sábado, setembro 16, 2023

REFLEXÃO PARA O 24º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 18,21-35 (ANO A)



A liturgia deste vigésimo quarto domingo do tempo propõe a continuação da leitura do “discurso comunitário” do Evangelho de Mateus. O trecho escolhido para este dia é a continuação imediata daquele do domingo passado: Mt 18,21-35. Como se sabe, o “discurso comunitário”, chamado também de “discurso eclesial”, é o quarto dos cinco grandes discursos atribuídos a Jesus no Evangelho de Mateus, ocupando praticamente todo o capítulo dezoito do respectivo Evangelho. Esse discurso recebe tal nome porque trata das questões relativas à vida interna da comunidade cristã, com ênfase nas relações interpessoais entre os seus membros, que devem ser orientadas para a fraternidade. No trecho lido no domingo passado – Mt 18,21-35 – foi evidenciado o tema da correção fraterna, ressaltando que a comunidade e seus membros não podem medir esforços para que nenhum irmão ou irmã se afastem da fraternidade. No texto lido hoje, predomina o tema do perdão, com ênfase na certeza do perdão sem limites de Deus a todos os seus filhos e filhas, e consequente responsabilidade dos membros da comunidade praticarem o perdão entre si de modo também ilimitado.

Como no domingo passado (vigésimo terceiro domingo), cujo texto evangélico proposto pela liturgia foi Mt 18,15-20, já fizemos a contextualização de todo o capítulo dezoito, hoje podemos nos isentar dessa tarefa, recordando apenas alguns elementos essenciais. E começamos os destinatários primeiros do discurso, que são os discípulos e discípulas de Jesus que, com o passar do tempo e o crescimento da comunidade, pareciam esquecer ou relativizar a essência da mensagem de Jesus, que sempre teve o amor como centro. E um dos primeiros frutos do amor é o perdão, assim como a misericórdia de Deus é a marca principal do seu jeito de amar à humanidade. Portanto, é indispensável que toda pessoa que sente o amor de Deus em sua vida esteja também disponível a amar o próximo e perdoá-lo sempre. A mensagem do evangelho de hoje gira em torno desse ensinamento. A insistência do evangelista Mateus sobre o tema do perdão diz muito sobre a natureza da Igreja e, sobretudo, das suas comunidades. Por sinal, ele sempre mostrou que a comunidade de fé é composta de pessoas imperfeitas, sempre sujeitas ao erro, sobretudo nas relações com o próximo (Mt 13,24-30.47-50). Isso justifica a necessidade de se criar uma verdadeira cultura do perdão e da reconciliação.

Sendo os discípulos os destinatários primeiros do discurso, e interlocutores diretos de Jesus, conforme o contexto narrativo, é deles que partem as primeiras reações ao que ele estava ensinando. E ele estava ensinando sobre o esforço da comunidade para que nenhum irmão se perca, recomendando que sejam tomadas diversas iniciativas para que haja reconciliação e correção fraterna. Diante disso, diz o evangelista que «Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?’» (v. 21). Como vemos, é Pedro o primeiro a se manifestar, não por exercer uma atividade de proeminência sobre os demais, mas por refletir a voz de todo o grupo e ser ele o que melhor sintetiza as características do grupo, incluindo a fé e o esforço de dar o melhor de si, bem como as contradições e incoerências. Para os evangelistas, e principalmente para Mateus, Pedro é a cara dos doze: professa solenemente a fé em Jesus como o Cristo e Filho de Deus (Mt 16,16), mas também o nega no momento mais difícil (Mt 26,69-75), ora fala conforme a vontade do Pai, ora conforme satanás (Mt 16,17.23). Portanto, a figura de Pedro funciona como uma síntese do grupo dos doze, sobretudo, em Mateus. Por isso, ele é o porta-voz principal de todos os discípulos.

Jesus tinha apresentado a necessidade da reconciliação como uma busca irrenunciável para a comunidade (18,15-20). Como não há reconciliação sem perdão, ele vai apresentar a necessidade do perdão permanente e contínuo na vida da comunidade. Aqui, Pedro encontra a oportunidade de interagir, por meio de uma pergunta. Nessa pergunta de Pedro há, mais do que uma dúvida, uma convicção: se deve perdoar, mas com prudência e limite. A convicção mostra que ele tinha assimilado as tradições de Israel e a convivência humanizante com Jesus já lhe tinha ampliado o horizonte. O limite, contudo, é praticamente determinar a quantidade do perdão a sete vezes, afinal, o número sete evoca perfeição e completude. O perdão sempre fez parte das tradições de Israel, porém, com certas restrições. Na época de Jesus, por exemplo, sobretudo nas escolas rabínicas, predominava um costume de aconselhar o perdão até três vezes para uma mesma pessoa. A pergunta propositiva de Pedro, com a possibilidade de conceder o perdão até sete vezes à mesma pessoa compreendia mais do que o dobro do que os costumes da época. Sem dúvidas, percebe-se um significativo avanço na mentalidade de Pedro e dos discípulos que ele representa. É um saldo qualitativo e quantitativo admirável. Aos poucos, a lógica calculista da antiga religião estava sendo superada entre os discípulos. O que continuava negativo na mentalidade deles era a insistência em querer medir quantitativamente aquilo que deve ser ilimitado.

Provavelmente, ao propor um número superior ao dobro do que era ensinado pelos mestres da época, Pedro imaginava receber um elogio de Jesus, pois tinha demonstrado uma «justiça superior à dos escribas e fariseus» (Mt 5,20), como Jesus tinha exigido ainda no seu primeiro discurso, aquele chamado de “discurso da montanha” (Mt 5– 7). No entanto, Jesus vai muito além, com a sua resposta: «Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete» (v. 22). Sem dúvidas, Pedro e os demais discípulos ficaram desconcertados com essa resposta. A pergunta de Pedro já refletia uma abertura na comunidade para ir além dos costumes da época, mas com certos limites. A resposta de Jesus ensina a romper com todos os limites. Não se trata de um convite ou ordem para os discípulos fazerem uma multiplicação e chegarem a uma cifra elevada, porém, contável (70 x 7 =490), mas simplesmente um sinal de que não há espaço para números no que diz respeito às relações com o próximo na comunidade cristã, até porque as relações com o próximo e com Deus são inseparáveis. Essa expressão numérica não indica uma quantidade, mas a qualidade: o perdão é ilimitado e incontável; deve ser concedido conforme a necessidade, e não conforme cálculos.

Para deixar ainda mais clara a necessidade do perdão entre os irmãos, Jesus apresenta uma parábola, que funciona como explicação do seu ensinamento. Nesse mesmo discurso Ele já tinha contado uma primeira parábola, aquela da ovelha perdida (18,10-14), ao enfatizar que as relações na comunidade devem refletir o amor e a misericórdia do Pai para que nenhum pequenino se perca do rebanho, ou seja, para que ninguém se separe da comunhão fraterna. Agora, com essa segunda parábola, ele reforça esse ensinamento: «O Reinos dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados» (v. 23). Antes de tudo, convém recordar que uma parábola é apenas uma comparação, e não uma descrição. É importante fazer esse esclarecimento para não distorcermos a imagem do Pai misericordioso, convertendo-o em um soberano ou juiz vingativo. Por isso, o primeiro objetivo dessa parábola é mostrar a abundância do perdão ilimitado de Deus e alertar para a dificuldade que a comunidade tem de praticar o perdão. O segundo objetivo é levar a comunidade a superar essa dificuldade, denunciando a frequente incoerência em invocar o perdão do Pai quando não há disposição de perdoar ao próximo também de modo ilimitado.

De modo simplificado, podemos compreender a parábola da seguinte maneira: tudo o que se recebe de Deus é dom, e tudo o que é dom deve ser partilhado. O primeiro empregado ou servo devia uma quantidade incalculável (v. 24), ou seja, possuía uma dívida milionária, a ponto de ser impossível quitá-la. Dez mil talentos representa uma quantia muito grande. O talento era uma unidade de peso para metais preciosos, como o ouro e a prata. Um talento equivalia a trinta e cinco quilos, de modo que dez mil talentos corresponderia a trezentos e cinquenta mil quilos de ouro e prata. Trata-se, portanto, de uma dívida quase incalculável e impossível de ser paga. Por isso, o rei-patrão, manda vender o empregado devedor como escravo, juntamente com toda a família (v. 25). Certamente, esse não era apenas um empregado, mas alguém que participava diretamente da administração, o qual deve ter desviado ilicitamente muito dinheiro para ficar tão endividado para com o rei, após ser descoberto. Sabendo da impossibilidade de pagar, não lhe resta outra coisa senão suplicar o perdão da dívida, como o fez, pedindo um prazo como pretexto (v. 26). O patrão teve compaixão e perdoou a dívida (v. 27), representando o agir de Deus diante da incapacidade humana de corresponder aos seus propósitos. Com isso, Jesus ilustra que a misericórdia de Deus supera qualquer expectativa humana.

A continuação da parábola mostra que o empregado, perdoado de maneira absoluta e ilimitada, se mostra incapaz de partilhar o perdão recebido (vv. 28-32); e isso é intolerável para aquele que lhe havia perdoado (v. 33-34). O centro da parábola está exatamente aqui: advertir e prevenir a comunidade, principalmente as lideranças, da hipocrisia, covardia e mesquinhez de não partilhar o perdão, de não ser instrumento e sinal de reconciliação. No final, o empregado servo foi condenado porque reteve o perdão somente para si, não partilhou o perdão recebido. Jesus quer evitar esse perigo na(s) sua(s) comunidade(s). Assim, a comunidade contradiz o projeto de Jesus e do Pai quando classifica o pecado, determinando se é “perdoável” ou não, e quando impõe limites ao aplicar o perdão. Ora, o perdão é força humanizante e, uma vez experimentado, deve transformar o coração e a vida de cada pessoa. A descrição vingativa do rei, na parábola, não visa mostrar uma imagem violenta de Deus, mas denunciar que não tem sentido invocar a misericórdia dele sem disposição para perdoar o próximo. Visa ilustrar também que a falta de perdão tira o sentido da vida. É claro que o perdão ao próximo não é condição para o perdão de Deus, mas deve ser a consequência lógica.

Longe de descrever Deus como um soberano vingativo, o que Jesus quer com essa parábola é reforçar um ensinamento necessário e urgente para o bem da comunidade, que insistia em negligenciar. Enfim, Jesus apenas reforça o que já tinha sido dito no seu primeiro discurso, o da montanha: «Pois, se perdoardes aos homens os seus delitos, também o vosso Pai celeste vos perdoará; mas se não perdoardes aos homens, o vosso Pai também não perdoará os vossos delitos» (Mt 6,14-15). Quando um evangelista mostra Jesus insistindo com um mesmo ensinamento, tornando-se até repetitivo, significa a importância de tal ensinamento e a dificuldade de assimilação entre os seus discípulos. Por isso, ele insiste com o perdão: por mais difícil que seja praticá-lo de modo ilimitado, ele é indispensável. Sem o perdão ilimitado e generoso não há seguimento de Jesus, não há comunidade cristã e tampouco há relação autêntica com Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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