sexta-feira, fevereiro 09, 2024

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 1,40-45 (ANO B)

Com a liturgia deste sexto domingo do tempo comum, concluímos a leitura do primeiro capítulo do Evangelho de Marcos. Estamos acompanhando ainda os primeiros passos do ministério de Jesus na Galileia. O texto proposto para hoje – Mc 1,40-45 – apresenta continuidade com o episódio anterior e, ao mesmo tempo, novidade, de modo que podemos perceber uma certa evolução na atuação de Jesus, com uma abertura cada vez maior em relação aos destinatários da sua ação libertadora. Além da expansão geográfica do seu agir, a intensidade da ação relatada no texto de hoje também evidencia essa evolução: da expulsão de um espírito mau (Mc 1,21-28 – evangelho do 4º domingo), passou à cura de uma mulher com febre, a sogra de Pedro (Mc 1,29-39 – evangelho do 5º domingo), e hoje chega à cura de um leproso. Considerando a gravidade da lepra para a época, podemos considerar o evangelho de hoje como ápice desta primeira fase do ministério de Jesus. Ele começa demonstrando autoridade ao intervir questões mais simples, como a realização de um exorcismo, até a libertação de um mal sem cura, como era considerada a lepra. Esse mesmo episódio é contado também pelos outros sinóticos (Mt 8,1-4; Lc 5,12-14), mas a versão de Marcos é mais rica, tanto pela maneira de contá-lo quanto pela posição que ocupa no conjunto do Evangelho. Com a liturgia de hoje, conclui-se a primeira etapa sequenciada da Leitura dominical do Evangelho de Marcos, que será interrompida no próximo domingo, o primeiro da Quaresma, e retornará de maneira semi-contínua somente após a conclusão do ciclo pascal.

Até então, a atuação de Jesus tinha se desenvolvido no âmbito do espaço urbano, ou seja, dentro da cidade de Cafarnaum: pregação e exorcismo na sinagoga (Mc 1,21-28) e cura na casa de Simão (Mc 1,29-34). Isso levou os discípulos à tentação do comodismo, propondo a centralização e a fixação da atividade de Jesus em um espaço delimitado, devido ao aparente sucesso inicial (Mc 1,28.37). Diante da proposta absurda dos discípulos, Jesus propôs a descentralização, com o deslocamento para as margens, as periferias, como se pode concluir por esta afirmação: «Vamos a outros lugares, às aldeias da redondeza! Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim» (Mc 1,38). O evangelho de hoje mostra, portanto, a ação de Jesus “em outros lugares”, comunicando vida, libertação e humanização, já que era impossível encontrar-se com um leproso dentro da cidade, uma vez que a Lei determinava o seu isolamento total: «Enquanto durar a sua enfermidade, o leproso ficará impuro e, estando impuro, morará à parte: sua habitação será fora do acampamento» (Lv 13,46). E, geralmente, a lepra durava a vida toda, levando o enfermo à morte, de modo que, quando ao alguém se afastava da família e da comunidade por causa da lepra, significava uma antecipação da morte, pois dificilmente ela voltava. Podemos, então, perceber como a ação libertadora de Jesus vai ganhando novas dimensões: sinagoga – casa – terreiro da casa – outros lugares; assim, o universalismo do Reino já pode ser sentido, bem como as bases fundamentais de uma Igreja em saída. Dizendo não ao comodismo dos discípulos, Jesus propõe a coragem para arriscar-se, a disposição para conviver com as diferenças e viver ao revés das regras de comportamento convencionais impostas pela religião e adotadas pela sociedade como normais. O evangelho de hoje deixa isso muito claro, ao narrar o encontro de Jesus com o leproso. O cenário desse episódio, portanto, é o campo, um lugar a céu aberto, afastado de qualquer cidade ou povoado.

Olhemos, então, para o texto: «Um leproso chegou perto de Jesus, e de joelhos pediu: ‘Se queres, tens o poder de curar-me’» (v. 40). De acordo com esse primeiro versículo, já percebemos um encontro de duas pessoas rebeldes, subversivas. Se Jesus tivesse permanecido no âmbito da sinagoga ou até mesmo da casa, um encontro como esse jamais aconteceria, pois o leproso não podia entrar em nenhuma das duas. A rebeldia do leproso é motivada pela necessidade; a de Jesus é pelo amor. Ora, de acordo com a Lei, tanto Jesus quanto o leproso deveriam evitar-se mutuamente, cada um se distanciando ao máximo possível do outro. Nem o leproso deveria aproximar-se, nem Jesus deveria permitir que o leproso chegasse perto dele. Porém, os dois resolveram transgredir, praticando ambos um gesto de grande rebeldia. A Lei determinava que o leproso deveria ficar longe do convívio social, fora do acampamento, ou seja, longe da comunidade, e até gritar “impuro!”, como aviso, em caso de alguém aproximar-se (Lv 13,45-46). Ao permitir que o leproso se aproxime, Jesus conquista a sua confiança, fazendo o que, certamente, ninguém tinha feito ainda. Com muita liberdade, o leproso faz um pedido em forma de confissão. Na verdade, ele nem sequer pede a cura, apenas sugere que Jesus pode purificá-lo. A tradução litúrgica empobrece um pouco o sentido do texto trocando o verbo purificar por curar. O que o leproso deseja é ser purificado. Por isso, a melhor tradução seria: «Se queres, podes me purificar». Como se vê, não é propriamente um pedido, mas um reconhecimento da força de Jesus. Assim, o leproso se torna modelo do verdadeiro crente: aquele que expressa a sua necessidade, sem forçar, sem querer determinar o agir de Deus, mas respeitando a sua liberdade, ao dizer «se queres». Ser purificado, naquele contexto, significava voltar a ser reconhecido como gente; era se libertar de todos os estigmas excludentes e segregadores que a lepra comportava; era ser admitido novamente na convivência e na vida da comunidade.

Jesus não resiste às necessidades da pessoa que vai ao seu encontro com sinceridade e desejo de libertação. E ele também faz a sua parte, ao permitir o encontro. Por isso, diz o texto que, «cheio de compaixão, estendeu a mão, tocou nele, e disse: “Eu quero: fica purificado!» (v. 42). Jesus quer que o homem seja “purificado”, ou seja, readmitido à convivência humana, que ele saia da situação de negação da vida em que se encontra. Compaixão é a resposta de Deus às situações de negação e ausência do seu projeto de vida; é um amor tão profundo, a ponto de fazer «contorcer as vísceras», quer dizer um amor que mexe com o mais profundo do seu ser. Essa resposta nunca é apenas sentimental, mas é ação, é promoção de vida em abundância. É interessante a descrição da ação: «estendeu a mão, tocou nele». O gesto de estender a mão significa o cumprimento de uma ação salvífica por excelência: é Deus doando sua força em benefício do seu povo, tirando-o da opressão, de acordo com a linguagem do Antigo Testamento (Ex 13,16; Is 41,13; Sl 136,12; etc.). É prova do amor e cuidado de Deus para com a humanidade. Jesus poderia ter reagido ao leproso apenas com palavras e curá-lo, com sua autoridade, sem necessariamente tocá-lo. Mas antes de demonstrar poder, demonstra compaixão, cria laços, toca, quer dizer, se envolve com a situação. É o seu jeito de se relacionar, de amar, por isso, cura. Não cura por meio de decretos, mas tocando nas pessoas com suas feridas e dores. Tocando, ele sente como sua a dor do outro, comprometendo seus seguidores de todos os tempos a fazer o mesmo. Neste caso, o toque de Jesus é ainda mais significativo, pois, segundo a Lei, quem tocava um leproso ficava impuro também. Mas Jesus não se importa com isso. Nenhuma norma impedia ele de relacionar-se com uma pessoa marginalizada. E ele não sossegava enquanto não resgatava tal pessoa.

Como tocar num leproso era um gesto extremamente proibido pela Lei, com esse gesto, Jesus desobedece com muita liberdade, ensinando que o bem do ser humano está acima de qualquer preceito e doutrina. Movido por compaixão, tendo tocado com a mão, Jesus sentiu de fato a necessidade daquele homem, e expressou sua vontade com palavras: «Eu quero: fica purificado»E como as palavras de Jesus são cheias de vida e de amor, eis que «no mesmo instante, a lepra desapareceu e ele ficou purificado» (v. 43). Jesus anuncia palavras de vida e libertação, e é isso o que ele faz acontecer. Dizer que o leproso ficou purificado é o mesmo que dizer que ele ficou apto para a convivência, foi reintegrado à comunidade, teve sua dignidade restituída, o que significa muito mais do que a cura física. Livrou-se de um estigma condenatório. Aqui, mais uma vez, o evangelista usa o verbo “purificar” (em grego: καταριζω - katarízo); aliás, de acordo com o original, em nenhum momento vem mencionada a palavra “cura”, nem o verbo “curar” nesse texto. Isso evidencia ainda mais o interesse do evangelista pela dimensão social e comunitária da ação de Jesus. O mais importante é despertar na comunidade do evangelista e na comunidade cristã de todos os tempos a necessidade de promover ações de restauração, inclusão e promoção da dignidade humana. No Antigo Testamento, há somente dois casos de cura da lepra: o de Mírian, irmã de Moisés (Nm 12), e o de Naamã, general do exército de Aram (2Rs 5); ambos se dão pela mediação de Moisés e de Eliseu, respectivamente. Mas nenhum se aproxima do que faz Jesus aqui; sua maneira de agir e de cuidar do outro é única. Inclusive, essa é a única cura de leproso no Evangelho de Marcos, o que enriquece o episódio ainda mais.

Ao transgredir a Lei de maneira tão explícita, Jesus passa a correr riscos, mas não se intimida com isso. Na verdade, ele pede silêncio ao homem que fora purificado por precaução de má compreensão na sua mensagem: «Então Jesus o mandou logo embora, falando com firmeza: ‘Não contes nada disso a ninguém!’» (v. 44a). Jesus tem pressa com a libertação das pessoas, por isso mandou logo o homem ir embora. Certamente, aquele homem já tinha perdido muito tempo da existência vivendo segregado, excluído da convivência. Por isso, devia voltar o quanto antes para a comunidade. Jesus também não queria ser confundido com um milagreiro. Queria evitar concepções triunfalistas a respeito da sua imagem e do seu messianismo. Por isso, pediu que o homem não contasse nada a ninguém. Aliás, o chamado “segredo messiânico” é um dos principais temas teológicos do Evangelho de Marcos. Esse segredo será revelado somente na cruz. De fato, a cruz é o traço distintivo principal da messianidade de Jesus, escapando de todos os esquemas messiânicos alimentados ao longo dos séculos em Israel. Ora, no decorrer do ministério de Jesus, as pessoas, incluindo os discípulos, perceberão traços parciais da sua messianidade, à medida em que contemplam seu agir humanizante, libertador. No contexto narrativo da obra, além de tema teológico, o segredo expressa uma preocupação do evangelista com a vida da comunidade, que deve esforçar-se ao máximo possível para não apresentar uma imagem equivocada de Jesus, da mesma forma que Jesus não queria ser confundido com o Messias triunfalista e poderoso das expectativas dos seus contemporâneos.

Além do silêncio, Jesus dá uma segunda ordem ao homem recém-purificado: «Vai, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua purificação, o que Moisés ordenou, como prova contra eles!» (v. 44b). Assim como eram os sacerdotes quem diagnosticavam se a pessoa tinha lepra, para afastá-la do convívio social, também eram eles quem atestavam se a pessoa estava purificada ou não. Porém, a lepra era considerada um mal sem cura, era praticamente impossível alguém livrar-se dela, de modo que o leproso era um “morto vivo”. Com essa ordem, Jesus está, na verdade, provocando os sacerdotes e a religião da época, mostrando que a palavra final sobre a vida das pessoas já não é mais a deles. Jesus corta o mal pela raiz, deixando desconcertados aqueles que viviam de identificar o mal na vida dos outros. O próprio texto indica a ironia de Jesus: «como prova contra eles!». Jesus quer que eles mesmos, os sacerdotes, reconheçam que já não tem mais autoridade sobre a vida; o poder daquele sistema começava a desmoronar. É claro a ordem expressa também seu desejo de ver o homem readmitido na comunidade e na convivência social e, para isso, precisava da declaração do sacerdote. Há, portanto, necessidade e provocação, ao mesmo tempo, na ordem de Jesus.

O pedido de silêncio que Jesus faz nunca é atendido. Quando mais ele pedia segredo, mais a Boa Notícia do Reino anunciada por ele se espalhava. Eis, então, a atitude do ex-leproso: «Ele foi e começou a contar e a divulgar muito o fato» (v. 45a). De fato, Jesus pede algo quase impossível: como silenciar diante de maravilhas tão grandes, coisas nunca vistas antes? Como não irradiar a felicidade de contemplar o Reino de Deus sendo instaurado? Na lógica do Reino, quem recebe se torna doador; aquele que era considerado imundo, se torna evangelizador, após ser humanizado, restaurado em sua plena dignidade.  Apesar do risco de distorção, o anúncio das obras de Jesus fluía com facilidade. Era impossível abafar os sinais da chegada do Reino de Deus no coração das pessoas marginalizadas das periferias da Galileia. Isso lhe trazia consequências, obviamente, até positivas, inicialmente, pois levava mais pessoas a encontrar-se com ele e, assim, recuperavam o sentido da vida, sendo humanizadas, libertadas e emancipadas. Mas ele tinha precauções em relação a isso, como diz o evangelista: «Por isso Jesus não podia mais entrar publicamente numa cidade: ficava fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo» (v. 45b). Ele evitava as cidades e procurava lugares desertos porque sua fama aumentava cada vez mais, o que ele não queria; e sua vida começava a correr perigo. Esse afastamento se tornava providencial: quanto mais longe dos centros de poder, mais pessoas impuras poderiam aproximar-se dele. Quanto mais afastado das pessoas consideradas puras, mais os considerados impuros chegariam perto. A religião segregadora rotulava pessoas doentes de impuras e as expulsava para os lugares desertos e afastados, fora das cidades e aldeias. Propositadamente Jesus ia a estes lugares levando vida, amor, acolhimento, justiça e libertação.

Assim como a comunidade de Marcos, também nós, cristãos de hoje, somos interpelados pelo evangelho a promover libertação, a colocar o bem do ser humano acima de qualquer norma e doutrina. Para isso, é necessário ir sempre aos outros lugares, aos desertos de hoje, as periferias existenciais, onde estão aqueles e aquelas a quem a religião e a sociedade disseram que não tem mais jeito, já não servem mais para nada. São essas pessoas que mais precisam conhecer o Deus amoroso que Jesus revelou, e somente quem tem intimidade com esse Deus pode acolher e compreender bem essas pessoas, consciente ou não.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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