A liturgia deste quinto domingo da Quaresma propõe novamente a leitura de um texto do Quarto Evangelho, concluindo a sequência iniciada no terceiro domingo. O texto lido hoje – Jo12,20-33 – ocupa uma posição privilegiada no conjunto da obra joanina. O episódio narrado funciona como transição entre o final da vida pública de Jesus e o início da narrativa da sua paixão, ou seja, serve de ponte entre o “Livro dos Sinais” (Jo 1–12) e o “Livro da Glória” (Jo 13–21), conforme a divisão clássica do Evangelho de João em duas partes. Junto com seus discípulos, Jesus já se encontra em Jerusalém para participar de mais uma “páscoa dos judeus” (11,55), sendo essa a última. Ao contrário dos sinóticos que mostram Jesus participando de uma única festa de Páscoa em Jerusalém, o Evangelho de João mostra ele participando pelo menos três vezes (Jo 2,23; 6,4; 11,55). Como sabemos, com a expressão “páscoa dos judeus” o evangelista denuncia que aquela festa já não pertencia mais a Deus, uma vez que, ao invés de ser celebração de libertação, transformou-se em instrumento de exploração, devido, sobretudo, à transformação do templo em “casa de comércio” (Jo 2,13-22). Por isso, para compreender melhor o evangelho de hoje é necessário ter em mente o episódio da denúncia dos vendedores no templo, lido e refletido no terceiro domingo. Ao denunciar a mercantilização de Deus, Jesus propôs a destruição do templo-edifício de pedras e se auto apresentou como o novo, verdadeiro e definitivo templo, decretando a completa falência daquela instituição religiosa.
Do primeiro
versículo do evangelho de hoje, percebemos o início da realização daquela
profecia: «Havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém
para adorar durante a festa» (v. 20). Com a expressão “alguns gregos”
o evangelista se refere, em primeiro lugar, aos estrangeiros simpatizantes do
judaísmo; eram pessoas que observavam a lei e sentiam-se adoradores do Deus de
Israel, mesmo sem o reconhecimento dos chefes. Por isso iam a Jerusalém para
adorá-lo, mesmo não sendo admitidos oficialmente na religião judaica. É também
uma declaração do universalismo da mensagem de Jesus. Nesse sentido, estes
gregos representam os pagãos e todos os povos da terra que, um dia, serão
atraídos a Jesus, não por imposição de uma doutrina, mas movidos por um desejo
de “ver”, ou seja, conhecer e viver uma experiência de amor com ele. Ora, com o
templo transformado em casa de comércio, já não era mais possível adorar
verdadeiramente a Deus naquela estrutura. Por isso, os gregos «Aproximaram-se
de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: ‘Senhor, gostaríamos de
ver Jesus’» (v. 21). O desejo dos gregos de ver Jesus significa que
sua fama tinha se espalhado e, ao mesmo tempo, que a religião do templo já não
favorecia mais o encontro das pessoas com Deus. “Ver”, aqui, significa
conhecer, contemplar, ver em profundidade; é esse o significado do verbo grego
empregado pelo evangelista (όράω– oráo). Na verdade, o “ver” ao
longo de todo o Quarto Evangelho vai muito além da visão física; significa
fazer experiência, entrar em relação; é o primeiro passo para a fé e o
consequente testemunho.
Os gregos não
queriam conhecer os traços físicos de Jesus, mas fazer uma experiência de vida
com ele, provavelmente porque sentiam que o templo de Jerusalém já não
proporcionava uma experiência autêntica com Deus, era uma instituição
espiritualmente falida, apesar de economicamente próspera. Inclusive, se
quisessem ver Jesus apenas fisicamente não seria necessária a mediação dos
discípulos, pois Jesus já se encontrava em Jerusalém e frequentava o templo
diariamente. E os estrangeiros/pagãos são os primeiros a reconhecer Jesus como
o templo verdadeiro, antes mesmo da destruição do edifício (Jo 2,19-22); esse é
um dado de grande importância. Além da falência da instituição religiosa, o
evangelista apresenta, ao mesmo tempo, o alcance universal da mensagem de
Jesus: não estando preso a uma estrutura fixa e rígida, ele se torna acessível
as pessoas de todos os povos e culturas.
Os gregos que
queriam ver Jesus procuraram um discípulo, Filipe, e esse, por sua vez,
procurou um companheiro de grupo, ou seja, outro discípulo: «Filipe
combinou com André, e os dois foram falar com Jesus» (v. 22).
Com isso, o evangelista não está “burocratizando” Jesus, mas enfatizando o
papel essencial da comunidade cristã para favorecer o encontro com ele. Jesus é
acessível a todas as pessoas; mas é na comunidade que se conhece e se faz
verdadeiramente encontro e experiência com a sua pessoa. Na comunidade, todos
devem ser acolhidos, independentemente da origem, das características ou da
identidade; a comunidade cristã não pode negar a ninguém o direito de ver Jesus,
ou seja, de encontrar-se com ele e experimentar sua proposta de amor. E quem já
o conhece, obviamente, não mede esforços para que outras pessoas também o
conheçam. Por isso, Filipe combina com André para juntos realizarem o pleito
dos gregos. É importante recordar que, dentre os discípulos de então, somente
Filipe e André tinham nomes gregos (Φιλίππος –Filippos; Άνδρέα – Andréa). Isso quer dizer
que eles eram o caminho mais fácil encontrado para os gregos chegarem a Jesus,
e é uma recordação para a comunidade cristã de todos os tempos valorizar os
elementos que podem favorecer o diálogo e a fraternidade. Por isso, é essencial
partir do que há em comum, daquilo que pode unir, antes de evidenciar as
particularidades.
A princípio, a
resposta de Jesus aos discípulos que lhe levaram o pleito dos gregos parece não
atender às expectativas: «Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o
Filho do Homem vai ser glorificado”» (v. 23). No entanto, não só
atende, como vai além: a glorificação de Jesus é o alcance universal da sua
mensagem, até então muito concentrada e destinada a um pequeno grupo. A “chegada
da hora” é um tema central do Evangelho de João; tudo o que Jesus vivenciou até
então foi preparação para a sua “hora”, desde o primeiro sinal realizado, nas
bodas de Caná (Jo 2,4). Essa hora é síntese de todo o mistério pascal na
perspectiva do Quarto Evangelho. É a hora de entregar-se definitivamente, mas
sobretudo, hora de demonstrar que os sistemas vigentes, político e religioso,
não toleram que alguém viva somente para o amor! Foi por causa do seu excesso
de amor que lhe levaram ao tribunal e, em seguida, para a cruz. Essa
glorificação não significa uma entronização ou coroamento; é uma verdadeira
explosão do amor que se torna acessível a todos, sendo capaz de contagiar o
mundo inteiro. Esse amor não pode mais ser contido; por isso, será revelado
plenamente, e todos poderão acolhê-lo: gregos e judeus, bons e maus, justos e
pecadores. Portanto, a hora da glorificação do Filho do Homem é, ao mesmo
tempo, a hora de desmascaramento de todos os sistemas injustos e de todas as
formas de vida que não tenham o amor como princípio.
Como uma
declaração solene, e fazendo uso da imagem do grão de trigo, Jesus anuncia sua
morte e, ao mesmo tempo, o seu efeito salvífico: «Em verdade, em
verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua
só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto» (v. 24).
“Em verdade, em verdade” (em grego: άμήν, άμήν – amén, amén) é uma expressão solene que sempre introduz um
ensinamento importante e irrevogável de Jesus e que não pode ser desconsiderado
pela comunidade dos seus seguidores e seguidoras ao longo da história. A
entrega, a capacidade de morrer por amor é um imperativo irrevogável para a
comunidade cristã. Porém, não se trata de uma simples entrega passiva; não é
sinal de resignação, mas é a coragem de lutar pela vida até as últimas
consequências; essa luta não pode ser feita de outra maneira que seja através
do amor. Uma morte assim será sempre sinal de vida e de frutos abundantes, à
semelhança do grão de trigo enterrado no chão. Como o Evangelho de João é muito
econômico nas parábolas, apesar de possuir a linguagem mais simbólica entre os
quatro, essa imagem do grão de trigo como símbolo da própria paixão, morte e
ressurreição de Jesus é muito significativa. O viver por amor implica em também
morrer por amor, e uma morte assim nunca será o fim, mas sempre o início de nova
vida, através dos frutos gerados. Por isso, a imagem de um grão de trigo
expressa tão bem a missão de Jesus, incluindo sua glorificação por meio da cruz
e ressurreição.
Recordando que
todo esse discurso faz parte de uma resposta ou apresentação de Jesus aos
gregos que queriam vê-lo, podemos perceber a preocupação do evangelista com a
sua comunidade e com as comunidades de todos os tempos: ver ou conhecer Jesus é
envolver-se com o seu projeto de vida. E esse projeto exige renúncias, decisões
e tomadas de posição. A primeira e decisiva posição diz respeito à própria
vida! Para seguir Jesus é necessário compreender e aceitar que o sentido da
vida está na capacidade de doá-la por amor para torná-la fecunda, como ele
mesmo diz: «Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta
de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna» (v. 25). Com
essa declaração, Jesus não está convidando seus seguidores a menosprezarem a
vida e a existência terrena, mas pedindo que lhe dêem sentido. E esse sentido
passa pela capacidade de não se apegar tanto a ela, para que dela outras vidas
também venham a ter sentido. Para isso, é necessário viver à sua maneira. Por
isso, ele reforça o convite ao seguimento, associando-o ao serviço: «Se
alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se
alguém me serve, meu Pai o honrará» (v. 26). Ora, muitos queriam e
ainda querem ver Jesus ou receber explicações a seu respeito. Mas o próprio
Jesus deixa claro que ele é inexplicável; para conhecê-lo é indispensável o seu
seguimento com a disposição de servir. A comunidade tem a missão de, onde ela
estiver, tornar presente Jesus e o Pai. Isso só é possível onde o servir e
o seguir são de fato prioridades, tendo o amor por motivação.
E a Jesus serve e segue quem vive à sua maneira, amando sem medidas, a ponto de
entregar a própria vida.
Como esse texto antecede de imediato à narrativa da paixão, é muito
oportuno que o evangelista ressalte a humanidade de Jesus, como se vê: «Agora sinto-me angustiado! E que
direi? ‘Pai, livra-me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que eu
vim» (v. 27). Essa confissão de Jesus é muito relevante. É reveladora
da sua humana condição, com todas as limitações que essa implica. Dar a própria
vida custa dor e sofrimento, custa o derramar-se do sangue. Porém, mais forte
do que a dor e a angústia foi a confiança no Pai e a certeza de que, daquele
amor transbordante, muitas vidas novas surgiriam, muitos frutos brotariam. Foi
de fato, para “esta hora” que ele veio; não para morrer tragicamente como
aconteceu, mas para testemunhar o amor até as últimas consequências. A voz do céu
confere a este episódio uma importância equivalente à transfiguração nos
sinóticos: «“Pai,
glorifica o teu nome!” Então, veio uma voz do céu: “Eu o glorifiquei e o glorificarei
de novo!” (v. 28). A transfiguração aconteceu num momento de crise
entre Jesus e os discípulos que insistiam em não aceitar a cruz como destino. É
uma confirmação da fidelidade de Jesus aos propósitos do Pai. É também
expressão da comunhão entre Jesus e o Pai, pois consiste praticamente na mesma
coisa que ele mesmo tinha dito sobre a chegada da sua hora e da glorificação
(v. 23). A explicação de Jesus sobre a origem e o motivo da voz do céu reforça
ainda mais a equivalência com a transfiguração (v. 30): o Pai intervém quando
os discípulos ou as multidões se mostram incapazes de compreender ou aceitar o
caminho do Filho, que leva à glória, porém, mediante a cruz. Ele já vivia em
plena comunhão com o Pai sem necessidade de sinais exteriores, por isso ele diz
que a voz do céu não ressoou por sua causa, mas por causa do povo.
Como o(s)
chefe(s) deste mundo (v. 31) não suportaram a irradiação do amor de Jesus em
demasia, eis que a “hora” se transformou em dor. O(s) chefes(s) deste mundo são
todas as forças de morte, toda oposição ao amor e à justiça; é tudo o que se
opõe ao Reino de Deus. Na época, foram, sobretudo, as lideranças políticas e
religiosas que levaram Jesus à morte de cruz. Mas essas forças continuam
atuantes no mundo, revestindo-se de diversas aparências. Quase sempre, se
revestem de religiosidade, usando o nome de Deus para perseguir, discriminar e
até matar. Aos chefes do tempo de Jesus, o Pai deu a resposta definitiva: na
mesma cruz em que morreu um corpo, dela irradiou amor como nunca visto antes. E
é no momento da angústia maior que Jesus reforça sua confiança e esperança no
Pai, atestando o verdadeiro cumprimento da sua missão no mundo: «Quando
eu for elevado da terra, atrairei todos a mim» (v. 32). É claro
que “ser elevado” diz respeito à crucifixão. Àquela altura, já estava clara
qual seria a sua pena: a cruz, como era para quem ousava desmascarar os
sistemas de dominação, comandados pelo(s) chefes(s) deste mundo, na época as
lideranças religiosas e políticas, atualmente com muitas outras formas de
expressão. Jesus sabia que o seu elevar-se na cruz seria tão frutífero quanto o
enterrar um grão de trigo no chão: sementes haveriam de germinar; sementes de
amor, justiça, solidariedade, inconformismo e fé.
Não obstante a
dor e a angústia, assim como Jesus, os cristãos e cristã são convidados a crer
que o sangue derramado por amor faz germinar; o amor tem uma força de atração
indescritível. Ao mesmo tempo, não podem acomodar-se com a vida banalizada e as
milhares de morte geradas por omissão e injustiças dos chefes do mundo de hoje.
Só vê Jesus quem o segue e vive verdadeiramente o mandamento do amor. Só quem o
ver compreende a grandeza do amor e suas consequências. E quem o vê, não pode
ser conivente com as injustiças e maldades no mundo que geram morte, exclusão, dor
e sofrimento. Concluindo, recordamos também que, à medida em que a Quaresma
entra em fase de afunilamento, cabe questionarmo-nos sobre os grãos que estamos
fazendo germinar em nossos corações.
Pe. Francisco Cornélio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Muito bom! Continue com estas homilias, padre! Me ajudou muito, obrigado.
ResponderExcluir