Neste ano, a liturgia do trigésimo primeiro domingo do comum é substituída pela solenidade de todos os santos. E o evangelho proposto para essa solenidade é Mt 5,1-12a, interrompendo, assim, a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus. É um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem expressa tão bem o sentido da santidade como esse. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».
As
bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e,
consequentemente, daquilo que seus discípulos e discípulas de todos os tempos
devem viver. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se
interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em
todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de
Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de
Jesus que o Evangelho apresenta. Na verdade, todo o discurso
da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto,
para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem
evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao
devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por
isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de
sociedade e, consequentemente, das suas exigências.
De todas as
palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as
bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as
mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a
uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por
isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de
encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito
bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à
ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por
nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova
bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os
discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente
todas elas.
Para
compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer
mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego
empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual
pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que
introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora
escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade
semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da
palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao
grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשרי) “ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao
mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar
ou pôr-se em marcha. Expressivas correntes da exegese atual propõem que o
evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse
segundo sentido, as bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em
discurso de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de
transformação.
Olhemos,
pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de
transformação. Eis a primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os
pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De
todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais
equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao
conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se,
abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.
O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam,
coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino
dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e
plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que
se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e
pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e,
conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra
encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e
lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.
A segunda
bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão
consolados» (v. 4). De todas as bem-aventuranças, certamente,
essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais literal, o termo aflitos seria substituído
por “os que choram”, e essa bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e
lágrimas com a consolação. É um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É
claro que Deus não compactua com as causas das aflições, mas ele está sempre do
lado dos aflitos, daqueles que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que
se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do
sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado
por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz
muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar,
jamais recuar, para encontrar a consolação.
Na terceira
bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque
possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e
significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso
particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da
violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais
difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência,
determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não
parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos
camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À
medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos
desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.
Como não
poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o
fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta
bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados os que têm fome e
sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as
necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida
são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus
discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta
cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É
preciso seguir em frente na luta por justiça.
Na quinta
bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque
encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que
misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos
necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no
caminho do bem, pois é do bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais
possibilidades se tem de ser amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e
da própria essência do Deus revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia.
De fato, a misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus,
por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao
próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.
Com a sexta
bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da
religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a
Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham
escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos
e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro
caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo
de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas
somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a
Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o
discípulo de Jesus deve marchar, avançar.
A sétima
bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade
formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito
básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma,
intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de
conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser
humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a
comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo
dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a
paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica,
ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se
torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.
A oitava
bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o
reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v.
10). A justiça, por excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças
anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra
consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a
palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando,
avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!
Viver as
bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que,
inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na
exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência.
Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve
avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o
ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão
com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois
vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de
mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a
vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa
afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem
como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas.
Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os
discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser
discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz
como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente,
viver como ele.
Assim,
recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se
mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as
bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar
todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se,
avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para
transformá-la à maneira de Jesus.
Para seguir
Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o
que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode
mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em
sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento
do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o
discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo
melhor, mais justo e mais fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o
mais completo programa de humanização que esse mundo já conheceu.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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