sexta-feira, março 08, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA QUARESMA – JOÃO 3,14-21 (ANO B)

 


A liturgia deste quarto domingo da Quaresma continua a sequência de leituras do Evangelho segundo João, iniciada no domingo passado. Naquela ocasião, o texto lido fora o relato do gesto profético de Jesus, denunciando a situação do templo transformado em comércio e a consequente mercantilização do sagrado (Jo 2,13-25). O episódio relatado no texto de hoje – Jo 3,14-21 – faz parte dos desdobramentos daquele episódio. Trata-se do famoso encontro entre Jesus e Nicodemos. É um texto extremamente importante para o conjunto do Quarto Evangelho, tanto no plano teológico quanto no narrativo. É a abertura de uma série de três encontros decisivos de Jesus com personagens que representam três mundos (culturas) diferentes: 1) Nicodemos, representante da mais genuína fé judaica; 2) a mulher samaritana, representante do sincretismo (Jo 4,1-42); e 3) o funcionário real, representante do mundo pagão (Jo 4,46-54). Interligados, esses três encontros culminam na realização do segundo sinal de Jesus no Quarto Evangelho, que é a cura do filho do funcionário real (Jo 4,46-54). Dos três personagens, somente Nicodemos é chamado pelo nome, cujo significado é “vitória do povo”.

A enérgica denúncia de Jesus contra a situação do templo e de toda a elite religiosa de Jerusalém deve ter gerado muitos questionamentos e curiosidades sobre a sua pessoa, além de ira da parte dos dirigentes. Muitos, certamente, se enfureceram, outros refletiram a respeito do acontecido. Não resta dúvidas de que entre os fariseus e mestres da época também havia aqueles que sonhavam com uma religião mais autêntica, mais fiel ao ideal da aliança e menos mercantilizada. Certamente, Nicodemos era um destes; ao invés de condenar Jesus, preferiu ir ao seu encontro e escutá-lo, motivado por muitos questionamentos e dúvidas. Como o texto escolhido pela liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há palavras de Nicodemos, mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar alguns aspectos importantes do que o antecede. O evangelista diz que Nicodemos era um homem notável entre os judeus, um fariseu (3,1) e, certamente, um bom conhecedor da doutrina judaica, sobretudo da Lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (3,2). Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo assim ele não estava pronto para aderir totalmente ao projeto de Jesus, pelo menos de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus com quem Jesus se confrontou ao longo do seu ministério.

A ida de Nicodemos ao encontro de Jesus à noite tem recebido diversas explicações, ao longo da complexa história da interpretação do Quarto Evangelho. A maioria dos estudiosos acredita que ele procurou Jesus à noite por prudência, com medo de ser criticado pelos seus colegas de doutrina, afinal, Jesus não era visto como boa companhia para as pessoas mais devotas da época. E o gesto profético no templo, desmascarando a hipocrisia da instituição religiosa, dera prova disso (2,13-22), contribuindo decisivamente para o rótulo de agitador e subversivo. Outros vêem o encontro à noite como uma imagem da situação de Nicodemos: enquanto apegado à doutrina e à Lei, ele estava longe da luz, que é o próprio Jesus. Nesse caso, a noite representa o estado de trevas em que Nicodemos se encontrava. Por sinal, o paradoxo trevas-luz e vice-versa é muito importante para a teologia de João; isso é evidenciado desde o prólogo (Jo 1,1-18). No respectivo poema de abertura do seu Evangelho, João apresenta Jesus como o Verbo encarnado e luz, que veio ao mundo para vencer as trevas e iluminar a humanidade inteira, porém as trevas não a acolheram (Jo 1,5.9). Nicodemos estaria, portanto, imerso no mundo das trevas, mas insatisfeito e desejoso de ser iluminado. Por isso, procurou Jesus, reconhecendo-o, implicitamente, como fonte de luz, mesmo num estágio embrionário de um caminho de fé. Inclusive, as primeiras palavras de Nicodemos a Jesus foram de reconhecimento de sua procedência divina: «Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele» (3,2). Essas poucas palavras de Nicodemos abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a respeito da sua identidade, sua relação com o Pai e sobre como o ser humano pode participar da vida em plenitude que Ele veio comunicar.

O trecho selecionado para a liturgia começa com um dado das Escrituras aplicado por Jesus a si mesmo: «Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado» (v. 14). Ora, sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, afinal, era um fariseu de destaque, Jesus cita explicitamente um episódio do livro dos Números (Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu realizado por Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender como será a sua elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. Por sinal, essa é a primeira afirmação da elevação de Jesus no Evangelho de João acerca da sua elevação, e chama a atenção porque estamos ainda no início do livro. Se trata de um acontecimento tão indispensável para o seu plano salvífico, que ele começa a preparar a comunidade dos seus seguidores desde cedo. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com a sua comunidade para que aceite a cruz, pois, como consequência do amor, ela faz parte da vida conforme o programa de Jesus. Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável. Porém, Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário «Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna» (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula de fé, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.

Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna» (v. 16). Há estudiosos que consideram essa afirmação de Jesus o coração do Quarto Evangelho e de toda a teologia de tradição joanina (1Jo 4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos verbos mais importantes do respectivo Evangelho, a saber, os verbos amar (em grego: ἀγαπάω agapáo), dar ou oferecer (em grego: δίδωμι didomi). Por meio deles, o autor reforça a gratuidade do amor de Deus pelo mundo. É um Deus que só tem amor para oferecer ao mundo, e o faz de modo livro e gratuito, exatamente porque ama infinitamente. E o mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Com essa afirmação, Jesus toca numa ferida para os judeus mais devotos, pois declara o fim do exclusivismo de Israel como destinatário do amor e das promessas de Deus. Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação «Deus amou o mundo» é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom, a qualidade da sua oferta: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que «Deus deu o seu Filho» para a humanidade. Quer dizer que o mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe e crê, recebe a vida eterna. Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental empregado neste versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas principais do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes (vv. 15 e 16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé, crer significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a própria existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo, a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será destruída nem com a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador, cujo exemplo completo é Jesus de Nazaré.

O versículo seguinte reforça o anterior: «De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa exatamente julgar (em grego: κρίνω – krino). Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, nem sequer julga e, portanto, não condena ninguém. Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai cheio de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho.

Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor. O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor.  Por isso, Jesus disse: «Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito» (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. E isso não é fruto de um juízo divino, mas escolha do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.

Os versículos seguintes (vv. 19-21) apenas ilustram e constatam uma triste realidade: a tendência da humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o que o evangelista já tinha anunciado no prólogo (Jo 1,9-10). «Ora, o julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más» (v. 19). Novamente, fala-se de um julgamento, mas não se apresenta Deus como juiz, pois a modalidade do julgamento corresponde à atitude interior de cada pessoa ao acolher ou rejeitar a luz que é Jesus. E é o próprio Jesus quem constata que, enquanto luz, ele foi rejeitado. E quem rejeitou a luz foi a própria religião que tinha transformado Deus em mercadoria, ao fazer da sua casa um comércio. Por isso, foram as pessoas religiosas que mais se sentiram sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as trevas, odiou a luz por ter aversão à verdade. De fato, «Quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas» (v. 20). E foi isso que aconteceu, conforme Jesus denunciou e continua acontecendo, inclusive por grupos que reivindicam a condição de seus seguidores. Não obstante a rejeição, a luz como sinônimo de vida em plenitude não deixa de ser ofertada. Aceitar o maior dom do Pai, que é o seu próprio Filho, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.

O Evangelho não diz se Jesus conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (Jo 7,50) e ajudando no seu sepultamento (Jo 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros olhos aquela rígida doutrina judaica e, certamente, amadureceu sua resposta com o tempo. Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai cheio de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus é somente amor pode ser o maior fruto de conversão de uma Quaresma.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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