Neste domingo
em que celebramos a solenidade da Ascensão do Senhor, o evangelho proposto pela
liturgia é Mc 16,15-20. Esta solenidade marca a consumação da ressurreição: o
Ressuscitado retorna ao mundo do Pai, confiando a continuidade da sua obra à
comunidade dos seus seguidores e seguidoras – a Igreja –, enviando-a a anunciar
o Evangelho a toda a criação. Conforme o movimento do ciclo litúrgico, a cada
ano se lê o relato de um dos evangelhos sinóticos. Contudo, somente Marcos e
Lucas chegam a narrar a ascensão propriamente. Em Mateus consta apenas o
discurso de despedida de Jesus, numa montanha da Galileia (Mt 28,16-20). O
texto que descreve e narra a ascensão com mais riqueza de detalhes se encontra em
Atos dos Apóstolos e, por isso, é usado como primeira leitura desta solenidade,
todos os anos (At 1,1-11). No entanto, assim como a ressurreição, a ascensão é
uma realidade indescritível. Os autores bíblicos quiseram representá-la
narrativamente visando imprimir na comunidade cristã a responsabilidade de ser a
continuadora da presença do Ressuscitado no mundo. Para isso, empregaram os diversos artifícios literários à disposição. Jesus retorna ao Pai, mas quer
continuar agindo no mundo: salvando, humanizando, espalhando amor e justiça por
todos os lugares. E faz isso por meio dos seus seguidores e seguidoras, que são
fortalecidos pelo Espírito Santo, enviado por ele em comunhão com o Pai. Antes
de analisar o texto lido neste “ano B” do ciclo litúrgico, faremos, como de
costume, algumas considerações a nível de contexto.
E começamos
recordando que é praticamente unanimidade entre os estudiosos que o evangelho
original de Marcos termina em 16,8. Os versículos de 9 a 20 deste último
capítulo, dos quais é tirado o trecho lido neste dia, foram acrescentados
posteriormente, já em meados do segundo século. Dois motivos principais
contribuem para essa afirmação: o primeiro é a mudança de estilo literário
entre esses versículos e o restante do livro; o segundo motivo é a ausência
desses versículos nos manuscritos mais antigos que contém o Evangelho de Marcos:
os códigos Vaticano e Sinaítico. Vejamos as razões para esse acréscimo. Ora, Mc
16,1-8 relata a experiência das mulheres diante do sepulcro vazio, naquele
primeiro dia semana, que corresponde ao domingo da ressurreição. Elas receberam
o anúncio da ressurreição por um jovem vestido de branco (anjo), o qual mandou
por elas um recado, para Pedro e os demais discípulos, que o Senhor
Ressuscitado os esperava na Galileia (Mc 16,7). No entanto, no versículo 8, que
é o último, está escrito o seguinte: «Então as mulheres saíram do
túmulo correndo, porque estavam com medo e assustadas. E não disseram nada a
ninguém, porque tinham medo» (Mc 16,8). Como se vê, o texto termina
sem uma confirmação da ressurreição pelos discípulos, pois não diz se as
mulheres acreditaram e tampouco se deram o recado aos outros discípulos.
Por mais que o
redator original do Evangelho de Marcos tenha buscado ser o mais realista
possível, o fato de concluir sua obra com a palavra medo poderia se tornar
desagradável para as gerações posteriores. Com o passar do tempo, esse final
tão brusco, além da lacuna, pois não havia sequer um relato de aparição do
Ressuscitado, tornou-se problemático para a pregação sobre a ressurreição. Para
solucionar o problema, a comunidade acrescentou um apêndice, fazendo uma
síntese dos relatos de aparição do Ressuscitado dos outros três evangelhos, o
que corresponde aos versículos de 9 a 20 (Mc 16,9-20). De fato, nesse acréscimo
são notórios os traços característicos de cada um dos outros evangelhos: há uma
alusão implícita aos discípulos de Emaús (v. 12), característica de Lucas; há
uma menção à incredulidade dos que não deram crédito ao anúncio dos que viram o
Ressuscitado (v. 14), característica de João; e há o envio missionário
universal associado ao batismo (vv. 15-16), característica de Mateus. Portanto,
a comunidade juntou um pouco de cada e compôs esse acréscimo, ao qual pertence
o trecho lido hoje. Isso serviu para cancelar o rótulo de “evangelho
incompleto”, como estava se espalhando pelas comunidades por onde o livro
circulava.
Passada a
contextualização, olhemos para o texto que nos é oferecido, começando pelo
primeiro versículo, no qual se diz que: «Jesus se manifestou aos onze
discípulos, e disse-lhes: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda
criatura!”» (v. 15). Lendo o versículo anterior, sabemos que
foi na mesa, durante uma refeição, que o Ressuscitado apareceu (Mc 16,14). A
comunidade se encontrava fechada, amedrontada e incrédula, totalmente acuada.
Diante dessa situação, a presença do Ressuscitado deve impulsioná-la, provocando
abertura de perspectiva e compromisso. Ora, a comunidade não poderia continuar
como estava, acuada pelo medo. As palavras do Ressuscitado são claramente de um
envio universal. A novidade desse envio é que os destinatários do Evangelho não
são apenas os seres humanos, nem as nações ou povos, mas a criação inteira:
toda criatura. Inclusive, ao invés de criatura, a melhor tradução para a
palavra grega empregada no texto original (κτίσις- ktíssis) seria criação ou
criado. Logo o mandato é «anunciai o Evangelho a toda a criação». Como
boa notícia, o Evangelho, anunciado e vivido fielmente pela comunidade cristã,
comporta uma forma de vida totalmente nova em relação a todas as experiências
até então vivenciadas, propondo uma relação harmoniosa com a criação inteira, e
não apenas entre os seres humanos. Como obra de Deus, toda a criação precisa
ser revestida do amor do Pai revelado em Jesus, a essência do Evangelho, uma
vez que o mal presente no mundo atinge a também ela. De fato, Paulo já tinha se
dado conta dessa realidade: «a criação inteira e sofre como em dores de
parto» (Rm 8,22). E somente o amor do Pai revelado em Jesus,
vivido e transmitido pela comunidade de seus seguidores e seguidoras, pode
restaurá-la. Por isso, é urgente que toda a criação seja revestida de amor. O
anúncio e a vivência do Evangelho exigem, portanto, um cuidado especial com a
casa comum.
O Evangelho é
dom gratuito, não uma doutrina a ser imposta; por isso, pode ser aceito ou não.
E o anúncio cristão só é autêntico se respeitar a liberdade dos destinatários.
E, como toda escolha tem consequências, assim também é a adesão ao Evangelho: «Quem
crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado» (v.
16). Crer, aqui, é aderir, dar adesão plena a uma proposta de vida; é
aceitar o amor de Jesus e deixar-se envolver por ele, e não simplesmente
repetir fórmulas. É assimilar o estilo de vida de Jesus. Como afirmado na
contextualização inicial, o acréscimo posterior dos versículos 9-20 ao
Evangelho de Marcos foi construído com base nos outros evangelhos, e nesse
versículo preciso percebe-se claramente uma influência do Evangelho de João, o
que mais enfatiza o não crer como como de autocondenação. A aceitação do
Evangelho é seguida pelo batismo, sinal dessa adesão e de comunhão com a
comunidade. Quem faz essa experiência, será salvo, ou seja, terá sua vida
ressignificada, plenificada e cheia de sentido, já não mais vulnerável aos
efeitos da morte. Não crer, ou seja, rejeitar o amor de Jesus também traz
consequências. O texto diz que «aquele que não crer será condenado», mas
não diz que é Deus quem condena; de fato, sendo Deus essencialmente amor, ele
não condena ninguém. É o próprio ser humano que se autocondena quando não
aceita o amor como estilo de vida. É condenado, portanto, quem não consegue dar
sentido à sua existência, e isso é perder a vida. Fechar-se ao amor de Deus é
deixar de viver plenamente, e isso é condenar-se.
Quem aceita a
proposta de amor contida no Evangelho tem a vida transformada, não como passe
de mágica, mas como forma de viver e de compreender as coisas. Por isso, Jesus
elenca alguns sinais: «Os sinais que acompanharão aqueles que crerem
serão estes: expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas, se pegarem
em serpentes ou beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando
impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados» (vv.
17-18). Antes de tudo, é importante recordar que os sinais elencados não são
dons conferidos aos anunciadores, mas aos que creem. Logo, Jesus não está
dotando os seus discípulos de poderes e dons extraordinários, mas
comprometendo-os: o anúncio deve ser transformador de vidas. Quem recebe o
anúncio e dá adesão ao projeto de Jesus se transforma e se torna transformador
de realidades, fazendo o bem prevalecer sempre. Por expulsar demônios e curar
doentes, entende-se a eliminação do mal do mundo e o triunfo do bem; não se
trata de práticas de exorcismos, mas de compromisso com o bem. Quem adere ao
Evangelho elimina o mal da sua vida e da vida do seu próximo. E o antídoto ao
mal é o amor. Falar novas línguas significa a abertura ao universalismo da
salvação e a convivência fraterna das diversas culturas em torno do Evangelho;
quer dizer que o amor quebra barreiras e abre perspectivas sem impor nada.
Pegar em serpentes, beber veneno mortal e não ser atingido significa a harmonia
com a criação; é o sonho de um mundo completamente harmônico, com todas as
criaturas convivendo entre si, sem nenhuma causar dano à outra. Trata-se de uma
imagem pertencente à tradição profética de Isaías (cf. Is 11,1-19). O sonho de
um mundo novo inspirava a criatividade dos profetas para descreverem a
realidade imaginada e desejada, conforme o amor de Deus. Com imagens tão
interpelantes, o texto quer ressaltar a força transformadora do Evangelho e mostrar
que tanto o anúncio quanto a adesão a esse implicam em compromisso
transformador de vidas e situações.
Com uma imagem
típica de entronização, o texto narra brevemente a ascensão propriamente
dita: «Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao
céu, e sentou-se à direita de Deus» (v. 19). Sentar-se à
direita significa uma posição de honra. Essa imagem era muito usada nas cortes
do antigo Oriente, influenciando bastante a literatura bíblica. Aqui, significa
a soberania de Jesus sobre universo e a história e, acima de tudo, que ele
cumpriu fielmente a sua missão de revelar, com palavras e ações, o rosto
amoroso do Pai; por isso, está ao seu lado, ocupando seu lugar de direito, após
cumprir tão fielmente tudo o que lhe tinha designado para fazer neste mundo. Ao
invés de suscitar sentimentos de triunfalismos nos seguidores de Jesus, essa
imagem deve despertar compromisso: tendo ele retornado ao Pai, cabe agora aos
discípulos e discípulas a missão de irradiar o seu amor no mundo, continuando seu
projeto humanizador, cujo resultado deve ser a edificação do Reino de Deus já
neste mundo. A ascensão, portanto, não é um distanciamento ou simples
despedida, mas o começo de um novo modo de presença do Senhor no mundo, agora
por meio dos seus seguidores e seguidoras, à medida em que anunciam e
testemunham o Evangelho com a vida.
E o versículo
conclusivo diz como a primeira comunidade de discípulos e discípulas realizou o
mandato missionário do Ressuscitado: «Os discípulos então saíram e
pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio
dos sinais que os acompanhavam» (v. 20a). A
resposta da comunidade ao retorno de Jesus ao Pai não é a contemplação com
espera passiva pela sua segunda vinda, mas a missão: Jesus sobe ao céu, e os
discípulos saem por toda parte. A missão de Jesus, portanto, não se conclui com
a ascensão, mas ganha com ela novos contornos e dimensões; ela deve continuar
através dos discípulos, e o texto atesta como as primeiras gerações de cristãos
e cristãs levaram a sério esse mandato. De fato, quando a comunidade assume a
missão, ela nunca está sozinha, o Senhor está presente. E o anúncio, se
autêntico, deixa marcas, transforma as situações, humanizando as pessoas e o
mundo. Os sinais concretos que devem marcar o anúncio não são condições para
despertar a fé, mas consequência: «O Senhor os ajudava e confirmava sua
palavra por meio dos sinais que a acompanhavam» (v. 20b). Os
sinais apenas confirmavam o anúncio, e esse detalhe é muito importante. Esses
sinais são os frutos de amor gerados: a justiça, a fraternidade, a aceitação
das diferenças, o acolhimento, a solidariedade, a tolerância e o cuidado com a
criação inteira. Enfim, um mundo humanizado, como pensado pelo Criador desde o
princípio.
O Ressuscitado
está presente onde o Evangelho é anunciado e vivido. Onde frutos de amor e
justiça são produzidos, o Ressuscitado está. Por outro lado, onde há
convivência com o mal, onde a violência é alimentada, ele está ausente. Os
sinais que acompanham o anúncio são consequências da força indescritível do
amor; é essa a energia vital de qualquer comunidade cristã; amor que aumenta à
medida em que é experimentado. Por isso, ao invés de despedida, a ascensão é a
festa da presença e da missão.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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