicas e tantos outros males. Diante disso, Jesus concilia a confiança no Pai com atitudes concretas: a designação de operários para a colheita, o que faz com o envio dos discípulos, transformados em apóstolos.

A messe é de Deus, quer dizer, é a Deus que o povo pertence, mas para que não se perca é necessária a colaboração humana. Por isso, «Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar todo tipo de doença e enfermidade» (10,1). A iniciativa de chamar os discípulos é uma advertência: o discipulado não é puro voluntarismo e nem hereditário, como era o sacerdócio do templo de Jerusalém; a iniciativa é sempre de Deus. Jesus está pondo em prática os efeitos da oração exigida antes: que os discípulos pedissem ao dono da messe que enviasse operários para a colheita. Como o enviado de Deus por excelência e intérprete autêntico da sua vontade, Jesus mesmo envia, compartilhando com seus discípulos a mesma autoridade recebida de Deus. «Expulsar espíritos maus e curar todo tipo de enfermidade» é uma imagem que significa o compromisso dos discípulos e discípulos de Jesus, em todos os tempos, de lutar contra todo o tipo de mal que ameaça a vida humana em sua integridade. Funciona como síntese da missão libertadora que deve caracterizar a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus. Dessa missão depende a humanização do mundo. Por isso, não deve ser confundida com propaganda religiosa nem proselitismo. É o esforço da comunidade cristã para abolir as forças do mal presentes no mundo. Aqui, pela primeira e única vez, Mateus chama os doze primeiros discípulos de apóstolos (10,2), termo que significa “enviados”. Literalmente, apóstolo é uma pessoa enviada para representar fisicamente aquele que lhe enviou, inclusive em processos judiciais. Mas antes de ser apóstolos eles são discípulos. Também é a primeira e única vez em que ele elenca os nomes dos doze, começando por Simão, chamado Pedro, e terminando com Judas, o qual se desintegrará do grupo após a traição, durante o processo (10,2-4). Não se trata de uma lista hierárquica, bem como a designação de discípulos em apóstolos não é uma promoção, mas um compromisso: é a responsabilidade de todos os cristãos e cristãs de estar com Jesus e, ao mesmo tempo, ser a sua presença no mundo, especialmente restituindo vida e dignidade a quem se encontra em estado de abandono.

Após o elenco dos nomes, o evangelista passa às atribuições dos doze, enquanto enviados, iniciando a sequência de instruções que se estenderá por todo o décimo capítulo, e hoje temos a oportunidade de ler as primeiras: «Jesus enviou estes doze com as seguintes recomendações: ‘Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! (10,5) Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!’» (10,6). As primeiras recomendações dizem respeito à circunscrição da primeira missão: os discípulos devem ir exclusivamente às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ora, a designação de Israel como primeiro destinatário da missão apostólica não significa um privilégio histórico, tampouco uma tentativa de reconstrução do povo da aliança, como algumas interpretações apontam, mas uma necessidade, uma urgência. Mais do que qualquer outro povo, eram os israelitas que estavam abandonados, o que significa que, de todos os dirigentes do mundo, eram os líderes de Israel os mais pervertidos. Por isso, era Israel o povo mais abandonado e, consequentemente, o mais necessitado de libertação e humanização. Seus líderes tinham fugido das responsabilidades de cuidar do povo, o que já era motivo de denúncias há muitos séculos, desde os profetas, como o exemplo de Ezequiel, que denunciou os pastores que cuidaram de si mesmos, ao invés de cuidar do rebanho (Ez 34). Ora, de todas as formas de dominação, a pior é a dominação religiosa, e Jesus tinha consciência disso. Por isso, sua primeira iniciativa foi promover a libertação de quem estava sendo explorado em nome de Deus.

Na sequência, o evangelista descreve o conteúdo e o agir dos apóstolos, deixando claro que não se trata de uma teoria ou doutrina, mas de um anúncio acompanhado de consequências práticas: «Em vosso caminho, anunciai: ‘O Reino dos Céus está próximo (10,7) Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios» (10,8a). A mensagem que os discípulos devem anunciar é a mesma de Jesus, desde o início do seu ministério (Mt 4,17): a chegada do Reino dos Céus; o “estar próximo”, aqui, não significa a temporalidade, mas a materialidade: na pessoa de Jesus, o Reino se instaura e, enquanto apóstolos, os discípulos são uma extensão da sua pessoa, logo, neles também o Reino começa a se realizar. Esse Reino é dos Céus porque sua origem é o amor misericordioso de Deus, mas começa já aqui, onde há pessoas abandonadas e exploradas, para quem a libertação não pode mais ser adiada. Como a missão compreende palavras e ações, também os gestos que os apóstolos devem cumprir são os mesmos que Jesus já estava cumprindo (Mt 4,23; 8,16; 9,35), e que já tinha sido antecipado no início deste segundo discurso (Mt 10,1): curas, ressurreição, purificação e expulsão de demônios, ações que evidenciam um mundo sem males, um mundo onde a vida prevalece, ou seja, um mundo humanizado.

Os discípulos-apóstolos ou missionários são responsáveis pela transformação do mundo, sanando as multidões abandonadas e exploradas, restituindo vida e dignidade. Isso só é possível colocando em prática o programa de Jesus. Por isso, o evangelista não se cansa de dizer que Jesus envia os seus discípulos para anunciar e realizar o mesmo que ele fez e pregou, sem distorções, mas também sem esquecer dos sinais dos tempos. A última recomendação do evangelho de hoje diz respeito à gratuidade do Reino: «De graça recebestes, de graça deveis dar!» (8b). Os discípulos e discípulas de Jesus não são mercadores do sagrado, como tinham se transformado as antigas lideranças de Jerusalém, e continua acontecendo hoje. Tudo o que a comunidade cristã tem a oferecer ao mundo é o que recebeu gratuitamente de Jesus. E tudo o que Jesus recebeu do Pai, como dom, compartilhou com os seus seguidores e seguidoras que, por sua vez, também devem compartilhar gratuitamente com o mundo para sanar as situações de degradação e negação da vida, muitas vezes provocadas por ações e omissões de falsos pastores. É necessário, portanto, olhar o mundo com o mesmo olhar de Jesus, sentir compaixão e buscar a transformação, na gratuidade do amor misericordioso de Deus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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