A liturgia deste
dia contempla a Solenidade da natividade de São João Batista. O texto
evangélico proposto é Lc 1,57-66.80, relato que contempla o nascimento, a
circuncisão e a imposição do nome do santo precursor de Jesus Cristo. Depois de
Jesus, João Batista é o personagem com mais dados biográficos oferecidos pelo
Novo Testamento, o que evidencia a importância e a grandeza da sua missão. Quem
mais contribuiu para isso foi o evangelista Lucas, como percebemos no Evangelho
de hoje. Até mesmo quando os apóstolos consolidaram a pregação sobre Jesus,
fizeram questão de recordar o Batista, como recorda o próprio Lucas, no segundo
volume de sua obra: «Jesus de Nazaré, começando pela Galileia, depois
do batismo proclamado por João» (At. 10,37). Trata-se, portanto, de
um personagem relevante da história da salvação, sendo necessário passar por
ele para compreender e anunciar a missão do próprio Jesus.
De fato, a figura
de João é central na história da salvação, sendo ele apresentado como o
elemento de transição da primeira para a segunda aliança pelo próprio Jesus, ao
declarar: «A lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciado o
Evangelho do Reino de Deus» (Lc 16,16). Em outra ocasião, também
Jesus o proclamou como o maior entre os nascidos de mulher (Mt 11,11; Lc 7,28).
Portanto, se trata de um personagem que não poderia passar despercebido. E, liturgicamente,
a Igreja compreendeu bem isso, reservando-lhe duas datas no calendário: a sua
natividade, celebrada hoje (24 de junho), e o seu martírio, celebrado em 29 de
agosto. Chama a atenção que o primeiro evento narrado por Lucas em seu
evangelho é o anúncio do nascimento de João (1,5-23), apresentando-o desde o
início com as características de profeta e como um prodígio de Deus para a
humanidade, recordando que seus pais, Zacarias e Isabel, eram anciãos e
estéreis, já inaptos à procriação. Nesse casal, descrito como justo (Lc 1,6) o
evangelista viu a situação de Israel: mesmo observando minuciosamente os
preceitos da lei, faltava alegria e sinal de vida neles!
Aquela
esterilidade significava a decadência da Lei e da religião por eles observada,
o judaísmo do segundo templo. Por mais que se esforçassem, os condicionamentos
sociais, culturais e religiosos não permitiam que vida nova brotasse daquela
situação. Somente uma intervenção de Deus poderia mudar o rumo daquela
história. Fiel às suas promessas, Deus intervém, inaugurando uma nova fase na
história da salvação, fazendo surgir um «profeta do altíssimo» (cf.
1,76). Assim como os profetas do Antigo Testamento previam um “resto
de Israel” fiel e justo, o evangelista Lucas identificou esse resto nos
personagens que ilustram o seu chamado “evangelho da infância” (capítulos 1 e 2
de Lucas): Zacarias e Isabel, Maria e José, Simeão e Ana. Neles, as promessas
de Deus, desde os patriarcas, chegam ao cumprimento. Por mais que Israel
estivesse esgotado e estéril, era dele que a salvação brotaria. Lucas compôs a
sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos) segundo a dinâmica
promessa-cumprimento. O nascimento de João é, portanto, o início do
cumprimento.
Olhemos, pois,
para o texto: «Completou-se o tempo da gravidez de Isabel, e ela deu à
luz um filho» (v. 57). Com a clássica e conhecida expressão bíblica
“completou-se o tempo”, o evangelista associa o nascimento de João às promessas
de Deus. Não se trata apenas de uma gravidez concluída e uma criança a mais no
mundo; significa a conclusão de uma etapa na história da salvação e a abertura
de uma nova. Israel passou séculos gerando profetas e agora chegou o profeta
que, finalmente, contempla o Messias. Por isso, a gravidez de Isabel significa
muito mais do que a gestação de uma criança; é a geração de um tempo novo, de
uma nova história. Daí que o nascimento de João comporta uma dimensão
comunitária, pública; por isso, «os vizinhos e parentes ouviram dizer
como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela» (v.
58). Aqui, o evangelista introduz dois temas centrais da sua grande obra
(Evangelho e Atos): a misericórdia e a alegria, duas dimensões e características
indispensáveis na comunidade cristã. Os parentes e amigos representam a
abertura da salvação que, aos poucos, Lucas vai mostrando. Isso mostra que o
nascimento de João é recebido como uma ação favorável de Deus a um povo, a uma
comunidade, e não apenas a um clã.
Sendo Isabel e
Zacarias, «justos e irrepreensíveis observantes da Lei» (1,6), ou
seja, pessoas de comportamento reto, que observavam a Lei e cumpriam boas obras
em favor do próximo, atentas aos mandamentos da religião que praticavam.
Pessoas justas, segundo a mentalidade bíblica, eram aquelas que ajudavam o
próximo, que refletiam com a vida a misericórdia de Deus, e a misericórdia é,
acima de tudo, um agir favorável em prol dos mais necessitados; ser observantes
da Lei significa a fidelidade a Deus e aos seus mandamentos. Por isso, «no
oitavo dia, foram circuncidar o menino, e queriam dar-lhe o nome de seu pai,
Zacarias» (v. 59). Querendo simplificar a história, o
evangelista faz uma pequena confusão: o nome da criança era dado logo no
nascimento, e não no momento da circuncisão, ao oitavo dia. Também não era
costume dar o nome do pai, e sim o nome do avô da criança. Mais uma vez, o
evangelista ressalta a dimensão comunitária do nascimento de João: a comunidade
– parentes e amigos – participa da sua vida, assim como o seu ministério
profético estará a serviço de todo o povo.
Dar o nome à
criança era atributo exclusivo do pai, de acordo com a tradição bíblica e com
as tradições de outros povos da antiguidade. É importante perceber neste o
papel inovador da mãe, ressaltado por Lucas: «A mãe, porém, disse:
‘Não! Ele vai chamar-se João!» (v. 60). Desde o início do seu
evangelho, Lucas pensa a mulher como sujeito com voz e poder de decisão,
rompendo com as tradições e condicionamentos da época. Esse “não!” de Isabel representa
uma verdadeira revolução na tradição bíblica. É uma inovação sem precedentes na
história. Até então, não se tinha visto uma decisão que representasse um
empoderamento tão forte da mulher. E isso causou perplexidade, obviamente, como
observa o evangelista: «Os outros disseram: ‘Não existe nenhum parente
teu com esse nome!’» (v. 61). Os outros aqui, são os parentes e
vizinhos; apegados à Lei, não aceitam a novidade que começa a se configurar;
querem que as coisas permaneçam como sempre, com a mulher continuando sem
direito de opinar e de tomar decisões. É o Israel necessitado de conversão, a
quem João se dirigirá em seu ministério e, posteriormente, Jesus. Nesse
sentido, Isabel é pioneira na desconstrução da mentalidade patriarcal. A
imposição do nome João já tinha sido indicada pelo anjo no anúncio a Zacarias (Lc
1,13), e isso mostra a sintonia de Isabel aos propósitos de Deus: ela não
necessitou ouvir de um anjo para acolher e cumprir a sua vontade; os próprios
acontecimentos da vida lhe ensinaram a interpretar e cumprir a vontade de Deus.
João é um nome hebraico que significa “Deus é favorável” (significados
correlatos: Deus é clemente; Deus é misericordioso; agraciado por Deus).
Com a
mentalidade ainda fechada e sem aceitar a novidade representada pelo não de Isabel,
os parentes e vizinhos recorrem à autoridade masculina, rejeitando o
protagonismo da mulher, como mostra o evangelista: «Então fizeram sinais ao
pai, perguntando como queria que o menino se chamasse. Zacarias pediu uma
tabuinha, e escreveu: ‘João é o seu nome’. E todos ficaram admirados» (vv.
62-63). Zacarias tinha ficado sem poder falar, por não crer no anúncio do anjo
(Lc 1,20), por isso se comunicava por meio de sinais. Ao escrever como o menino
seria chamado, ele ratifica a decisão de Isabel, e ambos confirmam a promessa
de Deus através do anjo. Todos ficaram admirados por contemplar Deus agindo na
história, cumprindo as antigas promessas, porém, de um jeito completamente novo,
e com novos sujeitos. Embora Zacarias fosse sacerdote, não pertencia às classes
abastadas da hierarquia social de Israel; servia no templo por no máximo duas
semanas ao ano, com uma função meramente litúrgica, sem influência política nem
ideológica, ao contrário dos sumos sacerdotes que eram os verdadeiros detentores
de poder em Israel, tanto na política quanto na economia.
Como o anjo
tinha afirmado que Zacarias só voltaria a falar quando o menino nascesse, a
promessa foi cumprida e, «no mesmo instante, a boca de Zacarias se
abriu, sua língua se soltou, e ele começou a louvar a Deus» (v. 64). O
ápice do louvor a Deus proclamado por Zacarias é o seu cântico, o Benedictus,
o qual a liturgia de hoje omite, mas é bastante conhecido. A transformação de
Zacarias, da incredulidade e mudez ao louvor a Deus, é a passagem que,
inicialmente, Israel e depois a humanidade inteira, devem fazer: reconhecer e
aceitar a ação misericordiosa de Deus em seu favor e abrir-se à conversão.
Zacarias se torna, assim, o primeiro convertido pela missão do Batista de
endireitar os caminhos do Senhor. Diante de tudo isso, a reação dos vizinhos
não poderia ser outra, senão de espanto: «E todos os vizinhos
ficaram com medo, e a notícia espalhou-se por toda a região montanhosa da
Judeia» (v. 65). Aqui, a tradução litúrgica traz um equívoco, ao optar
pela palavra medo ao invés de temor. Na verdade, a reação de quem contempla uma
intervenção de Deus é de temor, o que significa mais admiração e respeito do
que medo, propriamente. E Lucas não perde a oportunidade de mostrar a publicidade
e difusão da ação de Deus na história; por isso, diz que a notícia do
nascimento de João «espalhou-se por toda a região montanhosa». Faz
parte de suas estratégias literárias e teológicas mostrar a repercussão dos
eventos narrados. Aqui ele já antecipa o propósito de suas duas obras
(Evangelho e Atos): apresentar a salvação rompendo limites e barreiras para, um
dia, atingir até os confins da terra.
Além de
mencionar o espalhar-se da notícia, como antecipação da “Boa-Notícia” por
excelência, que é a pessoa de Jesus, o evangelista destaca o seu efeito: «E
todos os que ouviam a notícia, ficavam pensando: ‘O que virá a ser este
menino?’ De fato, a mão do Senhor estava com ele» (v. 66). As notícias
das maravilhas de Deus geram repercussão em quem escuta, não são notícias
vagas; causam efeitos porque carregam em si a força inerente à Palavra, que é
uma Palavra performativa. O questionamento sobre o futuro do menino reforça o
superdimensionamento da sua missão. Se seus pais, anciãos e estéreis, desejavam
um filho simplesmente para «deixarem de passar vergonha perante os
homens» (Lc 1,25), pois a esterilidade era sinal de humilhação para um
casal, inclusive, era considerada um castigo divino. E Deus fez muito mais por
aquele casal, dando-lhe não apenas um filho, mas um profeta, com uma missão especial
de testemunhar o Messias e preparar o seu caminho. Na verdade, o menino
recém-nascido tinha pela frente uma missão inconfundível na história, a ponto
de ser difícil de catalogá-la. Até mesmo no auge da sua pregação, era difícil
saber quem era João Batista; até com o messias ele foi confundido (Lc 3,15),
devido à sua fidelidade a Deus e a radicalidade com que vivia a sua missão. Com
a expressão «a mão do Senhor estava com ele», o evangelista reforça
a escolha e origem divina de sua futura missão de profeta.
Na conclusão
do texto, é apresentada uma síntese da vida de João, da infância ao início da sua
vida pública: «E o menino crescia e se fortalecia em espírito. Ele
vivia nos lugares desertos, até o dia em que se apresentou publicamente a
Israel» (v. 80). Aqui está a prova de que a mão do Senhor estava
realmente com ele. O evangelista está preparando o leitor para apresentar,
posteriormente, o seu ministério de precursor do Messias. Paralelo ao
crescimento físico, ele se preparava para a missão. A vida no deserto, embora
marcada pelas dificuldades, é ideal para a relação com Deus. Seu pai era
sacerdote do templo e, por isso, o ambiente familiar não seria favorável a uma
educação ascética e crítica em relação às instituições de Israel. O deserto
significa o lugar da obediência a Deus, do diálogo, da oração; enfim, viver no
deserto é ser educado por Deus, resgatando o verdadeiro sentido da lei:
instrução para o povo. No ambiente sacerdotal ligado ao templo ele receberia
uma educação reprodutora para, no futuro, apenas substituir o pai nas funções
litúrgicas, o que seria a negação da sua identidade profética. Viver nos
lugares desertos, portanto, significa a necessária ruptura com as estruturas da
época, para acolher a novidade de Deus.
Mais do que
recordar um grande personagem, o evangelho de hoje constitui um verdadeiro
convite para retornar ao que, de fato, é essencial na vivência da fé,
procurando compreender os sinais de Deus na história e a necessidade de aderir
aos seus propósitos. A fidelidade a Jesus e seu Evangelho implica aceitar os
seus valores, acolher a sua misericórdia e a coragem de romper com todos os
possíveis entraves à difusão do seu amor. A ousadia de Isabel, apresentada por
Lucas, junto com a vida e o ministério do Batista, são sinais autênticos da
necessidade contínua de conversão para acolher o Evangelho com suas exigências.
Se a missão do Batista foi preparar os caminhos do Senhor, só tem sentido
celebrá-lo com disposição para seguir esses caminhos!
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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