quinta-feira, maio 09, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – MARCOS 16,15-20 (ANO B)



Neste domingo em que celebramos a solenidade da Ascensão do Senhor, o evangelho proposto pela liturgia é Mc 16,15-20. Esta solenidade marca a consumação da ressurreição: o Ressuscitado retorna ao mundo do Pai, confiando a continuidade da sua obra à comunidade dos seus seguidores e seguidoras – a Igreja –, enviando-a a anunciar o Evangelho a toda a criação. Conforme o movimento do ciclo litúrgico, a cada ano se lê o relato de um dos evangelhos sinóticos. Contudo, somente Marcos e Lucas chegam a narrar a ascensão propriamente. Em Mateus consta apenas o discurso de despedida de Jesus, numa montanha da Galileia (Mt 28,16-20). O texto que descreve e narra a ascensão com mais riqueza de detalhes se encontra em Atos dos Apóstolos e, por isso, é usado como primeira leitura desta solenidade, todos os anos (At 1,1-11). No entanto, assim como a ressurreição, a ascensão é uma realidade indescritível. Os autores bíblicos quiseram representá-la narrativamente visando imprimir na comunidade cristã a responsabilidade de ser a continuadora da presença do Ressuscitado no mundo. Para isso, empregaram os diversos artifícios literários à disposição. Jesus retorna ao Pai, mas quer continuar agindo no mundo: salvando, humanizando, espalhando amor e justiça por todos os lugares. E faz isso por meio dos seus seguidores e seguidoras, que são fortalecidos pelo Espírito Santo, enviado por ele em comunhão com o Pai. Antes de analisar o texto lido neste “ano B” do ciclo litúrgico, faremos, como de costume, algumas considerações a nível de contexto.

E começamos recordando que é praticamente unanimidade entre os estudiosos que o evangelho original de Marcos termina em 16,8. Os versículos de 9 a 20 deste último capítulo, dos quais é tirado o trecho lido neste dia, foram acrescentados posteriormente, já em meados do segundo século. Dois motivos principais contribuem para essa afirmação: o primeiro é a mudança de estilo literário entre esses versículos e o restante do livro; o segundo motivo é a ausência desses versículos nos manuscritos mais antigos que contém o Evangelho de Marcos: os códigos Vaticano e Sinaítico. Vejamos as razões para esse acréscimo. Ora, Mc 16,1-8 relata a experiência das mulheres diante do sepulcro vazio, naquele primeiro dia semana, que corresponde ao domingo da ressurreição. Elas receberam o anúncio da ressurreição por um jovem vestido de branco (anjo), o qual mandou por elas um recado, para Pedro e os demais discípulos, que o Senhor Ressuscitado os esperava na Galileia (Mc 16,7). No entanto, no versículo 8, que é o último, está escrito o seguinte: «Então as mulheres saíram do túmulo correndo, porque estavam com medo e assustadas. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo» (Mc 16,8). Como se vê, o texto termina sem uma confirmação da ressurreição pelos discípulos, pois não diz se as mulheres acreditaram e tampouco se deram o recado aos outros discípulos.

Por mais que o redator original do Evangelho de Marcos tenha buscado ser o mais realista possível, o fato de concluir sua obra com a palavra medo poderia se tornar desagradável para as gerações posteriores. Com o passar do tempo, esse final tão brusco, além da lacuna, pois não havia sequer um relato de aparição do Ressuscitado, tornou-se problemático para a pregação sobre a ressurreição. Para solucionar o problema, a comunidade acrescentou um apêndice, fazendo uma síntese dos relatos de aparição do Ressuscitado dos outros três evangelhos, o que corresponde aos versículos de 9 a 20 (Mc 16,9-20). De fato, nesse acréscimo são notórios os traços característicos de cada um dos outros evangelhos: há uma alusão implícita aos discípulos de Emaús (v. 12), característica de Lucas; há uma menção à incredulidade dos que não deram crédito ao anúncio dos que viram o Ressuscitado (v. 14), característica de João; e há o envio missionário universal associado ao batismo (vv. 15-16), característica de Mateus. Portanto, a comunidade juntou um pouco de cada e compôs esse acréscimo, ao qual pertence o trecho lido hoje. Isso serviu para cancelar o rótulo de “evangelho incompleto”, como estava se espalhando pelas comunidades por onde o livro circulava.

Passada a contextualização, olhemos para o texto que nos é oferecido, começando pelo primeiro versículo, no qual se diz que: «Jesus se manifestou aos onze discípulos, e disse-lhes: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!”» (v. 15). Lendo o versículo anterior, sabemos que foi na mesa, durante uma refeição, que o Ressuscitado apareceu (Mc 16,14). A comunidade se encontrava fechada, amedrontada e incrédula, totalmente acuada. Diante dessa situação, a presença do Ressuscitado deve impulsioná-la, provocando abertura de perspectiva e compromisso. Ora, a comunidade não poderia continuar como estava, acuada pelo medo. As palavras do Ressuscitado são claramente de um envio universal. A novidade desse envio é que os destinatários do Evangelho não são apenas os seres humanos, nem as nações ou povos, mas a criação inteira: toda criatura. Inclusive, ao invés de criatura, a melhor tradução para a palavra grega empregada no texto original (κτίσις- ktíssis) seria criação ou criado. Logo o mandato é «anunciai o Evangelho a toda a criação». Como boa notícia, o Evangelho, anunciado e vivido fielmente pela comunidade cristã, comporta uma forma de vida totalmente nova em relação a todas as experiências até então vivenciadas, propondo uma relação harmoniosa com a criação inteira, e não apenas entre os seres humanos. Como obra de Deus, toda a criação precisa ser revestida do amor do Pai revelado em Jesus, a essência do Evangelho, uma vez que o mal presente no mundo atinge a também ela. De fato, Paulo já tinha se dado conta dessa realidade: «a criação inteira e sofre como em dores de parto» (Rm 8,22). E somente o amor do Pai revelado em Jesus, vivido e transmitido pela comunidade de seus seguidores e seguidoras, pode restaurá-la. Por isso, é urgente que toda a criação seja revestida de amor. O anúncio e a vivência do Evangelho exigem, portanto, um cuidado especial com a casa comum.

O Evangelho é dom gratuito, não uma doutrina a ser imposta; por isso, pode ser aceito ou não. E o anúncio cristão só é autêntico se respeitar a liberdade dos destinatários. E, como toda escolha tem consequências, assim também é a adesão ao Evangelho: «Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado» (v. 16). Crer, aqui, é aderir, dar adesão plena a uma proposta de vida; é aceitar o amor de Jesus e deixar-se envolver por ele, e não simplesmente repetir fórmulas. É assimilar o estilo de vida de Jesus. Como afirmado na contextualização inicial, o acréscimo posterior dos versículos 9-20 ao Evangelho de Marcos foi construído com base nos outros evangelhos, e nesse versículo preciso percebe-se claramente uma influência do Evangelho de João, o que mais enfatiza o não crer como como de autocondenação. A aceitação do Evangelho é seguida pelo batismo, sinal dessa adesão e de comunhão com a comunidade. Quem faz essa experiência, será salvo, ou seja, terá sua vida ressignificada, plenificada e cheia de sentido, já não mais vulnerável aos efeitos da morte. Não crer, ou seja, rejeitar o amor de Jesus também traz consequências. O texto diz que «aquele que não crer será condenado»mas não diz que é Deus quem condena; de fato, sendo Deus essencialmente amor, ele não condena ninguém. É o próprio ser humano que se autocondena quando não aceita o amor como estilo de vida. É condenado, portanto, quem não consegue dar sentido à sua existência, e isso é perder a vida. Fechar-se ao amor de Deus é deixar de viver plenamente, e isso é condenar-se.

Quem aceita a proposta de amor contida no Evangelho tem a vida transformada, não como passe de mágica, mas como forma de viver e de compreender as coisas. Por isso, Jesus elenca alguns sinais: «Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes: expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas, se pegarem em serpentes ou beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados» (vv. 17-18). Antes de tudo, é importante recordar que os sinais elencados não são dons conferidos aos anunciadores, mas aos que creem. Logo, Jesus não está dotando os seus discípulos de poderes e dons extraordinários, mas comprometendo-os: o anúncio deve ser transformador de vidas. Quem recebe o anúncio e dá adesão ao projeto de Jesus se transforma e se torna transformador de realidades, fazendo o bem prevalecer sempre. Por expulsar demônios e curar doentes, entende-se a eliminação do mal do mundo e o triunfo do bem; não se trata de práticas de exorcismos, mas de compromisso com o bem. Quem adere ao Evangelho elimina o mal da sua vida e da vida do seu próximo. E o antídoto ao mal é o amor. Falar novas línguas significa a abertura ao universalismo da salvação e a convivência fraterna das diversas culturas em torno do Evangelho; quer dizer que o amor quebra barreiras e abre perspectivas sem impor nada. Pegar em serpentes, beber veneno mortal e não ser atingido significa a harmonia com a criação; é o sonho de um mundo completamente harmônico, com todas as criaturas convivendo entre si, sem nenhuma causar dano à outra. Trata-se de uma imagem pertencente à tradição profética de Isaías (cf. Is 11,1-19). O sonho de um mundo novo inspirava a criatividade dos profetas para descreverem a realidade imaginada e desejada, conforme o amor de Deus. Com imagens tão interpelantes, o texto quer ressaltar a força transformadora do Evangelho e mostrar que tanto o anúncio quanto a adesão a esse implicam em compromisso transformador de vidas e situações.

Com uma imagem típica de entronização, o texto narra brevemente a ascensão propriamente dita: «Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus» (v. 19). Sentar-se à direita significa uma posição de honra. Essa imagem era muito usada nas cortes do antigo Oriente, influenciando bastante a literatura bíblica. Aqui, significa a soberania de Jesus sobre universo e a história e, acima de tudo, que ele cumpriu fielmente a sua missão de revelar, com palavras e ações, o rosto amoroso do Pai; por isso, está ao seu lado, ocupando seu lugar de direito, após cumprir tão fielmente tudo o que lhe tinha designado para fazer neste mundo. Ao invés de suscitar sentimentos de triunfalismos nos seguidores de Jesus, essa imagem deve despertar compromisso: tendo ele retornado ao Pai, cabe agora aos discípulos e discípulas a missão de irradiar o seu amor no mundo, continuando seu projeto humanizador, cujo resultado deve ser a edificação do Reino de Deus já neste mundo. A ascensão, portanto, não é um distanciamento ou simples despedida, mas o começo de um novo modo de presença do Senhor no mundo, agora por meio dos seus seguidores e seguidoras, à medida em que anunciam e testemunham o Evangelho com a vida.

E o versículo conclusivo diz como a primeira comunidade de discípulos e discípulas realizou o mandato missionário do Ressuscitado: «Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que os acompanhavam» (v. 20a).  A resposta da comunidade ao retorno de Jesus ao Pai não é a contemplação com espera passiva pela sua segunda vinda, mas a missão: Jesus sobe ao céu, e os discípulos saem por toda parte. A missão de Jesus, portanto, não se conclui com a ascensão, mas ganha com ela novos contornos e dimensões; ela deve continuar através dos discípulos, e o texto atesta como as primeiras gerações de cristãos e cristãs levaram a sério esse mandato. De fato, quando a comunidade assume a missão, ela nunca está sozinha, o Senhor está presente. E o anúncio, se autêntico, deixa marcas, transforma as situações, humanizando as pessoas e o mundo. Os sinais concretos que devem marcar o anúncio não são condições para despertar a fé, mas consequência: «O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam» (v. 20b). Os sinais apenas confirmavam o anúncio, e esse detalhe é muito importante. Esses sinais são os frutos de amor gerados: a justiça, a fraternidade, a aceitação das diferenças, o acolhimento, a solidariedade, a tolerância e o cuidado com a criação inteira. Enfim, um mundo humanizado, como pensado pelo Criador desde o princípio.

O Ressuscitado está presente onde o Evangelho é anunciado e vivido. Onde frutos de amor e justiça são produzidos, o Ressuscitado está. Por outro lado, onde há convivência com o mal, onde a violência é alimentada, ele está ausente. Os sinais que acompanham o anúncio são consequências da força indescritível do amor; é essa a energia vital de qualquer comunidade cristã; amor que aumenta à medida em que é experimentado. Por isso, ao invés de despedida, a ascensão é a festa da presença e da missão.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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