sexta-feira, junho 23, 2023

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA – LUCAS 1,57-66.80



A liturgia deste dia contempla a Solenidade da natividade de São João Batista. O texto evangélico proposto é Lc 1,57-66.80, relato que contempla o nascimento, a circuncisão e a imposição do nome do santo precursor de Jesus Cristo. Depois de Jesus, João Batista é o personagem com mais dados biográficos oferecidos pelo Novo Testamento, o que evidencia a importância e a grandeza da sua missão. Quem mais contribuiu para isso foi o evangelista Lucas, como percebemos no Evangelho de hoje. Até mesmo quando os apóstolos consolidaram a pregação sobre Jesus, fizeram questão de recordar o Batista, como recorda o próprio Lucas, no segundo volume de sua obra: «Jesus de Nazaré, começando pela Galileia, depois do batismo proclamado por João» (At. 10,37). Trata-se, portanto, de um personagem relevante da história da salvação, sendo necessário passar por ele para compreender e anunciar a missão do próprio Jesus.

De fato, a figura de João é central na história da salvação, sendo ele apresentado como o elemento de transição da primeira para a segunda aliança pelo próprio Jesus, ao declarar: «A lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciado o Evangelho do Reino de Deus» (Lc 16,16). Em outra ocasião, também Jesus o proclamou como o maior entre os nascidos de mulher (Mt 11,11; Lc 7,28). Portanto, se trata de um personagem que não poderia passar despercebido. E, liturgicamente, a Igreja compreendeu bem isso, reservando-lhe duas datas no calendário: a sua natividade, celebrada hoje (24 de junho), e o seu martírio, celebrado em 29 de agosto. Chama a atenção que o primeiro evento narrado por Lucas em seu evangelho é o anúncio do nascimento de João (1,5-23), apresentando-o desde o início com as características de profeta e como um prodígio de Deus para a humanidade, recordando que seus pais, Zacarias e Isabel, eram anciãos e estéreis, já inaptos à procriação. Nesse casal, descrito como justo (Lc 1,6) o evangelista viu a situação de Israel: mesmo observando minuciosamente os preceitos da lei, faltava alegria e sinal de vida neles!

Aquela esterilidade significava a decadência da Lei e da religião por eles observada, o judaísmo do segundo templo. Por mais que se esforçassem, os condicionamentos sociais, culturais e religiosos não permitiam que vida nova brotasse daquela situação. Somente uma intervenção de Deus poderia mudar o rumo daquela história. Fiel às suas promessas, Deus intervém, inaugurando uma nova fase na história da salvação, fazendo surgir um «profeta do altíssimo» (cf. 1,76).  Assim como os profetas do Antigo Testamento previam um “resto de Israel” fiel e justo, o evangelista Lucas identificou esse resto nos personagens que ilustram o seu chamado “evangelho da infância” (capítulos 1 e 2 de Lucas): Zacarias e Isabel, Maria e José, Simeão e Ana. Neles, as promessas de Deus, desde os patriarcas, chegam ao cumprimento. Por mais que Israel estivesse esgotado e estéril, era dele que a salvação brotaria. Lucas compôs a sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos) segundo a dinâmica promessa-cumprimento. O nascimento de João é, portanto, o início do cumprimento.

Olhemos, pois, para o texto: «Completou-se o tempo da gravidez de Isabel, e ela deu à luz um filho» (v. 57). Com a clássica e conhecida expressão bíblica “completou-se o tempo”, o evangelista associa o nascimento de João às promessas de Deus. Não se trata apenas de uma gravidez concluída e uma criança a mais no mundo; significa a conclusão de uma etapa na história da salvação e a abertura de uma nova. Israel passou séculos gerando profetas e agora chegou o profeta que, finalmente, contempla o Messias. Por isso, a gravidez de Isabel significa muito mais do que a gestação de uma criança; é a geração de um tempo novo, de uma nova história. Daí que o nascimento de João comporta uma dimensão comunitária, pública; por isso, «os vizinhos e parentes ouviram dizer como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela» (v. 58). Aqui, o evangelista introduz dois temas centrais da sua grande obra (Evangelho e Atos): a misericórdia e a alegria, duas dimensões e características indispensáveis na comunidade cristã. Os parentes e amigos representam a abertura da salvação que, aos poucos, Lucas vai mostrando. Isso mostra que o nascimento de João é recebido como uma ação favorável de Deus a um povo, a uma comunidade, e não apenas a um clã.

Sendo Isabel e Zacarias, «justos e irrepreensíveis observantes da Lei» (1,6), ou seja, pessoas de comportamento reto, que observavam a Lei e cumpriam boas obras em favor do próximo, atentas aos mandamentos da religião que praticavam. Pessoas justas, segundo a mentalidade bíblica, eram aquelas que ajudavam o próximo, que refletiam com a vida a misericórdia de Deus, e a misericórdia é, acima de tudo, um agir favorável em prol dos mais necessitados; ser observantes da Lei significa a fidelidade a Deus e aos seus mandamentos. Por isso, «no oitavo dia, foram circuncidar o menino, e queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias» (v. 59)Querendo simplificar a história, o evangelista faz uma pequena confusão: o nome da criança era dado logo no nascimento, e não no momento da circuncisão, ao oitavo dia. Também não era costume dar o nome do pai, e sim o nome do avô da criança. Mais uma vez, o evangelista ressalta a dimensão comunitária do nascimento de João: a comunidade – parentes e amigos – participa da sua vida, assim como o seu ministério profético estará a serviço de todo o povo.

Dar o nome à criança era atributo exclusivo do pai, de acordo com a tradição bíblica e com as tradições de outros povos da antiguidade. É importante perceber neste o papel inovador da mãe, ressaltado por Lucas: «A mãe, porém, disse: ‘Não! Ele vai chamar-se João!» (v. 60). Desde o início do seu evangelho, Lucas pensa a mulher como sujeito com voz e poder de decisão, rompendo com as tradições e condicionamentos da época. Esse “não!” de Isabel representa uma verdadeira revolução na tradição bíblica. É uma inovação sem precedentes na história. Até então, não se tinha visto uma decisão que representasse um empoderamento tão forte da mulher. E isso causou perplexidade, obviamente, como observa o evangelista: «Os outros disseram: ‘Não existe nenhum parente teu com esse nome!’» (v. 61). Os outros aqui, são os parentes e vizinhos; apegados à Lei, não aceitam a novidade que começa a se configurar; querem que as coisas permaneçam como sempre, com a mulher continuando sem direito de opinar e de tomar decisões. É o Israel necessitado de conversão, a quem João se dirigirá em seu ministério e, posteriormente, Jesus. Nesse sentido, Isabel é pioneira na desconstrução da mentalidade patriarcal. A imposição do nome João já tinha sido indicada pelo anjo no anúncio a Zacarias (Lc 1,13), e isso mostra a sintonia de Isabel aos propósitos de Deus: ela não necessitou ouvir de um anjo para acolher e cumprir a sua vontade; os próprios acontecimentos da vida lhe ensinaram a interpretar e cumprir a vontade de Deus. João é um nome hebraico que significa “Deus é favorável” (significados correlatos: Deus é clemente; Deus é misericordioso; agraciado por Deus).

Com a mentalidade ainda fechada e sem aceitar a novidade representada pelo não de Isabel, os parentes e vizinhos recorrem à autoridade masculina, rejeitando o protagonismo da mulher, como mostra o evangelista: «Então fizeram sinais ao pai, perguntando como queria que o menino se chamasse. Zacarias pediu uma tabuinha, e escreveu: ‘João é o seu nome’. E todos ficaram admirados» (vv. 62-63). Zacarias tinha ficado sem poder falar, por não crer no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso se comunicava por meio de sinais. Ao escrever como o menino seria chamado, ele ratifica a decisão de Isabel, e ambos confirmam a promessa de Deus através do anjo. Todos ficaram admirados por contemplar Deus agindo na história, cumprindo as antigas promessas, porém, de um jeito completamente novo, e com novos sujeitos. Embora Zacarias fosse sacerdote, não pertencia às classes abastadas da hierarquia social de Israel; servia no templo por no máximo duas semanas ao ano, com uma função meramente litúrgica, sem influência política nem ideológica, ao contrário dos sumos sacerdotes que eram os verdadeiros detentores de poder em Israel, tanto na política quanto na economia.

Como o anjo tinha afirmado que Zacarias só voltaria a falar quando o menino nascesse, a promessa foi cumprida e, «no mesmo instante, a boca de Zacarias se abriu, sua língua se soltou, e ele começou a louvar a Deus» (v. 64). O ápice do louvor a Deus proclamado por Zacarias é o seu cântico, o Benedictus, o qual a liturgia de hoje omite, mas é bastante conhecido. A transformação de Zacarias, da incredulidade e mudez ao louvor a Deus, é a passagem que, inicialmente, Israel e depois a humanidade inteira, devem fazer: reconhecer e aceitar a ação misericordiosa de Deus em seu favor e abrir-se à conversão. Zacarias se torna, assim, o primeiro convertido pela missão do Batista de endireitar os caminhos do Senhor. Diante de tudo isso, a reação dos vizinhos não poderia ser outra, senão de espanto: «E todos os vizinhos ficaram com medo, e a notícia espalhou-se por toda a região montanhosa da Judeia» (v. 65). Aqui, a tradução litúrgica traz um equívoco, ao optar pela palavra medo ao invés de temor. Na verdade, a reação de quem contempla uma intervenção de Deus é de temor, o que significa mais admiração e respeito do que medo, propriamente. E Lucas não perde a oportunidade de mostrar a publicidade e difusão da ação de Deus na história; por isso, diz que a notícia do nascimento de João «espalhou-se por toda a região montanhosa». Faz parte de suas estratégias literárias e teológicas mostrar a repercussão dos eventos narrados. Aqui ele já antecipa o propósito de suas duas obras (Evangelho e Atos): apresentar a salvação rompendo limites e barreiras para, um dia, atingir até os confins da terra.

Além de mencionar o espalhar-se da notícia, como antecipação da “Boa-Notícia” por excelência, que é a pessoa de Jesus, o evangelista destaca o seu efeito: «E todos os que ouviam a notícia, ficavam pensando: ‘O que virá a ser este menino?’ De fato, a mão do Senhor estava com ele» (v. 66). As notícias das maravilhas de Deus geram repercussão em quem escuta, não são notícias vagas; causam efeitos porque carregam em si a força inerente à Palavra, que é uma Palavra performativa. O questionamento sobre o futuro do menino reforça o superdimensionamento da sua missão. Se seus pais, anciãos e estéreis, desejavam um filho simplesmente para «deixarem de passar vergonha perante os homens» (Lc 1,25), pois a esterilidade era sinal de humilhação para um casal, inclusive, era considerada um castigo divino. E Deus fez muito mais por aquele casal, dando-lhe não apenas um filho, mas um profeta, com uma missão especial de testemunhar o Messias e preparar o seu caminho. Na verdade, o menino recém-nascido tinha pela frente uma missão inconfundível na história, a ponto de ser difícil de catalogá-la. Até mesmo no auge da sua pregação, era difícil saber quem era João Batista; até com o messias ele foi confundido (Lc 3,15), devido à sua fidelidade a Deus e a radicalidade com que vivia a sua missão. Com a expressão «a mão do Senhor estava com ele», o evangelista reforça a escolha e origem divina de sua futura missão de profeta.

Na conclusão do texto, é apresentada uma síntese da vida de João, da infância ao início da sua vida pública: «E o menino crescia e se fortalecia em espírito. Ele vivia nos lugares desertos, até o dia em que se apresentou publicamente a Israel» (v. 80). Aqui está a prova de que a mão do Senhor estava realmente com ele. O evangelista está preparando o leitor para apresentar, posteriormente, o seu ministério de precursor do Messias. Paralelo ao crescimento físico, ele se preparava para a missão. A vida no deserto, embora marcada pelas dificuldades, é ideal para a relação com Deus. Seu pai era sacerdote do templo e, por isso, o ambiente familiar não seria favorável a uma educação ascética e crítica em relação às instituições de Israel. O deserto significa o lugar da obediência a Deus, do diálogo, da oração; enfim, viver no deserto é ser educado por Deus, resgatando o verdadeiro sentido da lei: instrução para o povo. No ambiente sacerdotal ligado ao templo ele receberia uma educação reprodutora para, no futuro, apenas substituir o pai nas funções litúrgicas, o que seria a negação da sua identidade profética. Viver nos lugares desertos, portanto, significa a necessária ruptura com as estruturas da época, para acolher a novidade de Deus.

Mais do que recordar um grande personagem, o evangelho de hoje constitui um verdadeiro convite para retornar ao que, de fato, é essencial na vivência da fé, procurando compreender os sinais de Deus na história e a necessidade de aderir aos seus propósitos. A fidelidade a Jesus e seu Evangelho implica aceitar os seus valores, acolher a sua misericórdia e a coragem de romper com todos os possíveis entraves à difusão do seu amor. A ousadia de Isabel, apresentada por Lucas, junto com a vida e o ministério do Batista, são sinais autênticos da necessidade contínua de conversão para acolher o Evangelho com suas exigências. Se a missão do Batista foi preparar os caminhos do Senhor, só tem sentido celebrá-lo com disposição para seguir esses caminhos!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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