A liturgia deste quarto
domingo da Quaresma continua a sequência de leituras do Evangelho segundo João,
iniciada no domingo passado. Naquela ocasião, o texto lido fora o relato do
gesto profético de Jesus, denunciando a situação do templo transformado em
comércio e a consequente mercantilização do sagrado (Jo 2,13-25). O episódio
relatado no texto de hoje – Jo 3,14-21 – faz parte dos desdobramentos daquele
episódio. Trata-se do famoso encontro entre Jesus e Nicodemos. É um texto
extremamente importante para o conjunto do Quarto Evangelho, tanto no plano
teológico quanto no narrativo. É a abertura de uma série de três encontros
decisivos de Jesus com personagens que representam três mundos (culturas)
diferentes: 1) Nicodemos, representante da mais genuína fé judaica; 2) a mulher
samaritana, representante do sincretismo (Jo 4,1-42); e 3) o funcionário real,
representante do mundo pagão (Jo 4,46-54). Interligados, esses três encontros
culminam na realização do segundo sinal de Jesus no Quarto Evangelho, que é a
cura do filho do funcionário real (Jo 4,46-54). Dos três personagens, somente
Nicodemos é chamado pelo nome, cujo significado é “vitória do povo”.
A enérgica denúncia de Jesus
contra a situação do templo e de toda a elite religiosa de Jerusalém deve ter
gerado muitos questionamentos e curiosidades sobre a sua pessoa, além de ira da
parte dos dirigentes. Muitos, certamente, se enfureceram, outros refletiram a
respeito do acontecido. Não resta dúvidas de que entre os fariseus e mestres da
época também havia aqueles que sonhavam com uma religião mais autêntica, mais
fiel ao ideal da aliança e menos mercantilizada. Certamente, Nicodemos era um
destes; ao invés de condenar Jesus, preferiu ir ao seu encontro e escutá-lo,
motivado por muitos questionamentos e dúvidas. Como o texto escolhido pela
liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há palavras de Nicodemos,
mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar alguns aspectos
importantes do que o antecede. O evangelista diz que Nicodemos era um homem
notável entre os judeus, um fariseu (3,1) e, certamente, um bom conhecedor da
doutrina judaica, sobretudo da Lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (3,2).
Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de
conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril
religião. Mesmo assim ele não estava pronto para aderir totalmente ao projeto
de Jesus, pelo menos de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus
com quem Jesus se confrontou ao longo do seu ministério.
A ida de Nicodemos ao
encontro de Jesus à noite tem recebido diversas explicações, ao longo da complexa
história da interpretação do Quarto Evangelho. A maioria dos estudiosos
acredita que ele procurou Jesus à noite por prudência, com medo de ser
criticado pelos seus colegas de doutrina, afinal, Jesus não era visto como boa
companhia para as pessoas mais devotas da época. E o gesto profético no templo,
desmascarando a hipocrisia da instituição religiosa, dera prova disso (2,13-22),
contribuindo decisivamente para o rótulo de agitador e subversivo. Outros vêem
o encontro à noite como uma imagem da situação de Nicodemos: enquanto apegado à
doutrina e à Lei, ele estava longe da luz, que é o próprio Jesus. Nesse caso, a
noite representa o estado de trevas em que Nicodemos se encontrava. Por sinal,
o paradoxo trevas-luz e vice-versa é muito importante para a teologia de João;
isso é evidenciado desde o prólogo (Jo 1,1-18). No respectivo poema de abertura
do seu Evangelho, João apresenta Jesus como o Verbo encarnado e luz, que veio
ao mundo para vencer as trevas e iluminar a humanidade inteira, porém as trevas
não a acolheram (Jo 1,5.9). Nicodemos estaria, portanto, imerso no mundo das
trevas, mas insatisfeito e desejoso de ser iluminado. Por isso, procurou Jesus,
reconhecendo-o, implicitamente, como fonte de luz, mesmo num estágio
embrionário de um caminho de fé. Inclusive, as primeiras palavras de Nicodemos
a Jesus foram de reconhecimento de sua procedência divina: «Rabi,
sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os
sinais que fazes, se Deus não estiver com ele» (3,2). Essas poucas
palavras de Nicodemos abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a
respeito da sua identidade, sua relação com o Pai e sobre como o ser humano
pode participar da vida em plenitude que Ele veio comunicar.
O trecho selecionado para a
liturgia começa com um dado das Escrituras aplicado por Jesus a si mesmo: «Do
mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o
Filho do Homem seja levantado» (v. 14). Ora, sabendo que Nicodemos
conhecia bem a Escritura, afinal, era um fariseu de destaque, Jesus cita
explicitamente um episódio do livro dos Números (Nm 21,4-9), para ilustrar o
movimento de descida e subida ao céu realizado por Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao
mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender como será a sua
elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. Por sinal, essa é a
primeira afirmação da elevação de Jesus no Evangelho de João acerca da sua
elevação, e chama a atenção porque estamos ainda no início do livro. Se trata
de um acontecimento tão indispensável para o seu plano salvífico, que ele
começa a preparar a comunidade dos seus seguidores desde cedo. A citação do
livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio
evangelista insistindo com a sua comunidade para que aceite a cruz, pois, como
consequência do amor, ela faz parte da vida conforme o programa de Jesus. Ser
levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida
em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável. Porém, Ele não escolheu a
cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso
implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário «Para
que todos os que nele crerem tenham a vida eterna» (v. 15). O
importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a
primeira vez que é mencionada a “vida eterna” no Quarto Evangelho. Crer
nele não significa expressar uma fórmula de fé, mas deixar-se guiar pelo seu
ensinamento e assumir a sua forma de vida.
Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo
tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que
é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu
Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida
eterna» (v. 16). Há estudiosos que consideram essa afirmação de Jesus
o coração do Quarto Evangelho e de toda a teologia de tradição joanina (1Jo
4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos verbos mais importantes do respectivo
Evangelho, a saber, os verbos amar (em grego: ἀγαπάω – agapáo), dar ou oferecer (em
grego: δίδωμι – didomi). Por meio deles, o
autor reforça a gratuidade do amor de Deus pelo mundo. É um Deus que só tem
amor para oferecer ao mundo, e o faz de modo livro e gratuito, exatamente
porque ama infinitamente. E o mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse
mundo é a humanidade inteira. Com essa afirmação, Jesus toca numa ferida para
os judeus mais devotos, pois declara o fim do exclusivismo de Israel como
destinatário do amor e das promessas de Deus. Com Jesus, a pertença a Deus
deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade
inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: foi
Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação «Deus
amou o mundo» é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto
Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom, a qualidade
da sua oferta: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se
estabeleça na humanidade a vida eterna.
É importante recordar e
jamais esquecer que «Deus deu o seu Filho» para a humanidade. Quer
dizer que o mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe
e crê, recebe a vida eterna. Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental
empregado neste versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia
joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas principais
do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes (vv. 15 e
16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé, crer
significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua mensagem
libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a própria
existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna, não
significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a
duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo,
a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no
futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se
torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de
Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la.
E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será destruída nem com
a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência,
ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado
quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador, cujo exemplo
completo é Jesus de Nazaré.
O versículo seguinte reforça
o anterior: «De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o
mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior
(v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz
o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma
pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo
“condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo
“julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o
efeito do julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa
exatamente julgar (em grego: κρίνω – krino). Portanto, Deus não enviou seu Filho nem
mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, nem
sequer julga e, portanto, não condena ninguém. Mais uma vez Jesus contradiz a
ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem
esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os
puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não
poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai cheio de amor,
apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho.
Quem julga e condena são os
próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em
nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus
apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair
amor. O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à
humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida
se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu
amor. Por isso, Jesus disse: «Quem nele crê não é condenado,
mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho
unigênito» (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em
plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e,
portanto, estará condenado. E isso não é fruto de um juízo divino, mas escolha
do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a
fazer comunhão com ele.
Os versículos seguintes (vv.
19-21) apenas ilustram e constatam uma triste realidade: a tendência da
humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o que o evangelista já tinha
anunciado no prólogo (Jo 1,9-10). «Ora, o julgamento é este: a luz veio ao
mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más»
(v. 19). Novamente, fala-se de um julgamento, mas não se apresenta Deus como
juiz, pois a modalidade do julgamento corresponde à atitude interior de cada
pessoa ao acolher ou rejeitar a luz que é Jesus. E é o próprio Jesus quem
constata que, enquanto luz, ele foi rejeitado. E quem rejeitou a luz foi a
própria religião que tinha transformado Deus em mercadoria, ao fazer da sua
casa um comércio. Por isso, foram as pessoas religiosas que mais se sentiram
sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as
trevas, odiou a luz por ter aversão à verdade. De fato, «Quem pratica o mal
odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas»
(v. 20). E foi isso que aconteceu, conforme Jesus denunciou e continua
acontecendo, inclusive por grupos que reivindicam a condição de seus seguidores.
Não obstante a rejeição, a luz como sinônimo de vida em plenitude não deixa de
ser ofertada. Aceitar o maior dom do Pai, que é o seu próprio Filho, não
significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao
longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é
livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de
consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é
sempre positiva. Ele não julga, nem condena.
O Evangelho não diz se Jesus
conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais
dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos
fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (Jo 7,50) e ajudando
no seu sepultamento (Jo 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu.
Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros
olhos aquela rígida doutrina judaica e, certamente, amadureceu sua resposta com
o tempo. Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai cheio de amor que
Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem
acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões:
juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus
é somente amor pode ser o maior fruto de conversão de uma Quaresma.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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