O evangelho da Solenidade de
Pentecostes é sempre o mesmo, independentemente do ciclo litúrgico
vigente: Jo 20,19-23. Na verdade, a liturgia oferece também uma segunda
opção de evangelho para este dia (Jo 15,26-27;16,12-15), mas tem sido pouco utilizado. O texto aqui tratado corresponde
ao relato da
primeira manifestação do Senhor Ressuscitado aos seus discípulos, ao anoitecer
do primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da ressurreição. Inclusive,
esse texto já foi lido na liturgia dominical deste tempo pascal, como parte do
evangelho do segundo domingo, como também acontece todos os anos. Naquela
ocasião, no entanto, este trecho fora lido como parte de uma sequência maior:
Jo 20,19-31, que compreende a manifestação do Ressuscitado também no domingo
seguinte à ressurreição, ou seja, «oito dias depois» (Jo
19,26). Portanto, embora estejamos de fato há cinquenta dias da Páscoa, o
evangelho de hoje nos remete ao dia mesmo da ressurreição.
Pentecostes era uma das três
maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da
Páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a Páscoa. Na Bíblia
hebraica é chamada de “festa das semanas” (שָּׁבֻעוֹת – shavuot), pois contavam-se sete semanas após a Páscoa,
mais um dia, totalizando cinquenta dias (7x7+1=50). Por isso, recebeu o nome de
“Pentecostes” (em grego: πεντηκοστή –
pentecostê) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente
quinquagésimo dia (Tb 2,1; 2Mc 12,32). O fato de ser o resultado numérico da
operação 7x7 indica a ideia de plenitude que essa festa transmite: o número
perfeito – sete – multiplicado por ele mesmo. Quer dizer que Pentecostes é a
festa da plenitude da Páscoa, tanto para a mundo hebraico quando para a fé
cristã. Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens
ligadas à vida agrícola do povo: era a festa da colheita. Os peregrinos iam a
Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra
como oferta, em gratidão a Deus.
Com o passar do tempo, essa festa
perdeu sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com
uma conotação mais religiosa e histórica. O motivo da celebração passou, então,
a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e
dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as
partes do mundo, conforme as condições econômicas, iam a Jerusalém, para
agradecer a Deus pelo dom da Lei, transmitida através de Moisés. Lucas, autor
dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do
Espírito Santo com a festa judaica de Pentecostes, como artifício literário e
teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo,
o dom pascal por excelência. Com isso, ele ensinar que, para permanecer fiel a
Jesus e à sua mensagem, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da
Lei de Moisés; deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo.
Por outro lado, o autor o
evangelista João faz de tudo para que os referenciais da sua comunidade não
coincidam com os esquemas litúrgicos judaicos. Para ele, as grandes festas dos
judeus em Jerusalém sempre foram muito conflituosas para Jesus; eram momentos
de confronto e ameaça (2,13ss; 5,1.18; 7,1ss; 10,31; 11,56), além de sinônimo
de exploração e comércio. Por isso, ele situa a doação do Espírito Santo por
Jesus aos discípulos, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha
adotado o esquema cronológico de Lucas, a perspectiva joanina tem mais sentido
e responde melhor às necessidades dos discípulos, como mostra o Evangelho de
hoje: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando
fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se
encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja
convosco!» (v. 19). Ora, amedrontada e sem poder de ação, essa
comunidade não teria condições de esperar cinquenta dias para receber o
Espírito Santo. É somente pela força do Espírito Santo que as portas são
abertas e os dons comunicados pelo Ressuscitado podem ser experimentados por
todos.
A comunidade dos discípulos
estava em crise, profundamente abalada. Até aquele momento, somente Maria
Madalena e o Discípulo Amado tinham convicção da ressurreição (Jo 20,8.16-18).
A morte de Jesus na cruz foi um alerta para os discípulos: quem continuasse
propagando ideias como as dele, poderia terminar da mesma forma. Por isso,
estavam as portas trancadas, devido ao medo. Por “medo dos judeus” entende-se o
medo das autoridades, e não de todo o povo; é típico de João usar o termo
“judeus” referindo-se às autoridades de Jerusalém (Jo 9,22; 12,42; 16,16).
Apesar do medo, o fato de estarem reunidos é um sinal de esperança; significava
que não tinham perdido completamente as esperanças; o ideal que os unia não
tinha ainda se apagado. Porém, não poderiam continuar naquela situação, ou
seja, acuados pelo medo. Ora, o medo impede a missão, as portas fechadas
bloqueiam o anúncio da Boa Nova. Enfim, o medo é falta de experiência com o
Ressuscitado.
Ao medo dos discípulos, o
Ressuscitado responde com o dom da sua paz. Aqui, a paz não significa
simplesmente a saudação típica do povo judeu, o famoso “shalom” (שָׁלוֹם). Inclusive, a tradução correta da expressão não é “a paz
esteja convosco”, como está no texto litúrgico, mas “paz a vós”, sem a forma
verbal “esteja”. O Ressuscitado não transmite um desejo de paz, mas traz a paz
efetivamente, faz a paz acontecer. E quem faz experiência com Ele já tem a paz
dentro de si, embora seja uma paz inquieta, como ele mesmo viveu. E
imediatamente os discípulos sentiram a paz neles e entre eles, pois passaram do
medo à alegria (v. 20). A paz é plenitude de vida e equilíbrio, o bem-estar da
pessoa em todas as suas dimensões, condição indispensável para a felicidade.
Jesus comunica a sua paz estando no meio, quer dizer, no centro da comunidade.
Para que os dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a
sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos
e lugares. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho
é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado
e somente Ele, pois é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Por
isso, ao se manifestar, o Ressuscitado aparece sempre no meio.
Na continuidade da experiência,
diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado» (v.
20a). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o
Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. O Ressuscitado traz as
marcas do Crucificado, porque cruz e glória não se separam. Nas mãos e no lado
de Jesus está a sua identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são
símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que
tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (Mc 1,40), mãos que deram carinho a
crianças (Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (Jo 9,6),
mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (Lc 4,40; 13,13), mãos que
lavaram os pés dos discípulos (Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a
vida e combateram o mal.
As marcas da cruz não apagaram a
força das mãos de Jesus. Essas mãos continuam à disposição da comunidade, e a
comunidade, por sua vez, tem a missão de fazer no mundo o mesmo que aquelas
mãos do Ressuscitado fizeram, ou seja, servir infinitamente e sem distinção.
Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de
continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou até o fim (Jo 13,1), e
continua amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são, portanto, a
síntese da sua vida, da sua mensagem e da sua práxis. Ele doa o Espírito Santo
aos discípulos para que suas mãos e o seu coração continuem presentes no mundo
servindo e amando de modo ainda mais eficaz. Por isso, «os discípulos
se alegraram por verem o Senhor» (v. 20b). Como fruto da paz
transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das
características da comunidade que deve viver para amar e servir.
A paz como bem-estar do ser
humano é novamente oferecida: «novamente Jesus disse: A paz esteja
convosco» (v. 21a). Novamente, não é um desejo, mas a afirmação de um
dom já presente, já verificável. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se
uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a
comunidade. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de
liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências
das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o
Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o
Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). É importante recordar
que, embora cada evangelista narre as aparições do Ressuscitado à sua maneira,
todos os quatro recordam um elemento comum: o envio missionário. E
trata-se de um elemento determinante para a construção da identidade da
comunidade cristã, a Igreja. Não há seguimento de Jesus sem disposição para a
missão. A Igreja nasceu para estar em saída. E a fonte da missão é o amor do
Pai, o que confere à comunidade cristã uma responsabilidade ímpar: fazer no
mundo o mesmo que Jesus fez, pois ele está enviando seus discípulos de todos os
tempos conforme fora enviado pelo Pai.
Como Jesus tinha prometido o
Espírito Santo aos discípulos na última ceia (Jo 14,16.26; 15,26), eis que a
promessa é cumprida: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e
disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Aqui, o evangelista usa o
mesmo verbo empregado no relato da primeira criação do ser humano: «O
Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um
sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente» (Gn 2,7). Com isso, o
evangelista quer dizer que está sendo realizada uma nova criação. O verbo
soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação
de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a
humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também
comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade
alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver
e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro e fundamento,
colocando à disposição da humanidade mãos e coração para servir e amar
continuamente. O Espírito Santo é força dinâmica e vivificadora; é
movimento. Logo, a Igreja não pode parar no tempo, não pode acomodar-se.
Na sequência, o Ressuscitado
recorda os efeitos principais do Espírito Santo na vida da comunidade,
conferindo-lhe uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os
pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão
retidos» (v. 23). Por muito tempo,
esse versículo foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da
penitência ou confissão. No entanto, não é um sacramento o que Jesus está
instituindo, tampouco conferindo um poder aos seus discípulos para determinar
se um pecado pode ser perdoado ou não. O que perdoa mesmo os
pecados é o amor infinito de Deus que Jesus revelou. Logo, ficam pecados sem
perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de comunicar esse
amor. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da
comunidade, ou seja, quando essa deixar de produzir os frutos que Jesus pediu (Jo
15,1-17). Ora, Jesus envia os discípulos como Ele mesmo fora enviado pelo Pai
(v. 21), confiando-lhes a continuidade da sua própria missão. E a missão de
Jesus foi sintetizada pelo Batista como “tirar o pecado do mundo” (Jo 1,29).
Tirar o pecado do mundo significa promover intensamente o bem até eliminar o
mal pela raiz, o que só se faz através do amor, com ousadia profética. Agora, é
Jesus quem confia à sua comunidade de discípulos essa responsabilidade. Logo,
os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo
mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.
É na comunidade que o
Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente
uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente
reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições para que a
alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada! Deixando-se conduzir pelo
Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a
missão única do próprio Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
"Estarei contigo todos os dias até o fim" Não é fácil ser católico, mas ao mesmo tempo é tão consolador termos a Trindade Santa , o Espírito Santo cuidando de nós com esse amor que João nos comunicou em seu Evangelho com todo amor
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