O evangelho deste
vigésimo sexto domingo é Mt 21,28-32, texto que compreende a chamada parábola
dos dois filhos, cujo pai os ordena a trabalhar na sua vinha. É uma parábola
exclusiva do Evangelho de Mateus, sendo a segunda de uma trilogia que emprega a
imagem da vinha como representação do Reino de Deus, na respectiva obra. A
primeira foi lida no domingo passado (dos trabalhadores da vinha – Mt 20,1-16)
e a terceira será lida no próximo domingo (dos vinhateiros homicidas – Mt
21,33-43). Enquanto aquela do domingo passado foi contada ainda no contexto
narrativo do caminho de Jesus com seus discípulos em direção à cidade de
Jerusalém, a de hoje já é contada na “cidade santa”. Isso quer dizer que o
texto se localiza na seção narrativa do ministério de Jesus em Jerusalém, e é
dessa seção que será tirado o evangelho de cada domingo, de hoje até o final do
corrente ano litúrgico. Como se sabe, foi em Jerusalém que Jesus viveu a fase
mais tensa de seu ministério, confrontando-se diretamente com as autoridades
religiosas e políticas da época. Tanto é que o desfecho desse confronto foi a
condenação à morte de cruz. O evangelho de hoje já reflete esse confronto.
O texto
retrata Jesus no templo de Jerusalém, um espaço que se tornou sinônimo de
conflito e hostilidade para ele. Inclusive, o seu primeiro gesto em Jerusalém,
logo após uma entrada triunfante (Mt 21,11), foi denunciar a situação
deplorável em que o templo se encontrava, tendo se transformado em “antro de
ladrões”, quando deveria ser uma casa de oração (Mt 21,12-17). Jesus não se
conformou em ver o templo transformado em casa de comércio e o nome de Deus, o
seu Pai, transformado em mercadoria e instrumento de exploração. Por isso,
denunciou corajosamente aquela situação, desmascarando a classe dirigente,
especialmente os sacerdotes, que exploravam o povo em nome de Deus. A denúncia
do templo foi o estopim para o conflito de Jesus com as classes dirigentes, que
passaram a vigiar cuidadosamente os seus passos e os seus ensinamentos. E o
ensinamento de Jesus divergia completamente do magistério oficial da época. Sua
mensagem libertadora visava a construção do Reino de Deus como sociedade
alternativa à ordem vigente. Isso exigia uma transformação total, com a
supressão de todas as estruturas de poder e exploração, começando pela religião
que explorava e até matava em nome de Deus.
Apesar das
divergências e hostilidades, em Jerusalém, Jesus ensinava no templo, pois era
lá que havia grande concentração de pessoas e onde ele poderia questionar mais
diretamente a classe dirigente. É claro que não era do púlpito que ele
ensinava, mas nos diversos átrios, pois sua mensagem libertadora era
insuportável para os dirigentes. Por isso, ele foi duramente questionado, como
recorda o evangelista: «Jesus voltou ao Templo. Enquanto ensinava, os
chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo se aproximaram e perguntaram: ‘Com
que autoridade fazes tais coisas? Quem foi que te deu essa autoridade?’» (Mt
21,23). O trecho lido hoje faz parte deste confronto específico, quando Jesus
teve a sua autoridade questionada pelos sacerdotes e anciãos, por causa da
expulsão dos vendedores do templo, sobretudo, pois foi o seu primeiro gesto
profético na cidade. E Jesus respondeu a esse primeiro questionamento
denunciando a hipocrisia e a falsa autoridade que os dirigentes exerciam, o que
serve de advertência aos seus discípulos e discípulas de todos os tempos para o
risco de reproduzir o modelo de religião que ele denunciou. Como de costume,
Jesus não dá uma resposta pronta, mas provoca em seus interlocutores a reflexão,
buscando tirar deles mesmos a resposta. Ele parte do exemplo de João Batista,
deixando os sacerdotes e anciãos embaraçados (Mt 21,24-24), até chegar na
parábola lida na liturgia de hoje.
Como o início
do próprio texto indica, através da pergunta introdutória «Que vos
parece?», o que é dito em seguida visa reforçar algo já introduzido na
discussão anterior. Na verdade, é a continuação de uma discussão em andamento,
na qual Jesus afirma sua autoridade, após ser questionado pelos sacerdotes e
anciãos, ou seja, os chefes religiosos e, ao mesmo tempo, denuncia a
ilegitimidade deles. Essa fórmula de introdução em forma de pergunta já tinha
sido utilizada na parábola da ovelha perdida (Mt 18,12), e funciona como uma
chamada de atenção para o que vem a seguir; significa que se trata de um
ensinamento de fundamental importância. Indica também que será exigida uma
resposta e tomada de posição dos interlocutores, no final. Eis, então, o início
do texto: «Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao
primeiro, ele disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha’» (v. 28). A
vinha é uma imagem clássica na tradição bíblica para designar o povo de Deus
(Is Is 5,1-7), e adaptada por Jesus como imagem do Reino de Deus (Mt 20,1-16)
por ele inaugurado. Os personagens da parábola – um pai e dois filhos – também são
imagens bem significativas, muito valorizadas pelas tradições das primeiras
comunidades, como sempre foram ao longo da história de Israel. Inclusive, essa
parábola se aproxima daquela que em Lucas é chamada de “parábola do filho
pródigo” ou do “pai misericordioso” (Lc 15,11-32).
Geralmente,
quando aparece uma narrativa protagonizado por dois irmãos, na Bíblia,
evidencia-se a contraposição de comportamento e conduta entre os dois. Vemos
isso desde o início, com os exemplos de Caim e Abel (Gn 4,1-16), Esaú e Jacó
(Gn 25,19–27,45). Tanto Jesus quanto o evangelista, portanto, se ancoram nessa
tradição, sobretudo quando visam provocar uma tomada de posição dos
interlocutores e dos discípulos, sobretudo. E o foco do ensinamento da parábola
consiste exatamente na contraposição de comportamento dos dois filhos que
receberam a mesma ordem, mas responderam e agiram de modo oposto. Ao pedir que
os filhos trabalhassem na sua vinha, o pai queria que eles se sentissem
colaboradores diretos da sua obra. Assim, fica claro, desde o início, que Jesus
quer apresentar um pai que compartilha o que é seu com os filhos e pede que
esses sejam seus colaboradores. Considerando que esse pai representa Deus, na
parábola, Jesus está também denunciando a ilegitimidade da autoridade dos
sacerdotes e anciãos, considerados na época como os únicos responsáveis pelas
“coisas de Deus” na terra. O pai interage diretamente com os dois filhos,
apresenta sua proposta, seu programa, sem necessidade de intermediários, como
fez o proprietário da vinha na parábola do domingo passado, ao ir diretamente à
praça em busca de trabalhadores. Tudo isso indica o jeito novo de Deus se
comunicar com a humanidade, a partir de Jesus, o verdadeiro Deus conosco.
O pai fez a mesma proposta
aos dois filhos, ou seja, convidou-os para trabalhar na vinha, e recebeu
respostas diferentes. Eis a reação do primeiro destinatário da ordem/convite do
pai: «Não quero». Apesar de brusca, é uma resposta sincera e
direta, sem nenhum formalismo. Porém, depois, aquele filho «mudou de
opinião e foi» (v. 29b). O que a tradução do lecionário traz como
“mudou de opinião” seria mais bem traduzido por “arrependeu-se”, pois
corresponde melhor ao verbo empregado na língua original do texto (verbo grego
metamelómai – μεταμέλομαι). Esse verbo faz parte do vocabulário da
conversão, na linguagem bíblica. Dai, podemos dizer, portanto, que aquele
filho se converteu e foi trabalhar na vinha do seu pai. Ele mudou não
apenas de opinião, mas de mentalidade e, por consequência, mudou o jeito de
agir. E é nisso que consiste a conversão. Eis, agora, a resposta-reação do
segundo filho: «‘Sim, Senhor, eu vou’. Mas não foi» (v. 30b).
Dessa vez, a resposta é respeitosa, carregada de formalismo. Inclusive, o pai é
tratado como “senhor”. Porém, a postura do filho não foi coerente com a
resposta. Como se vê, tanto foram diferentes as respostas quanto as atitudes de
cada um dos dois filhos. O centro do ensinamento de Jesus com essa parábola
está exatamente aqui, no contraste entre as respostas e os comportamentos dos
dois filhos, como já afirmamos anteriormente.
Historicamente, Israel, como
povo da aliança, disse sim a Deus com palavras, embora seu comportamento tenha
se distanciado tanto da verdadeira vontade de Deus. Com esse contraste entre os
dois filhos, Jesus provoca seus interlocutores e os convida a uma reflexão. Por
isso, lhes pede um juízo, uma opinião sobre os dois filhos: «Qual dos
dois fez a vontade do pai?». E, como não poderia ser diferente, «Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: ‘O primeiro’» (v. 31). De fato, a resposta não poderia ser outra,
pois a parábola é muito clara. Quem fez a vontade do pai foi mesmo o primeiro
filho, aquele que disse “não” inicialmente, mas se arrependeu e foi trabalhar
na vinha. Ao ir trabalhar, esse primeiro filho fez verdadeiramente a vontade do
pai, mesmo tendo respondido negativamente, uma vez que o importante para Deus
não são as palavras, mas sim as atitudes. O segundo filho, pelo contrário, não
fez a vontade do pai porque ficou apenas no discurso, não levou a solene
resposta – «Sim, Senhor» – para a prática. Com isso, Mateus
chama a atenção da sua comunidade e dos cristãos de todos os tempos para também
não caírem nos mesmos erros e contradições das lideranças religiosas de Israel.
Por sinal, Mateus já havia introduzido esse tema no discurso da montanha, ao
recordar as palavras de Jesus que priorizam o fazer sobre o dizer: «Não
é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele
que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus» (Mt 7,21). Em
outra ocasião, numa discussão com os escribas e fariseus, ele também denunciou
a contradição e incoerência entre o discurso e a prática das lideranças religiosas
de Israel, com uma citação do profeta Isaías: «Este povo me honra com
os lábios, mas seu coração está longe de mim» (Mt 15,8 = Is 29,13).
Com certeza os
chefes religiosos de Jerusalém já tinham percebido a complexidade da situação
em que tinham se envolvido ao questionar a autoridade de Jesus. Sem dúvidas, o
clima piorou ainda mais com a continuação da resposta de Jesus a eles: «Então
Jesus lhes disse: ‘Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as
prostitutas vos precedem no Reino de Deus’» (v. 31b). Dessa vez, Jesus
passou dos limites, pensaram eles, certamente. Enquanto Jesus os acusava com
uma linguagem simbólica, eles poderiam ignorar, mudar o foco ou até propor uma
interpretação distorcida. Mas assim, de modo tão claro e objetivo, não seria
possível. Os cobradores de impostos e as prostitutas eram, de acordo com a
mentalidade da época, as piores categorias de pessoas, a verdadeira escória da
sociedade, e Jesus ousou dizer que elas herdariam primeiro o Reino de Deus do
que as pessoas religiosas de Israel. O verbo preceder no presente indica a
realização imediata ou, pelo menos, o começo do Reino de Deus na história.
Jesus inaugura o Reino em sua vida e tem clareza de quem estava aderindo
primeiro. Também chama a atenção nessa passagem o emprego da expressão “Reino
de Deus”, rara no Evangelho de Mateus, já que ele prefere “Reino dos Céus”,
provavelmente para não afetar a sensibilidade judaica, tendo em vista a
impronunciabilidade do nome de Deus, tão recomendada nos textos legislativos do
Antigo Testamento. Enquanto Reino dos Céus aparece trinta e duas vezes, Reino
de Deus aparece apenas cinco vezes no respectivo Evangelho.
A rejeição dos
chefes à mensagem de Jesus é comparável à rejeição sofrida por João (v. 31). De
fato, também o precursor veio «num caminho de justiça», mas foi
rejeitado pelos conhecedores da lei e dos profetas, ou seja, pelas pessoas
religiosas como os sacerdotes e anciãos, fechados ao arrependimento devido à
autossuficiência de suas convicções religiosas e pelos privilégios que haviam. De
fato, para as classes privilegiadas, a mensagem emancipatória de Jesus soa
sempre como uma ameaça. Por outro lado, «os cobradores de impostos e as
prostitutas» (v. 31b), rejeitados pela religião, mas abertos à conversão,
sedentos de compreensão e acolhimento, necessitados de humanização, acreditaram
no Batista e em Jesus, tornando-se, assim, herdeiros do Reino de Deus, a nova
vinha do Pai, que é o próprio Deus. É claro que nem todos os publicanos e
prostitutas se converteram, mas é certo que houve adesão de gente dessas
categorias e todos os grupos marginalizados da época à mensagem inclusiva de
Jesus. Na verdade, a menção a essas duas categorias funciona como síntese de
todos as classes de pessoas marginalizadas, destinatárias privilegiadas do
projeto humanizador de Jesus. Desse modo, a máxima proverbial que emoldurava a
parábola do domingo passado, é atualizada também na parábola de hoje: «Os
últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos» (Mt
20,16). É importante que, assim como a comunidade de Mateus soube atualizar
essa mensagem, também as nossas comunidades de hoje saibam. Os primeiros de
sempre, transformados em últimos na dinâmica do Reino serão sempre as pessoas
autossuficientes, arrogantes, conhecedoras dos mínimos detalhes das leis
religiosas, como eram os sacerdotes, anciãos e escribas da época de Jesus.
Hoje, embora em outras modalidades, essas pessoas continuam presentes em nossas
comunidades, com a mesma autossuficiência, julgando, excluindo e determinando
como o outro deve agir.
É preciso,
portanto, identificar quem são os últimos de hoje para os reconhecermos como
primeiros no Reino. Na época, Jesus identificou os cobradores de impostos e as
prostitutas, exemplos máximos de pessoas pecadoras e, por isso, distantes de
Deus. Hoje, certamente há uma relação muito maior de categorias de pessoas
excluídas pelas religiões e comunidades eclesiais que Jesus as colocaria como
primeiras no Reino de Deus. Todos os que sofrem discriminações, vítimas de
preconceitos, e excluídos por quem controla e impõem as normas de
comportamento, estariam na lista de Jesus, precedendo aqueles que louvam com os
lábios, mas pouco fazem para o Reino acontecer, ou seja, não fazem a vontade do
pai. Fazer a vontade do Pai é o requisito básico para entrar no Reino. E faz a
vontade do Pai quem assimila o estilo de vida de Jesus.
Pe. Francisco
Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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