Passada uma sequência de
seis domingos, interrompe-se o tempo comum para a vivência de um dos tempos
mais fortes do ano litúrgico, a Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas,
com o convite à conversão, em preparação à Páscoa do Senhor. Inserida no ciclo
pascal e distribuída ao longo de quarenta dias, a Quaresma é, na verdade, mais
do que um tempo. É um verdadeiro itinerário catequético e espiritual, um
caminho de conversão pessoal e comunitária, uma oportunidade de reconciliação
de cada pessoa com Deus e consigo mesma, tendo em vista a celebração e a
acolhida da Páscoa com sua riqueza de dons, a razão da fé cristã. Como acontece
todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma compreende o relato
das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, logo após ser batizado, como
preparação para o início de seu ministério. Esse é um episódio presente nos
três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua
grande importância para as primeiras comunidades cristãs. Neste ano, por
ocasião do ciclo litúrgico B, nós lemos a versão das tentações do Evangelho de
Marcos.
Como o relato das tentações
em Marcos é muito curto, a liturgia acrescentou a leitura do primeiro resumo do
ministério de Jesus na Galileia que, por sinal, combina muito bem com o início
da Quaresma, pois contém o explícito convite à conversão, o fio condutor de
toda a espiritualidade quaresmal. Por isso, o evangelho de hoje é Mc 1,12-15.
Apesar de breve, é um texto bastante rico teologicamente, e de grande valor
catequético para o percurso de preparação à Páscoa do Senhor. É surpreendente a
capacidade de síntese do evangelista Marcos: em apenas quatro versículos, ele
consegue transmitir muita coisa da vida de Jesus; claro que sob uma perspectiva
catequética e teológica, e não propriamente histórica. Antes de nos determos
diretamente no texto, é necessário fazer algumas considerações a respeito do
contexto em que está inserido, recordando os eventos antecedentes. O episódio
que o precede de imediato é o batismo de Jesus por João no Jordão (Mc 1,9-11).
Enquanto realizava sua missão de batizador, João havia anunciado que viria
alguém “mais forte” do que ele, o qual batizaria no Espírito Santo (vv. 7-8).
De fato, veio esse “mais forte”, que foi batizado por João (v. 9), e sobre ele
o Espírito se manifestou em forma de pomba (v. 10), e foi declarado pelo Pai
como o “Filho Amado” que lhe dá prazer (v. 11). O texto de hoje é a sequência
imediata desta série de eventos e sinais introdutórios da missão de Jesus.
Eis o início do texto: «logo
o Espírito levou Jesus para o deserto» (v. 12). A versão litúrgica omitiu o
advérbio “logo” ou “imediatamente” (em grego: εύθύς – euthis), mas é importante recordar, pois sua
ausência compromete um pouco o sentido do texto, porque esconde o caráter de
urgência e imediatez da ação do Espírito em impelir Jesus para o deserto. Por
sinal, o verbo empregado pelo evangelista é muito mais intenso do que “levar”,
que aparece na versão litúrgica; trata-se do verbo grego “ekbálo” (ἐκβάλλω), que significa empurrar,
atirar, impelir, lançar fora com força. Essas observações são importantes para
compreender a urgência do agir salvífico do Espírito e de Jesus. Significa que
não havia tempo a perder; a situação caótica do mundo não permitia esperar. E a
proclamação solene como “Filho Amado”, no batismo, não o isentou das provações
e contradições da vida. A ida ao deserto, obviamente, não é apenas um movimento
físico, mas um indicativo teológico. O deserto é um elemento de rico
significado para a tradição bíblica. Nesse texto indica, antes de tudo, que
Jesus está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e,
portanto, estará sujeito aos mesmos riscos e perigos pelos quais esse povo
passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra, e ao longo de toda a
história, incluindo os tempos obscuros de dominação e exploração romana. Assim,
também o caminho de Jesus até a cruz e ressurreição será marcado por perigos e
provas. Há, portanto, uma verdadeira pedagogia do deserto na Bíblia, e Jesus a
atualiza com este episódio.
Embora o deserto evoque
provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus. Por isso,
quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade
de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,16). A
experiência do deserto na vida de Jesus representa, portanto, uma confirmação
da sua condição de “Filho Amado” do Pai: «E ele ficou no deserto durante
quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás» (v. 13a). Associando deserto à
provação, o evangelista chama a atenção da sua comunidade para um aspecto muito
importante da vida cristã: deixar-se conduzir pelo Espírito não torna a pessoa
imune às tentações e dificuldades que a vida apresenta. O tempo de permanência
no deserto – quarenta dias – também possui um rico simbolismo na Bíblia. É uma
clara alusão à experiência do êxodo, marcada por quarenta anos de caminhada no
deserto (Nm 32,13; Dt 8,2), mas também a outros acontecimentos importantes do
Antigo Testamento, como a duração do dilúvio de quarenta dias e quarenta noites
(Gn 7,4.12.17), a caminhada de Elias rumo ao monte Horeb (1Rs 19,8), e outros.
Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel,
esse número quer dizer uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma
geração. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova, e
assim é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos a uma
vida vigilante sem jamais cair em comodismos. Quer dizer que a Igreja não pode,
em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto,
principalmente quando ofertado pelos detentores de poder.
O tentador, segundo Marcos,
é Satanás (em grego: σατανάς), e significa o adversário,
aquele que se opõe ao plano de Deus. Não é um indivíduo ou um ser específico,
mas toda e qualquer realidade adversa ao Reino de Deus. A vida cristã é um
confronto constante com essa realidade. No decorrer do Evangelho, o adversário
de Jesus assumirá diversos rostos: os fariseus, a hierarquia religiosa de
Jerusalém, o poder político romano e até mesmo os seus discípulos (Mc 8,33),
quando Pedro será explicitamente chamado de satanás e pedra de tropeço por
opor-se aos propósitos do Reino de Deus. É importante também perceber que, ao
contrário de Mateus e Lucas, Marcos não faz a mínima referência ao conteúdo das
tentações, nem à quantidade e nem ao jejum praticado por Jesus; ao invés de
empobrecer, esse dado só enriquece o seu relato. Ora, ao não descrever em
pormenores essa realidade simbólica, o evangelista ajuda sua comunidade a não
idealizar nem fantasiar uma cena, mas enfatiza que as tentações são
imprevisíveis e indescritíveis porque são muitas e, portanto, não podem ser catalogadas
ou delimitadas; a qualquer momento podem surgir, e isso durante toda a vida. De
fato, sendo apresentadas logo no início da vida pública de Jesus, as tentações
funcionam como um ensaio, indicando, assim, que durante toda a sua vida ele foi
tentado, ou seja, posto à prova.
A segunda parte do versículo
evoca a superação da prova com a conquista da paz messiânica: «Vivia entre
os animais selvagens, e os anjos o serviam» (v. 13b). Ao invés da expressão
animais selvagens, a palavra “feras” corresponde melhor ao termo empregado na
língua original do texto (em grego: θερίων– therion). Inclusive, evidencia melhor o contraste com anjos. A
convivência de Jesus entre as feras é um dado exclusivo de Marcos, enquanto o
dado do serviço dos anjos é compartilhado também por Mateus (Mt 4,11). Lucas
omite os dois dados. A presença das feras junto a Jesus significa que o antigo
sonho profético de harmonia entre todos os elementos da criação é plenamente
recuperado e realizado. Aquilo que fora sonhado durante muitos séculos por
tantas gerações, tem em Jesus a oportunidade de ser realizado. A presença de
Jesus entre feras e anjos significa sua missão de reconciliar o mundo consigo
mesmo e com Deus. Jesus é habilitado pelo Pai, como “Filho Amado”, para
combater as forças do mal e vencê-las pelo amor, fazendo acontecer a nova
humanidade, instaurando, de fato, os “novos céus e nova terra” (Is 11,1-9). O
serviço dos anjos quer dizer a adesão ao Reino da parte daqueles que
compreendem a centralidade do Evangelho: servir por amor é o triunfo do bem.
Feras e anjos juntos, tendo Jesus ao centro, significa a convivência pacífica
entre todos os seres, por mais diferentes que sejam. É a criação recuperando
sua ordem original. É imagem do mundo humanizado pelo Evangelho. As forças do
mal já não têm o que fazer, se tornam impotentes quando o bem é abraçado e se
faz serviço. A ida de Jesus pelo deserto é, portanto, uma antecipação e síntese
de toda a sua vida. Quer dizer que o seu programa consiste no combate ao mal e
a instauração definitiva do bem, cujo resultado é a plena humanização do mundo.
Aquilo que parecia apenas um
ideal romântico, começa a concretizar-se com o anúncio do Evangelho e a
instauração do Reino de Deus. Por isso, o evangelista afirmar que «Depois
que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de
Deus» (v. 14). Temos aqui um divisor de águas na vida de Jesus: sendo
comandada por Herodes (cf. Mc 6,17), a prisão de João se torna um apelo urgente
para a instauração do Reino de Deus; é um triunfo temporário de satanás, o
adversário, personificado no algoz do Batista, que precisa urgentemente ser
combatido. A ação de satanás se torna evidente quando o sistema dominante
oprime e mata. Quem se deixa conduzir pelo Espírito, não pode assistir
passivamente a essa realidade. Por isso, Jesus entra em cena com seu anúncio do
Evangelho de Deus. Evangelho, cujo significado literal é boa notícia,
significa, em Marcos, tanto o conteúdo da pregação de Jesus quanto ele mesmo; o
que Jesus diz é boa notícia, e a sua pessoa é a grande boa notícia de Deus à
humanidade. E a luta contra o mal empreendida por Jesus não se dará pela força,
nem pelo poder, mas pelo anúncio do “Evangelho de Deus”, ou seja, pelo seu
jeito mesmo de ser e de viver. E ele mesmo é o Evangelho de Deus, enquanto
Filho, enviado para humanizar o mundo, mediante sua mensagem e, sobretudo, o
estilo de vida. Por isso, o Evangelho de Deus e o Evangelho de Jesus são uma
coisa só, porque é a sua própria pessoa. É Jesus de Nazaré, aquele passou a
vida fazendo o bem ( At 10,38).
A pregação de Jesus
consistia no anúncio do Reino de Deus e o convite à conversão: «O tempo já
se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no
Evangelho» (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na
pregação de Jesus. Aqui, o evangelista se refere ao tempo com o termo grego
kairós (καιρός), que não significa o tempo
cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não
pode ser desperdiçada. É o tempo que os profetas do Antigo Testamento tanto
sonharam. E o inaugurador desse tempo é Jesus. De fato, em um mundo insuportável,
marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas
totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia
ser desperdiçada e nem adiada. E esse mundo novo é o Reino de Deus, o conteúdo
da pregação de Jesus, que consiste exatamente na alternativa de mundo e
sociedade ao sistema vigente na época. É claro que essa proposta continua é
válida para todos os tempos.
Não é fácil dar uma
definição completa e precisa de Reino de Deus. Nem os evangelhos dão, apesar
das inúmeras referências que fazem. O próprio Jesus, quando fala do Reino de
Deus não o faz a partir de conceitos, mas com parábolas, que têm a função de
tornar o ensinamento mais acessível e, ao mesmo tempo, manter um certo
mistério. Contudo, é certo que o Reino de Deus não é uma promessa de esperança
para um bem-estar futuro, não é uma promessa para o além, mas a proposta de
Deus para o hoje da história. No Pai-nosso, a oração cristã por excelência, não
se pede para alcançar o Reino no futuro, mas que o Reino venha até nós. Logo,
trata-se de algo concreto e urgente. A instauração do Reino consiste na
transformação deste mundo num mundo novo, numa sociedade com novas relações,
baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcado pela
igualdade e fraternidade. Resumindo, podemos dizer que a o Reino é a realização
do projeto libertador de Deus no mundo, que consiste, acima de tudo, num mundo
humanizado. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em
pessoa. Aqui, mais do que a temporalidade do Reino, a proximidade exprime a
materialidade. A presença de Jesus no mundo significa que o Reino de Deus
começou a ser construído. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo
modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o
Reino, de fato, chegou.
Para participar do Reino não
são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao
Evangelho. A participação na comunidade da antiga aliança, por exemplo,
dependia de questões genealógica e étnica, além da observação minuciosa de
inúmeros preceitos. O Reino de Deus comporta uma lógica diferente, tendo como
condição a adesão ao imperativo «Convertei-vos e crede no Evangelho» (v.
15a). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus.
Converter-se e crer no Evangelho é, portanto, uma atitude contínua. Ora,
converter-se não significa assimilar um rito, nem intensificar as práticas
penitenciais e devocionais; não significa tornar-se uma pessoa mais religiosa.
Conversão significa mudança radical de mentalidade, que envolve o jeito de ser,
de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida
da pessoa pela adesão ao Evangelho, cujo resultado concreto é a assimilação do
estilo de vida de Jesus de Nazaré. E crer no Evangelho, por consequência,
significa aceitar e aderir ao projeto libertador de Deus por meio de Jesus
Cristo, fazendo opções iguais às dele.
A Quaresma, portanto, mais
do que um tempo, é um caminho oportuno para a conversão e a renovação das
convicções do seguimento de Jesus e da adesão ao seu projeto de Reino que,
desde o primeiro momento, se mostra incompatível com os reinos deste mundo. Por
isso, para abraçá-lo é necessário converter-se e crer no Evangelho. E para
ajudar a trilhar esse caminho com mais fidelidade, a Igreja no Brasil oferece a
Campanha da Fraternidade como instrumento de vivência da espiritualidade
quaresmal e oportunidade de reflexão sobre a amizade, neste ano. É da fraternidade
que emana a amizade. O cultivo da amizade significa o aprofundamento da fraternidade.
Jesus quer que seus discípulos e discípulas sejam, acima de tudo, irmãos e
irmãs uns dos outros e de todas as pessoas.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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